Historiografia[1] da guerra do Paraguai: muitas versões

A guerra do Paraguai uma mancha de sangue através dos dados sobre as populações envolvidas nos remete ao genocídio latino e, até hoje o total de mortos bem como o número de combates dos respectivos exércitos são contraditórios. Ao final, o Brasil e Argentina concentraram ainda mais as forças na região o que influiu bastante na história dos dois países. Desde a época colonial, a região platina fora palco de conflitos entre as metrópoles: Portugal e Espanha, onde a América portuguesa se encostava nas Índias de Castela.

Fonte: Gisele Leite

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Entre as primeiras obras brasileiras de caráter memorialista sobre a guerra está "Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai"[2] de autoria de Alfredo de Escragnolle-Taunay publicada em 1871 em francês, feita por ordem do governo brasileiro.

O relato revela cenários em contradição com a retórica militarista bem habitual da literatura da época. Era uma operação arriscada e mal planejada, decidida por oficiais sedentos de consagração, havendo medo, suicídio, indisciplina e a deserção, o abandono de combatentes doentes e o hábito do saque.

O golpe de Estado que impetrou a República no Brasil em 15.11.1889 expressou os interesses dos grandes proprietários provinciais, desobrigados pela superação da escravatura, em maio de 1888, da sustentação do centralismo monárquico, principal defensor daquela instituição. Ocorreu por ação direta da alta oficialidade militar, muito interessada na consolidação e radicalização de propostas das forças armadas como representantes principais dos interesses da ação.

Lembremos que a proposta de identidade nacional republicana, elitista e autoritária com as forças armadas que eram tidas como guardiãs dos interesses da nação, apoiou-se em narrativas patrióticas sobre a guerra contra o Paraguai, fortalecendo-se a historiografia patriótica sobre aquele confronto.

O ideal republicano consolidou com as razões e cenários sociais da guerra, privilegiando o choque entre a civilização (o Império Brasileiro) e a barbárie (o Paraguai), promovido pela agressão de Solano López, então chamado de ditador e megalômano.

As interpretações brasileiras de inspiração estatal prosseguiram hegemônicas até a década de 1970, sem questionamento por parte da historiografia acadêmica, desde 1864 sob o peso e controle da ditadura militar brasileira.

O revisionismo historiográfico, deu-se, através de interpretação contraditória às justificativas do Império e da Argentina, expressando-se por meio de intelectuais argentinos que denunciaram o confronto como agressão do Império brasileiro e do unitarismo liberal portenho contra os direitos provinciais argentinos e autonomia uruguaia e paraguaia.

O lopismo[3], movimento em prol de López, teve grande repercussão, ao interpretar as contradições, principalmente de segmentos populares vencidos[4] com as narrativas oficiais de vencedores[5] e das classes liberais paraguaias.

Desde 1950, com o movimento de libertação nacional na Ásia e África, com o fim da hegemonia stalinista sobre o marxismo, os movimentos mundiais de 1968, quando as novas leituras revisionistas procuraram superar as narrativas patrióticas, revelando causas essenciais a partir da narrativa de classes subalternizadas, na construção da história dos povos americanos.

Alguns autores argentinos aprofundaram e radicalizaram as interpretações federalistas argentinas. Tal opinião passou quase totalmente despercebida no Brasil, em razão dos frágeis laços entre as duas nações e, devido ao golpe militar de 1964 que desorganizou a intelectualidade brasileira e tornou o confronto quase um tabu.

O livro do engenheiro inglês George Thompson[6] que servira ao exército paraguaio foi obra pouco conhecida no Brasil e, foi apenas em 1968 apresentada em português. O livro é prejudicado pelo grande esforço do autor em aderir às teses dos vitoriosos e, ainda, dissociar-se de seu ex-protetor.

O livro “Il Napoleone del Plata”[7], do jornalista Manlio Canvognio, e do historiador Ivan Boris, publicado em 1970, na Itália e, traduzido em 1975 pela editora Civilização Brasileira, é o primeiro estudo revisionista de larga divulgação no Brasil, e destacou a orientação autonomista, autárquica e anti-oligárquica de Dr. Francia, questionada pela oligarquia comercial de Buenos Aires, política que teria favorecido o campesinato de origem guarani.

