Impeachment: em decisão criativa STF afasta-se do constitucional Estado Democrático de Direito

O Estado-juiz, quando da prestação da tutela jurisdicional, se coloca entre partes, acima e equidistante delas. A mesma “distância” que uma necessitar percorrer para fazer valer as suas pretensões em juízo a outra também deverá caminhar - imparcialidade.

Fonte: Leonardo Sarmento

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"Democracia é um processo dinâmico inerente a uma sociedade aberta e activa, oferecendo aos cidadãos a possibilidade de desenvolvimento integral e de liberdade de participação crítica no processo político em condições de igualdade económica, política e social." (Canotilho).


O pais atolado em um mar de lama caótico como “nunca antes visto na história deste país”. Uma crise que não se percebe o fim ao empreendermos um olhar prospectivo-realista. O Poder tripartido mergulhado na mais absoluta imoralidade sistematizada, quando há um sistema de mutua blindagem para que se perpetrem as mazelas de uma impunidade recíproca.


Não há uma luta democrática pelo poder. Em uma promíscua relação - poder x povo - aquele sem pudor ou comprometimento com este, com o munus público, que ludibria os sem cultura suficiente para distinguir; compra alguns intelectuais imorais que distinguem, mas fingem não ver; e conta com os que distinguem, porém optam por uma egocêntrica acomodação descompromissada com os interesses difundidos, com os interesses maiores do todo.


A ideia de que o poder é uno de fato reverbera, inclusive nos termos de uma só ideologia apodrecida com práticas políticas desviadas e impunes por acobertamentos mútuos. A imoralidade no trato da coisa pública tornou-se a regra, quando ainda procuramos onde estariam as exceções. O sentimento difundido que mistura omissão e sonegação de esforços pelo bem comum, com o hiperbólico e aético apoio às condutas desviadas em parcelas da sociedade, fazem indelevelmente do Brasil um país sem futuro.


Quando parcela dos já poucos discernidos desvirtuam-se das leituras éticas que se fariam no espírito democrático de um Estado de Direito para tutelar os interesses de um poder declaradamente imoral, ilegal e que apenas aos bolsos dos “companheiros” engorda, a revolução seria o escapismo possível para o restabelecimento da ordem democrática. Mas que revolução “cara-pálida”, quando o povo não foi preparado para compreender o seu significado...


O Supremo Tribunal Federal (aqui reportamo-nos à Casa sem particularizar seus membros) em uma de suas últimas decisões de repercussão política pré-carnaval desbotou deliberados tons democráticos de nossa Constituição Republicana de 1988 para despoticamente sufragar a chincalha, escarnecer com a ética e com o direito posto.


Ao dispor sobre a ritualística do constitucional procedimento de impeachment da presidente Dilma Rousseff engenhosamente tergiversou na interpretação de comandos constitucionais com o objetivo antidemocrático de inviabilizar o processo de impedimento da presidente e defender a bandeira partidária que possui maioria absoluta no Supremo Tribunal Federal.


Não costumamos elucubrar com conjecturas, porém nos corredores dos poderes corre a existência de um verdadeiro “pacto” pela manutenção do poder ilegítimo, ilegítimo desde a reeleição que se fundamentou em mentiras explícitas e maquiagens da verdade, e de lá para cá apenas fez confirmar o fenômeno da perda da legitimidade democrática do poder que se constituiu.


A legitimidade conferida ao poder constituído, vale lembrar, é atribuída pelo povo, e só o povo tem o poder de retirar referida legitimidade. Se o escrutínio (o voto) confere legitimidade, esta legitimidade pode ser perdida quando o povo não mais ostenta a fidúcia para com o poder/mandato que elegeu. Assim que, democraticamente a constituição, entre outros instrumentos também democráticos optou pelo instituto do impedimento, para que por meio dos representantes eleitos pelo povo (via indireta) logre continuar a cumprir a vontade popular que pode ter-se modificado, sem a necessidade de suportar o término de mandatos não mais desejados e por isso impugnados com pedidos de revogação dos mandatos. Vale notar ainda, o agravamento previsto pelo constituinte exigindo para o processo de impedimento a comprovação da existência de crime de responsabilidade, quando a mera incompetência não se denota suficiente para a deposição do mandatário, como ocorre entre os Estados que adotam o recall, por exemplo, outra espécie de revogação de mandatos.


Assim como o voto é um dos símbolos da democracia, quando cabe ao povo direta ou indiretamente escolher os seus representantes, os procedimentos de revogação de mandatos são igualmente símbolos de uma mesma sadia democracia. O poder não emana do povo apenas nos momentos em que escolhe os seus representantes (momento do voto), mas perpetua-se e pode ser utilizado em todos os momentos em que a participação política do povo restar admitida pela Constituição, como é o momento em que se pleiteia pela revogação de um dado mandato quando terminada a confiança que motivou a sua escolha, nos termos da lei (sentido amplo).


