A função criadora do juiz ao utilizar a eqüidade sob a lógica do razoável

Irma Pereira Maceira. Advogada. Doutoranda em Direito civil comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora de Direito Civil junto à UNIP - Universidade Paulista - Campus Anchieta.

Fonte: Irma Pereira Maceira

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Irma Pereira Maceira ( * )

Sumário: 1. As diversas situações enfrentadas pelo juiz e os problemas da aplicabilidade da norma. 2. O emprego da eqüidade na visão de Recaséns. 3. Conclusão. 4. Bibliografia.

1. As diversas situações enfrentadas pelo juiz e os problemas da aplicabilidade da norma.

RECASÉNS SICHES(1) afirma que a norma jurídica caracteriza a vida humana objetivada, sendo certo que uma vez cristalizada, se transformam, adquirindo nova vida. Esclarece, ainda que o órgão jurisdicional ao aplicar a lei ao caso concreto, faz uma adaptação às circunstâncias especiais de cada caso individualizado, particularizando-a, e a norma vai adquirindo sentido e alcance diferentes.

Principalmente na elaboração das normas individuais é que o Direito é produzido e demonstra sua atuação dinâmica e, justamente diante da impossibilidade de cogitar todas as situações possíveis, surgem as lacunas.

Assim, toda vez que tal fato acontecer deve ser utilizada a lógica do razoável e não a lógica do racional para a solução do conflito, definida como uma razão impregnada de pontos de vista estimativos, de critérios de valorização, de pautas axiológicas que traz consigo de ensinamentos colhidos da experiência própria e da do próximo, através da história, sob pena de atingir resultados não visados pela ordem jurídica.(2)

Na visão de SICHES, a regra, com validade universal, que há de ser formulada no sentido de que o juiz deve interpretar, sempre a lei de modo e segundo o método que leve à solução mais justa dentre todas as possíveis, inclusive quando o legislador ordene um determinado método de interpretação.

As valorizações, segundo o doutrinador, declaradas explícita ou tacitamente, contidas em determina lei ou regulamento, necessitam a complementação de outras valorizações, decorrentes da observação sociológica que se constitui em realidade social, realizadas através de convicções sobre o fato, estimações positivas, humanas, históricas etc. Muitas vezes, a letra do preceito legal, a forma consuetudinária ou a regra declarada num precedente jurisprudencial, não tem sentido completo e suficiente, a menos que se proceda a interpretar o alcance das estimações explicita ou implicitamente contidas nessa norma, completando-as com os critérios que nos fornecem as convicções coletivas predonimantes.(3)

2. O emprego da eqüidade na visão de Recaséns.

O emprego da eqüidade não pode ser resolvido por procedimento de lógica dedutiva, diante da impossibilidade de extrair conclusões de dadas normas positivas, alheia a critérios axiológicos. O Juiz na sua missão de criar norma individualizada para solução do caso concreto, se enquadra em várias situações, na visão de RECASÉNS SICHES(4):

1. Aparentemente existe uma norma vigente aplicável ao caso a ser decidido, de modo a lhe produzir uma solução satisfatória. Evidentemente, tal situação conduz o juiz a inúmeros juízos de valor, tanto para o seu próprio convencimento no sentido de que a norma encontrada é a mais adequada ao litígio, quanto para a livre apreciação da prova e qualificação dos fatos, visando uma perfeita conjugação do sentido abstrato e geral da norma com o verdadeiro significado do caso controvertido.

2. Existe dúvida sobre a aplicabilidade da norma mais adequada para a solução do conflito, diante da existência de várias normas da mesma hierarquia, porém de conteúdo diferente.

Neste caso, o magistrado deve além de valer-se do juízo de valor, mencionado na primeira situação, analisar as possíveis soluções que cada uma das normas produziria, porém por serem de conteúdos diferentes, saber qual delas é a mais adequada ao caso concreto, elegendo aquela que conduz à uma solução mais satisfatória, decidindo pela mais justa.