O estudo enfocou o desenvolvimento conhecido pelo Paraguai, a partir da propriedade pública de grande parte das terras do país, e que foram arrendadas aos camponeses, e do monopólio do comércio exterior, que ensejou relativa modernização, apesar de sua relativa pobreza.  De novo, a narrativa dos combates desde ótica simpática aos paraguaios, como país de sólidas raízes guarani-camponeses, apresenta um perfil mais equilibrado de Solano López.

Sublinhe-se que a publicação italiana teve limitada repercussão no Brasil e na orelha do livro, o editor Enio Silveira apresentou o Solano López como condutor de povos, chefe de grande brilho e coragem incomum, patriota paraguaio em busca de efetiva independência nacional e contrário às oligarquias postas a serviço do imperialismo britânico então dominante.

Em 1968, León Pomer lançara na Argentina “La guerra del Paraguay: Gran negócio!” publicado no Brasil sob o título de "A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense", em 1979. Desapega-se a obra dos confrontos bélicos e, enfoca na análise das razões políticas, diplomáticas e econômicas da Guerra, destacando as contradições entre o caráter autárquico e autônomo do Paraguai e as necessidades de penetração do imperialismo no Prata, através das ações dos governos da Argentina e do Brasil.

A Inglaterra seria a maior beneficiária da guerra. Depois, o mesmo autor publicaria outro breve ensaio sobre o mesmo tema. Em 1978, o historiador Raul de Andrada e Silva, professor aposentado da USP, publicou sua tese de doutoramento intitulada “Ensaio sobre a ditadura do Paraguai” (1814-1840) com base na rica bibliografia platina e paraguaia, sobretudo, no processo que gerou a origem e consolidação da ditadura monopolista de Dr. Francia, como expressão de movimento autonomista paraguaio anti-espanhol e anti-colonialismo portenho, apoiado nos pequenos criadores, plantadores e  no largo campesinato de origem guarani, segmentos sociais interpretados pelo regime francista.

A tese é de grande equilíbrio, erudição e densidade e, ainda, narra sobre a fundação do Paraguai independente, o processo histórico que determinou os regimes de Celso Antonio e Francisco Solano López e a própria guerra, e que foi desconhecido por praticamente todos os trabalhos brasileiros posteriores.

Em março de 1979, com a obra intitulada “Genocídio americano: a Guerra do Paraguai”, o jornalista Júlio José Chiavenatto, retoma algumas teses revisionistas que superavam as narrativas factuais e patrióticas, trazendo ampla discussões sobre as razões do confronto, apresentando como agressão do Império do Brasil contra a nação e o povo paraguaio, em vez, de produto da vontade de líder desvairado.

A obra fora lançada dias após do último general-ditador brasileiro e, o estudo conheceu enorme consagração, sem qualquer divulgação institucional, e tendo ganhado trinta e nove edições, com tradução para espanhol, México e no Paraguai (em guarani). A obra se tornou referência da historiografia brasileira e, passou a pautar o ensino escolar e os futuros estudos sobre a guerra.

A sua linguagem jornalista facilitou o enorme acolhimento da obra. As sequelas da crise mundial em meados da década de setenta embalavam a retomada das mobilizações sindicais e democráticas, trincando a hegemonia construída pela ditadura militar brasileira.

Chiavenatto descontruía então a narrativa militar e patriótica da história do Brasil, colocando o mundo do trabalho como referência por mais de uma década no país. A nova realidade política e social do país exigia eficientes representações do passado, interpretando as necessidades de trabalhadores e criava condições para sua recepção e legitimação.

Os críticos[8] mais exagerados se questionam o porquê a historiografia acadêmica não fez leitura semelhante, porque houve enorme silêncio sobre o trabalho como de Raul de Andrada e Silva e, ainda, quais seriam as razões de quase vinte e cinco anos de silêncio para a produção de questionamento essencial daquele ensaio.

Esse ensaio transformava os governos do Império do Brasil e da Argentina liberal em meras marionetes inglesas. Principalmente, por pela pressão do interesse inglês na imposição do liberalismo na região. A crítica da radicalização de Chiavenatto da guerra do Paraguai tida como exigência do imperialismo inglês e os interesses livre-cambista fossem uma forma ainda mais arbitrária atribuindo toda responsabilidade no confronto.