São nestes termos que o processo de impedimento é um dos instrumentos mais democráticos que o poder constituinte elegeu para salvaguardar a vontade popular e cumprir a lógica já ditada pelo parágrafo único do artigo 1º, mantendo-se assim um todo harmônico e complementar sistema capaz de viabilizar a força normativa da Constituição.


O STF ao ardilosamente perpetuar as inconstitucionalidades praticadas no impeachment do ex-presidente Collor como fez a partir da leitura do artigo 86 da CF, alcançou o objetivo de “impedir o processo de impedimento”, que embora tivesse originariamente um mais forte viés político que jurídico restou inviabilizado a partir de uma decisão judicial.


No artigo de nossa lavra ao qual remetemos nossos leitores em link ao final, discorremos sobre a leitura nitidamente palaciana que ostentou a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, em especial ao mencionado art. 86 da CRFB.


A partir de uma interpretação absolutamente criativa do STF em relação a Constituição de 1988, subjugaram a Casa do Povo (Câmara dos Deputados) ao Senado Federal como se houvesse uma hierarquia entre as casas legislativas, quando é de conhecimento vulgar que o Senado Federal possui uma ampla maioria palaciana capaz de arquivar o impeachment, papel que a Constituição não houvera lhe atribuído, quando lhe conferiu o fundamental papel de julgar sobre o eventual crime de responsabilidade praticado pela Presidente, enquanto atribuíra à Câmara do Deputado sim, o papel de admitir ou arquivar o processo de impedimento com exclusividade, nos termos de um desejado equilíbrio entre as casas legislativas (Câmara e Senado) neste processo eminentemente politico.


O STF decidiu assim, que o papel da Câmara apenas será decisivo caso a Câmara vote pelo arquivamento. Em termos contrários, caso admita por uma exigente maioria de 2/3 o procedimento de impeachment, bastará a obtenção de uma mera maioria simples (metade mais 1) do Senado Federal para arquivar o pleito de impedimento e desfazer a deliberação e votação da Câmara dos Deputados obtida pelo exigente quorum de 2/3. Esdrúxulo? Pois é. O papel de juízo de admissibilidade que era da Câmara restou letra morta, pois quis o Supremo Tribunal Federal que o Senado Federal além de julgar o impedimento lhe coubesse ainda o poder de inadmitir o impedimento (barrá-lo). E o que pontuou esta mudança de leitura do texto constitucional firmada pelo STF? Trata-se de uma decisão do STF essencialmente político-ideológica para impedir que a democracia constitucional se cumpra por meio do regular processamento do impeachment nos termos dos interesse do Palácio do Planalto.


Uma decisão que retira poder atribuído pela Constituição de 1988 de uma das casas legislativas – Câmara dos Deputados – para atribuir ao Senado Federal, onde o Governo Federal consabidamente possui ampla maioria. É inapelavelmente uma interpretação inconstitucional em que o Supremo Tribunal Federal legisla positivamente, mexe na repartição de poderes da Constituição de 88 sem que se faça por meio de emenda à Constituição, único meio que revelar-se-ia hábil para referida alteração.


Vale lembrar para conformar as realidades de momentos históricos distintos, que o STF, na ocasião do impedimento de Collor, havia entendido que o juízo de admissibilidade praticado pelo Senado Federal era sim inconstitucional, em sede de mandado de segurança. Inobstante, àquela época Collor não havia representatividade política, não apresentava mínima governabilidade por pertencer a um partido nanico e sem apoio, quando o Senado, para demonstrar maior força política realizou também o juízo de admissibilidade que já se sabia seria de pronúncia como fora na Câmara, e o Supremo nesta verdadeira unanimidade no sentido da revogação do mandato entre as forças políticas daquele momento que se somava a pressão da sociedade que foi às ruas resolveu não interferir impondo o respeito da Constituição, fazendo vistas-grossas para a aplicação inconstitucional do art. 86 em comento que revelava-se incapaz de alterar o resultado final.


Trazendo para os hodiernos dias, quando pretendeu o STF realizar uma filtragem constitucional no rito de impeachment, esperava-se que a Constituição restasse reafirmada em sua força normativo-vinculante e não que reafirmassem inconstitucionalidades do passado em mais uma lamentável demonstração de que a nossa democracia é autocraticamente manipulada segundo as forças políticas dominantes de poder de dado momento, e não segundo as manifestações de vontade popular, donde se conclui que o poder não emana exatamente do povo além das linhas do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal.


Nunca é demais lembrar, que todo julgamento tomado pela pecha da parcialidade deve ser declarado nulo.


Leonardo Sarmento

Leonardo Sarmento

Professor constitucionalista

Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.


Palavras-chave: CF Impeachment STF Dilma Rousseff Estado Democrático de Direito

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