3. Em uma análise superficial, as nomenclaturas e conceitos classificatórios contidos na norma podem influenciar o juiz, e fazê-lo pensar que está diante da norma que soluciona a questão. Contudo, ao analisar a aplicação da norma ao caso que lhe é submetido, percebe que se dita norma for aplicada ao litígio, levará à conseqüências contrárias ao resultado pretendido pela própria norma, ou seja: contrário aos efeitos pretendidos pelo legislador, se tivesse em mãos o caso concreto. Diante de tal situação, o juiz deve afastar a norma aparentemente, aplicável à espécie, pois produzirá efeitos indevidos e considerar-se diante de um caso de lacuna.

4. O Juiz ao analisar o caso concreto, faz uma investigação completa no direito positivo vigente e não encontra uma norma aplicável ao caso concreto. E, se aplicar a norma vigente, teria um resultado notoriamente injusto. Estará diante de um caso de autêntica lacuna, devendo valer-se das convenções sociais vigentes na comunidade.

RECASÉNS esclarece que as situações presentes nos itens 3 e 4, necessita de um exame e considerações sobre a equidade para corrigir o rigor da norma. Por tratar-se de um problema que poderá ser solucionado pelo juiz, há razão suficiente para estimar uma norma e aplicá-la a um determinado caso singular, ponderando, compreendendo e estimando os resultados práticos que a norma produziria em situações reais.

A única proposição válida que pode ser emite por intermédio de interpretação é a do juiz que deve resolver o problema que lhe é submetido de forma mais justa. Assim o juiz não apenas aplica o Direito, mas o constrói, valendo-se de um método correto e adequado na interpretação da norma, evitando transtornos e injustiças. Recaséns(5) almeja que os juízes possam agir sem culpa, fazer justiça sem culpa, de forma convincente, apresentando justificativa que apresente uma aparência lógica, mediante a aplicação de critérios axiológicos nos limites impostos pela lei, com prudência, sensatez, equilíbrio, possibilidade de prever as conseqüências da aplicação da norma e de sopesar entre vários interesses contrapostos(6), com vistas à segurança jurídica.

Para tanto, utiliza-se da eqüidade, mas não a eqüidade, tradicionalmente, vista como forma de corrigir a lei, mas sim, aquela que foi mostrada por Aristóteles e Cícero.(7)

Na visão de Aristóteles a eqüidade consiste na expressão do justo natural em relação ao caso concreto, sendo superior ao justo legal; é o autenticamente justo por ser a expressão do justo natural em relação ao caso particular. Tendo em vista que a lei só pode reger, universalmente, segundo Aristóteles, o erro resultante da aplicação da fórmula geral da lei a casos particulares diferentes dos habituais por ela previstos, não é um erro que tenha praticado o legislador, não é um erro que esteja na lei, mas algo decorre da natureza das coisas.

Para Cícero - eqüidade não consiste em corrigir a lei na aplicação desta aos casos particulares, mas na sua exata aplicação, precisamente de acordo com as verdadeiras vontades do legislador, sobrepondo-se à imprecisão das palavras.

Dos pensamentos de Aristóteles e Cícero, RECASÉNS acentua que o legislador elabora suas normas gerais tendo em vista as situações habituais.

Quando o caso concreto for específico e não se enquadrar no tipo de situação prevista na norma e, a aplicação da regra geral ao caso sub judice produzir resultados contrários ao pretendido pelo legislador, tal regra não deve ser aplicada à espécie.

Se não houver no ordenamento jurídico positivo, outra norma que possa servir para resolver o problema, o juiz deve considerar-se como se estivesse diante de uma espécie de lacuna.

O problema de decidir se uma norma jurídica é ou não aplicável a um determinado caso concreto, não se resolve pelo procedimento de lógica dedutiva, mas sim um problema que pode ser solucionado somente por ponderação e estimativa dos resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações reais.

Conclui RECASÉNS que correto é o caminho de se considerar a equidade como "um procedimento adaptação" das normas jurídicas aos casos práticos, conjugando-as com as cambiantes necessidades da vida.