São recorrentes as radicalizações-absolutizações enfáticas sobre a autarquia inicial do Paraguai que era país moderno, de população totalmente alfabetizada e de progressista com siderurgia, ferrovias, telégrafos e, etc. São comuns os fenômenos como a arianização do Brasil com arrolamento de afrodescendentes, onde se contabiliza que havia um branco para cada quarenta e cinco soldados negros, soldados paraguaios, sobretudo, euro-descendentes (era cinco brancos para um mestiço ou negro).

Tais pecadilhos não anularam as importantes superações sobre as razões materiais da guerra do Paraguai, a importância a intervenção no Uruguai, a discussão da formação social paraguaia, dificuldades estruturais do Império brasileiro escravagista de livre guerra nacional, a derrota objetiva dos povos, a privatização de terras públicas paraguaias e a satelização do Paraguai.

Enfim, o genocídio[9] americano foi, de fato, o primeiro trabalho historiográfico a realizar crítica geral desde a ótica das populações envolvidas no confronto, desorganizando as representações hegemônicas. A difusão da memória popular, o rosário de horrores que fora aquela guerra que foi soterrada por discurso nacional e patriótico[10].

Enfim, a restauração historiográfica ganhou impulso no final de 1980 pela onda contrarrevolucionária mundial que consagrou a hegemonia capitalista e, hoje em crise econômica. Decretou-se a impossibilidade de interpretação do passado, e, portanto, o fim da história como ciência, sendo substituída pelo relato da vida privada, pelo imaginário e pelo exótico.

Rejeitou-se a narrativa totalizante e valorizou-se novas histórias política e cultural, promovendo a restauração de velhas interpretações idealistas do passado, com ênfase na narrativa política factual.

Ao final de 1990, com a consolidação do movimento geral de restauração impulsionado pela mídia, criavam-se condições para a concretização da revisão quanto à Guerra do Paraguai, devido ao caráter central dos fatos para a ideologia de Estado e ao sucesso de Chiavenatto.

Em 1991, Francisco Doratioto publicou “A guerra do Paraguai: 2ª visão” e, 1996, O conflito com o Paraguai: a grande guerra do Brasil.  E, tais trabalhos registraram grande evolução na leitura dos fatos.

Superando as limitações da historiografia tradicional, ao apontar as ambições de López como causadoras da guerra e, por outro lado, da teoria imperialista que responsabilizava a Inglaterra pelo confronto. O conflito seria, essencialmente, produto da formação e definição dos Estados nacionais, em que setores da classe dominante seriam hegemônicos na organização estatal e, portanto, os mais beneficiados por esta, na região do Rio da Prata. Superando a historiografia patriótica e os lapsos das leituras revisionistas brasileiras.

O autor apresentou, sinteticamente, a conjuntura do Prata quanto aos países nos acontecimentos, a crise do regime colonial, ao início da guerra, enfatizando a tentativa da burguesia mercantil portenha de impor sua hegemonia regional, grande razão da independência e do isolamento paraguaio. E, ainda assinalou a vontade de domínio do Prata levou o Império a obstaculizar a reconstituição nacional do Vice-Reino do Prata[11].

Doratioto analisa o relacionamento entre o Império brasileiro e o paraguaio, determinado pela vontade do povo guarani em demarcar as fronteiras a partir da situação do regime colonial, enquanto o Império, interessado na livre navegação dos rios paraguaios, defendia a delimitação apoiada no princípio uti possidetis de facto. Ressalta que o Império e a Argentina mobilizavam-se para que o Paraguai não se tornasse potência regional.

Uti possidetis ou uti possidetis iuris é um princípio de direito internacional segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre este. A expressão advém da frase uti possidetis, ita possideatis, que significa "como possuís, assim possuais".

Estes são os princípios legais da ação romana direta e escritos em latim. Uti possidetis iuris significa "você usará ou que possui de acordo com lei ou lei" e uti possidetis significa de facto "você utilizará ou que possui de acordo com lei ou lei ". Define-se, em termos simples, como "posse legal" e "posse efetiva", respectivamente. Sem questão pública internacional, esses termos são usados ​​para resolver disputas entre Estados em relação a conflitos territoriais comumente gerados após guerras.