A eqüidade não é um método de interpretação, mas sim o meio de interpretação, pois foi um pressentimento do "logos" do razoável em matéria de interpretação das normas jurídicas.

Todavia a eqüidade servirá:

* para iluminar em termos gerais da função criadora do juiz, pondo em evidência que esta função exige necessariamente uma atividade estimativa, portanto uma realização implícita e explicita de uma série de valores;

* para descobrir a índole da situação em que se encontra o juiz, no momento em que a norma positiva aparentemente, se aplicável ao caso concreto levaria a uma solução injusta; e para mostrar o que o juiz deve fazer nesse caso;

* para orientar o juiz quando tenha que suprir lacunas.

3. Conclusão.

Denota-se claramente que RECASÉNS não defende o abandono do dogma da submissão do juiz ao Direito positivo, considerado por ele como garantia básica de justiça e do pleno funcionamento do ordenamento jurídico, mas sim uma autêntica interpretação capaz reconstruir de forma imaginária a real vontade do legislador, servindo exatamente ao mesmo fim a que ele se propôs no momento da elaboração da norma.(8)

Sob esse ângulo, a eqüidade exerce função integrativa, uma vez esgotados os mecanismos previstos pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, dando ao juiz poder discricionário, mas não de arbitrariedade. É uma autorização de apreciar, eqüitativamente, segundo a lógica do razoável, interesses e fatos não determinados a priori pelo legislador, estabelecendo uma norma individual para o caso concreto ou singular. A eqüidade não é uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade condicionada às valorações positivas do ordenamento jurídico, ou melhor, relacionada aos subsistemas normativos, fáticos ou valorativos, que compõem o sistema jurídico.

MARIA HELENA DINIZ(9), com muita propriedade preleciona que "...O raciovitalismo jurídico é fiel ao normativismo, pois a ciência jurídica deve estudar normas; porém, como estas são concebidas como objetivação vital, tal corrente propugna uma nova lógica jurídica que considera o direito em sua dialeticidade, sendo regida pelos princípios consistentes em regras de adequação não só entre a realidade e os valores, fins e propósitos, mas também entre propósitos e meios, meios e sua correção ética e eficácia. ..."

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ(10), ao estudar a utilização dos instrumentos de integração afirma que "... O juízo por eqüidade, na falta de norma positiva, é o recurso a uma espécie de intuição, no caso concreto, das exigências da justiça enquanto igualdade proporcional. O intérprete deve, porém, sempre buscar uma racionalização dessa intuição, mediante uma análise das considerações práticas dos efeitos presumíveis das soluções encontradas, o que exige dos juízos empíricos e de valor, os quais aparecem fundidos na expressão juízo por eqüidade. ..."

MARCIA FERREIRA CUNHA FARIAS(11), assinala que "... a hermenêutica ganha hoje sempre mais vigor diante da rapidez com que a realidade social se transforma; nesse aspecto, a lógica do razoável, com suas dimensões já estudadas, contribui, enormemente, para a criação judicial, sem que se perca a segurança jurídica (...) a rápida transformação social e a adequação da lei a casos concretos não devem impedir o juiz de buscar, a cada passo, distribuir justiça, e de o fazer com uniformidade, com coerência, de forma que o cidadão não seja surpreendido por interpretações díspares. A decisão judicial deve inserir-se nos mandamentos da lei, mas com a temperança do razoável e do atual, pois o Juiz "é um agente do Estado, é sempre bom repetir, que concretiza o trabalho do legislador. A lei só está concretizada quando interpretada e aplicada ao caso concreto. ..."

Conclui-se, à luz dos elementos estudados por RECASÉNS(12) que a realidade plena da situação social e histórica está impregnada por sentidos e significações que devem ser interpretados pelo aplicador da lei que decide o caso concreto e, que devem ser valorados à luz de critérios estimativos e axiológicos para calibrar a importância do alcance que se pretende atribuir a cada um, individualmente.

4. BIBLIOGRAFIA

Diniz, Maria Helena
. As lacunas do direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2005.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interpretada. São Paulo: Saraiva, 2007.

FARIAS, Marcia Ferreira Cunha. A norma no pragmatismo jurídico e a lógica do razoável. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 40 n.158, abr/jun.2003.

FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2001

REIS, Lidia de Almeida Prado. Dissertação de Mestrado apresentada junto á UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

SICHES, Luís Recaséns. Nueva Filosofia de la interpretacion Del derecho. México: Editorial Porrúa, S.A., 1980.

SICHES, Luis Recaséns. Tratado de Sociologia. Tradução de João Baptista Coelho Aguiar. Porto Alegre: Editora Globo, vol II.1970.

SICHES, Luis Recaséns. Experiência jurídica naturaleza de la cosa y Lógica "razonable". Fundo de Cultura Econômica. Universidad Nacional Autônoma de México, 1971.



Notas:

* Irma Pereira Maceira. Advogada. Doutoranda em Direito civil comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora de Direito Civil junto à UNIP - Universidade Paulista - Campus Anchieta. [ Voltar ]

1 - SICHES, Luís Recaséns. Nueva Filosofia de la interpretacion Del derecho. México: Editorial Porrúa, S.A., 1980, p.136. Segundo as próprias palavras de SICHES "... El hecho de que tales objetivaciones de la vida humana son re-vividas, reactualizadas sucessivamente por nuevos seres humanos, explica el hecho de que esos objetos culturales, a pesar de ser ellos en si inertes, cristalizados, adquierem nueva vida, cambian y evolucionam (...) y acontece también que al correr del tiempo cuando las normas juridicas pré existentes son aplicadas a nuevos hechos, van agendrando nuevos sentidos, cobram alcance diferentes de las que produjeron antãno". Voltar

2 - SICHES, Luís Recaséns. Tratado General de Filosofia Del Derecho. México: Editorial Porrúa S.A., 1959, p. 642. Voltar

3 - SICHES, Luis Recaséns. Tratado de Sociologia. Tradução de João Baptista Coelho Aguiar. Porto Alegre: Editora Globo, vol II.1970, p. 731/732. Voltar

4 - SICHES, Luis Recaséns. Nueva Filosofia de la interpretacion Del derecho.

México: Editorial Porrúa, S.A., 1980, p.260/264. Sobre o tema ler: Maria Helena Diniz, as lacunas do direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p.258/260; Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 92/97. Voltar

5 - SICHES, Luis Recaséns. Tratado General de Filosofia del Derecho, p. 544/545. Voltar

6 - Direito, Cidadania e Justiça: ensaios sobre lógica, interpretação, teoria sociologia e filosofia jurídicas/coordenadores Beatriz Di Giorgi, Celso Fernandes Campilongo, Flávia Piovesan. LIDIA REIS DE ALMEIDA PRADO, colaboradora. Alguns aspectos sobre a lógica do razoável. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 69. Voltar

7 - SICHES, Luis Recaséns. Nueva Filosofia de la interpretacion Del derecho. México: Editorial Porrúa, S.A., 1980, p.260/262. Voltar

8 - FARIAS, Marcia Ferreira Cunha. A norma no pragmatismo jurídico e a lógica do razoável Revista de Informação Legislativa. Brasília, ª 40 n.158 abr/jun, 2003, p.92. Voltar

9 - DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução a Ciência do Direito.São Paulo: Saraiva, 2005, p. 97. Voltar

10 - FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2001, p. 299/300. Voltar

11 - FARIAS, Marcia Ferreira Cunha. A norma.... p.92/93. Voltar

12 - SICHES, Luis Recaséns. Experiência jurídica naturaleza de la cosa y Lógica "razonable". Fundo de Cultura Econômica. Universidad Nacional Autónoma de México, 1971, p. 526/527. Voltar

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3 Comentários

Charles Albert Garcia advogado06/05/2009 22:32 Responder

Interessante a matéria.

Charles Albert Garcia advogado06/05/2009 22:33 Responder

Interessante a matéria.

jaqueline teixeira netto goulart advogada08/05/2009 11:04 Responder

Tema de difícil pesquisa que foi bastante explorado pela Dra. Excelente.

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