No caso da história da América do Sul, esses conceitos têm grande importância geopolítica, uma vez que dois vice-reinados foram definidos ou controlados territorialmente, e durante o período do fim da colônia influenciando na definição de fronteiras de novas nações.

Em 1810, Simón Bolívar[12] propôs que as novas nações hispano-americanas, anteriormente com domínio espanhol, continuassem a ser governadas pelo uti possidetis iuris. Ao contrário, o Brasil preferiria continuar aplicando ou uti possidetis de facto, como fazia anteriormente ao coroa português.

Em 1852, a queda de General Rosas[13] e a consolidação da oligarquia mercantil argentina (portenha) criaram nova situação. E, depois o esforço de autonomia do governo uruguaio blanco levou a que o Brasil se aproximasse da Argentina liberal-mitrista que concordou com a intervenção apoiada nos colorados uruguaios, associados à manutenção da submissão em relação à Argentina e, sobretudo, ao Império. Os blancos[14] contavam com apoio e simpatia da província de Entre Rios, dos federalistas argentinos e do Paraguai, pois estava interessado em garantia sua saída ao mar.

A permissão da Argentina mitrista[15] enfraquecida à intervenção imperial traçou o destino do Paraguai, pois ao final dos anos de 1850 a hegemonia do Império não apenas era completa no Prata devido a resistência do governo de Assunção. O controle do Uruguai e do porto de Montevidéu punha fim à possibilidade de livre saída ao mar do Paraguai e assentava golpe terrível ao federalismo argentino, ensejando que o governo paraguaio determinasse a intervenção no Uruguai, como causa bélica.

Em 1864, com a intervenção no Uruguai o que ensejou o envio de tropas paraguaias para ocupar as terras em litígio, no atual Mato Grosso do Sul e, a pedido da Argentina, nas mãos de liberais portenhos, de passagem de tropas por Corrientes. A esperada negativa de Mitre de conceder autorização, motivou a declaração de guerra à Argentina, o que enfraqueceu muito o apoio paraguaio naquele país.

Apesar da ênfase nas relações político-diplomáticas, procurou-se a definir sociologicamente os grandes protagonistas históricos, em superação de historiografia político-descritiva. Afinal, Rosas é proposto como líder dos produtores de charque para exportação, apoiado pelos comerciantes e financistas portenhos, monopolizadores do comércio exterior.

Porque os colorados uruguaios[16], representavam, sobretudo, os comerciantes e as potências europeias vinculados às ideias liberais, enquanto os blancos representavam os proprietários rurais que se opunham à intervenção europeia no país.

Os unitários argentinos são definidos como “basicamente” “comerciantes de Buenos Aires”, que “defendiam um modelo centralizado”, enquanto os federalistas, como grandes estancieiros, “pequenos manufatureiros e comerciantes vinculados ao mercado regional”, pró-descentralização. 

Afirma-se que “apenas a burocracia imperial” era capaz de defender a escravidão, ao dispor “de meios diplomáticos e políticos capazes de se oporem às pressões britânicas” anti-tráfico. Apenas ela era capaz igualmente de defender as “prerrogativas dos grandes proprietários rurais” e de “manter a ordem” e seus “privilégios”.

Um conflito que envolvia as principais classes sociais da região, mais do que as nações nas quais se organizavam. Sobretudo, nas páginas finais, o ensaio empreende justificativa sistemática da ação do Império, acompanhada sempre da apresentação da busca de hegemonia regional pelas “classes dominantes” do Brasil e da Argentina que desembocou no terrível drama. É clara a tendência à leitura relativista da ação das nações, como jogo normal de defesa de seus interesses, estranho a qualquer valoração ética.

Enfim, o ensaio superou as apresentações maniqueístas da historiografia brasileira e, não já as tradicionais demonizações do chefe de Estado paraguaio ou de suas tropas. Retoma a crítica à tese imperialista apresentada como resultado de bandeiras de lutas políticas dos anos sessenta e setenta, como antiamericanismo e terceiro-mundismo, projetadas na análise do passado e em busca de fundamento histórico. Visão não de todo incorreta, apesar de ser redutora e parcial, da tese inglesa esposada apenas por parte da literatura revisionista, em geral popular-americana, e não marxista.

O ensaio de 1991 constitui relevante contribuição ao conhecimento histórico sem recair em radicalização crítica ou na defesa apologética da ação do Império brasileiro. Enfim, Doratioto em 1996 lançou análise do conflito propriamente dito e trouxe reflexão sociológica e estrutural dos sucessos e pela ênfase da defesa nacional e patriótica da ação do Império do Brasil.

Realidade fixada na ojeriza de Caxias[17] à tropa formada por negros livres, libertos, alforriados, etc., não adaptados a um exército nacional moderno, devido ao caráter não cidadão e não-nacional do Império – e não à má qualidade racial dos soldados imperiais.

Em 13 de dezembro de 1868, havia décadas no combate aos cativos sublevados, o alto oficial militar lembrava: “[...] todas as vitórias alcançadas [...] têm sido em grande parte devidas ao cuidado com que nunca consenti que forças nossas [...] se batessem com as do inimigo sem se acharem muito superiores em número.

No texto “O imperialismo britânico e a Guerra do Paraguai”, questiona a tese da responsabilidade direta e indireta do imperialismo britânico[18], que lembra ser perfilhada, no geral ou no particular, por autores como Hobsbawm, Gunder Frank etc.

Registra enorme admiração pela hegemonia mundial do capitalismo britânico no século XIX; questiona a determinação mesmo “informal” da política sul-americana pelo imperialismo; sugere as vantagens do relacionamento dos latino-americanos com o capital inglês.

Em 9 de novembro de 1997, o Caderno Mais, da Folha de São Paulo ressaltava a necessidade do restauro historiográfico sobre a Guerra contra o Paraguai em artigos coordenados por R. Bonalume Neto – “Novas lições do Paraguai”.

A operação escancarava o viés ideológico em sua chamada: “Historiadores reveem a tese de que o país de Solano López teria sido uma Cuba [Sic] do século XIX derrotada pela aliança militar do Brasil com a Argentina e o Uruguai [sic].” A matéria afirmava que o Brasil conhecera “rolo compressor ideológico [sic] nos últimos anos do regime [sic] de 1964, principalmente graças a dois best sellers desse nacional-populismo revisionista, As veias abertas da América Latina, do uruguaio Eduardo Galeano [...] e Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai”, de J.J. Chiavenatto.”

Em 2000, sob o patrocínio do Instituto Histórico Geográfico do Mato Grosso do Sul, o engenheiro-agrônomo Acyr Vaz Guimarães, da Academia de História Militar Terrestre do Brasil, publicou A guerra do Paraguai: verdades e mentiras, trabalho para-historiográfico, no qual, “em 214 pontos”, propõe-se a desmentir Chiavenatto, a besta negra a ser abatida da historiografia revisionista. O livro potencializa as propostas da historiografia nacional patriótico e registra a visão da oficialidade do Exército da luta contra o revisionismo historiográfico como parte do combate ao “comunismo” no Brasil.

A historiografia sofreu mudanças profundas desde o desencadeamento do conflito e, em sua grande parte, a dos países envolvidos limitou-se apenas a explicar suas causas como devida somente à ambição expansionista de Solano López.

Depois, apontou-se que o conflito foi de responsabilidade do Império do Brasil e da Argentina Mitrista[19]. Nesta leitura, destacaram-se os intelectuais federalistas argentinos e uruguaios, tal como Juan Bautista Alberdi, Luís Alberto Herrera. Tal literatura continua sendo desconhecida no Brasil.

No Paraguai, o revisionismo da história com destaque para a ação de Francia como o fundador do Paraguai independente, entre os historiadores cabe mencionar Cecílio Baez, Manuel Domínguez, Blas Garay e, Juan Leary que é considerado do iniciador da historiografia lopizsta (ou lopista) positiva, isto é, que deu explicação positiva sobre a guerra e fez relato prometeico de Solano López. Também essa literatura é ignorada no Brasil. Tal tese jamais adotou a ideia de que a Inglaterra era a responsável pelo conflito.

Nos anos cinquenta, surgiu na Argentina por influência marxista, populista e americanista e, também revisionista, com destaque para José Maria Rosa, Enrique Rivera, Milcíades Peña, Adolfo Saldías, Raúl Scalabrini Ortiz, igualmente pouco estudada no Brasil.

A partir dos anos sessenta, surge segunda corrente historiográfica bem comprometida com a luta ideológica contemporânea entre o capitalismo e comunismo, e direita e esquerda e, apresentou a tese que o conflito bélico teria sido motivado pelos interesses do Império britânico que buscava impedir a ascensão de nação latino-americana poderosa militarmente e economicamente.

Novos estudos, a partir da década de oitenta propuseram razões diferentes, revelando que as causas se deveram aos processos de construção dos Estados nacionais dos países envolvidos.

Entre os ligados à esquerda marxista, havia o interesse em transformar o Paraguai de Solano López numa espécie de precursor do regime comunista de Cuba. Conforme o revisionismo adotado por esses historiadores, Solano López pretendia implementar no Paraguai um regime nacionalista autônomo, oposto ao grande império de sua época, no caso a Grã-Bretanha, de maneira análoga à oposição feita por Cuba aos EUA após a ascensão de Fidel Castro. Também havia a intenção, por parte desses historiadores, de prejudicar a imagem dos heróis da guerra cultuados pelos regimes ditatoriais militares de então que os perseguiam.

Entretanto, os marxistas não foram os únicos a encamparem tal interpretação. O reforço do suposto heroísmo de Solano López serviu também àqueles ligados à direita nacionalista. Dentre esses últimos, destaca-se o próprio ditador Alfredo Stroessner[20], que chegou a patrocinar a filmagem do épico "Cerro Corá"[21], com o objetivo de reforçar a imagem de Francisco Solano López como mártir paraguaio.

Essa visão revisionista, que ainda é ensinada na maior parte das escolas dos países latino-americanos, carece de qualquer tipo de provas concretas, dados ou evidências empíricas.

Contudo, os efeitos da visão historiográfica revisionista do conflito foram impactantes, pois diversas gerações de latino-americanos (principalmente brasileiros, argentinos e uruguaios) vieram a observar seu passado de uma forma pessimista e a desprezarem os vultos históricos de seus países.

Tais efeitos foram sentidos sobretudo no Paraguai, onde, conforme anteriormente ressaltado, a versão revisionista foi assumida como doutrina oficial de Estado, ainda mais depois da transformação de Solano López em herói sem defeitos.  O historiador Francisco Doratioto esclarece o tema:

          “Culpar a Grã-Bretanha pelo início do conflito satisfaz, nas décadas de 1960 a 1980, a distintos interesses políticos. Para alguns, tratava-se de mostrar a possibilidade de construir na América Latina um modelo de desenvolvimento econômico não dependente, apontando como um precedente o Estado paraguaio dos López. Acabaram, por negar essa possibilidade, na medida em que apresentaram a potência central - a Grã-Bretanha - como onipotente, capaz de impor e dispor de países periféricos, de modo a destruir qualquer tentativa de não-dependência. Como resultado, o leitor desavisado, ou os estudantes que aprenderam por essa cartilha, podem ter concluído que a história de nosso continente não se faz ou não se pode fazer aqui, pois os países centrais tudo decidem inapelavelmente. Os latino-americanos, nessa perspectiva, deixam de ser o sujeito de sua própria história, ou, de outro modo, veem negado seu potencial de serem tais sujeitos.”

O historiador Francisco Doratioto apresenta de maneira concisa esta nova visão sobre as causas do conflito:

           “A Guerra do Paraguai foi fruto das contradições platinas, tendo como razão última a consolidação dos Estados nacionais na região. Essas contradições se cristalizaram em torno da Guerra Civil uruguaia, iniciada com o apoio do governo argentino aos sublevados, na qual o Brasil interveio e o Paraguai também. Contudo, isso não significa que o conflito fosse a única saída para o difícil quadro regional. A guerra era umas das opções possíveis, que acabou por se concretizar, uma vez que interessava a todos os Estados envolvidos. Seus governantes, tendo por bases informações parciais ou falsas do contexto platino e do inimigo em potencial, anteviram um conflito rápido, no qual seus objetivos seriam alcançados com o menor custo possível. Aqui não há ‘bandidos’ ou ‘mocinhos’, como quer o revisionismo infantil, mas sim interesses. A guerra era vista por diferentes ópticas: para Solano López era a oportunidade de colocar seu país como potência regional e ter acesso ao mar pelo porto de Montevidéu, graças a aliança com os blancos uruguaios e os federalistas argentinos, representados por Urquiza; para Bartolomeu Mitre era a forma de consolidar o Estado centralizado argentino, eliminando os apoios externos aos federalistas, proporcionando pelos blancos e por Solano López; para os blancos, o apoio militar paraguaio contra argentinos e brasileiros viabilizaria impedir que seus dois vizinhos continuassem a intervir no Uruguai; para o Império, a guerra contra o Paraguai não era esperada, nem desejada, mas, iniciada, pensou-se que a vitória brasileira seria rápida e poria fim ao litígio fronteiriço entre os dois países e às ameaças à livre navegação, e permitira depor Solano López.”

         “Dos erros de análise dos homens de Estado envolvidos nesses acontecimentos, o que maior consequência teve foi o de Solano López, pois seu país viu-se arrasado materialmente no final da guerra. E, recorde-se, foi ele o agressor, ao iniciar a guerra contra o Brasil e, em seguida, com a Argentina."

Esta última corrente historiográfica é a que está sendo levada em conta pelos livros e obras mais recentes que tratam do assunto. Tal fato é proveniente do fato de que ao contrário das duas correntes anteriores não se trata de um estudo baseado somente em ideologias ou patriotismo, mas de um trabalho científico.

Pode-se deduzir que a Guerra da Tríplice Aliança trouxe grandes benefícios para a Grã-Bretanha. E não apenas do derrotado Paraguai, mas também dos vitoriosos Argentina, Brasil e Uruguai. E claro também que essa guerra foi parte de um conjunto de guerras que caracterizam a emergência e o desenvolvimento do fenômeno imperialista sob hegemonia britânica.

Igualmente, pode-se deduzir que a Pax Britannica[22] não significou paz, mas a manutenção de uma ordem mundial em favor, primeiro e especificamente, da Grã-Bretanha e a seguir dos países centrais.

Em outras palavras, de uma ordem mundial em favor dos interesses da burguesia britânica, europeia e dos países centrais em geral; isso, em detrimento de seu proletariado e de outras classes subalternas, além dos países periféricos em geral. Estes últimos, por agressão direta e/ou domínio econômico, foram transformados em colônias, semicolônias ou países dependentes.

Diante desse cenário, hoje é possível encontrar três versões historiográficas diferentes: a tradicional, a revisionista e a neorrevisionista.

Tradicional

Esta versão muito popular até a década de 1960, tratava a guerra de uma forma bastante simplória, resumindo todo o conflito ao desejo expansionista territorial do ditador Solano Lopez, desprezando outros fatos e eventos importantes ocorridos neste período.

Revisionista[23]

Antes da guerra o Paraguai era tido como uma potência econômica da região – essa versão foi desmentida também posteriormente com estes novos documentos – o que incomodava de certa maneira os ingleses, os quais por causa desses fatores econômicos, teriam agido em conluio com os brasileiros e argentinos para que estes declarassem guerra ao Paraguai. Essa versão predominou no Brasil dos anos 1960 até meados da década de 1990.

Neorrevisionista

Esta versão do conflito trata da perspectiva de que a guerra ocorrera por conflitos regionais, pela livre navegação no Rio Paraguai além da delimitação de territórios entre os países, visto que na segunda metade do século XIX o Paraguai buscava legitimar o posto de terceira potência – o Brasil e a Argentina eram as outras duas – do continente sul-americano.

A corrente mais tradicional ou patriótica, conforme caracteriza Squinelo, as obras tiveram forte influência do positivismo e, também dos relatos e escritos de militares que participaram na guerra e que foram publicados no fim do século XIX e início do século XX, destaca-se o relato do general brasileiro Dionísio Cerqueira que participou do conflito. Quando caracteriza Solano López como sendo um ditador e, que viu na invasão do Brasil ao Uruguai um pretexto para o rompimento das relações com o Brasil e o início da guerra.

A exaltação da pátria, do exército e dos grandes nomes que tiveram participação na guerra como Duque de Caxias e Dom Pedro II, é um traço marcante desse momento. Naquela época aprenderam que a nação brasileira cumpriu grande e significativa missão na Guerra do Paraguai, ou seja, libertou a população do tirano paraguaio. Tal visão estava mais preocupada em incutir nos alunos o sentimento de exaltação à pátria do que de fato problematizar o conflito e refletir sobre as suas consequências[24].

Entre os defensores de tal versão temos Luiz Souza Gomes, em seu texto intitulado Guerra das quatro nações, que representa bem as interpretações dessa corrente mais tradicional. O autor estabelece paralelo entre Brasil e Paraguai, colocando de um lado o Brasil como possuidor de índole pacífica e que repelia a guerra como meio para solução dos conflitos entre nações e, de outro lado, o Paraguai que no período posterior à sua independência passou a se constituir como um país belicoso e armado.

A ênfase principal da interpretação personalista de Gomes é a figura de Solano López a quem foi atribuída a grande responsabilidade pelo conflito. O ditador é chamado de alucinado, que teve crescimento pela rígida severidade de seu suposto pai, sem tolerância, afeto ou cuidado de modo que nem mesmo Padre Maix e os responsáveis por sua educação teriam conseguido transformar o caráter do jovem Solano.

Também descreve algumas das supostas ações que teriam sido praticadas pelo governantes paraguaio, atitudes estas sempre caracterizadas por truculência e crueldade.

Outro estudioso cuja interpretação possui semelhanças com a de Gomes, é a do historiador Rocha Pombo que apontava Solano, como o principal responsável pela guerra. Frisava a crueldade e maldade com que o mesmo tratava seus amigos e pessoas mais próximas de seu convívio.

Em tais interpretações, os motivos da guerra são buscados nas ações de um indivíduo isolado, no caso Solano. Nelas não é buscada uma reflexão e problematização dos acontecimentos, mas observa-se mais um modelo de análise factual, oficial, que lança estereótipos tanto sobre o Paraguai quando sobre Solano López. O interesse político em tal visão sobre a guerra é defender, justificar e exaltar a ação do Brasil na guerra, notando-se também algumas das informações trazidas em certas interpretações não possuem qualquer base em uma análise documental.

O que se viu a partir da década de sessenta foi o surgimento de outra linha interpretativa para o conflito platino. Tal corrente foi denominada revisionista, pois se propunha a efetuar uma revisão sobre a guerra de modo a questionar a ideia de que Solano teria sido o único responsável pelo conflito e, neste caso, cabe entender o contexto histórico em que se dá o surgimento desta corrente historiográfica.

As respectivas produções situam-se em um momento em que vários países da América Latina estavam sob o regime de ditaduras militares e, sendo assim, as publicações daquele período levantavam questionamentos sobre a atuação do exército brasileiro na guerra.

Pode-se colocar também aliado a isso uma certa inversão de papéis, visto que o Brasil deixou de ser visto como grande herói para ser visto como culpado pela devastação do Paraguai e, este, por sua vez, deixou de ser apontado como culpado pela guerra para assumir a posição de vítima do imperialismo inglês.

O historiador argentino Leon Pomer se levanta à tese da influência do imperialismo britânico na guerra, que por sua vez é caracterizada no início da obra pelo autor como uma guerra suja e indica para os fatores econômicos como sendo determinantes.

A obra de Pomer é situada em um período histórico marcadamente ditatorial, que havia se iniciado dois anos antes com o Golpe de Estado encabeçado pelo General Juan Carlos Ongania (1914-1995).

O autor discorre que na década de 1860, a Inglaterra se viu diante de um grande problema, ou seja, a guerra da secessão que prejudicou o fornecimento de algodão às suas fábricas e, assim, a potência ultramarina se viu então forçada a buscar outras fontes de fornecimento de algodão e cereais.

Diante de tal necessidade era preciso buscar aliados que aceitassem organizar as suas economias em função dos interesses ingleses. E, em algumas regiões da Bacia do Rio Prata poderia ocupar tal posição, porém, o Paraguai se punha como sério obstáculo.

O Paraguai seria uma ovelha negra sob os olhos da burguesia inglesa e de outras burguesias europeias altamente desenvolvidas, e, tal se torna, logo, aos olhos de alguns cavalheiros que no Prata e no Brasil traficam e comercializam com as potências Ultramar, sem se preocuparem com outra coisa, a não ser seus interesses mesquinhos e restritos interesses de classe.

Assim, o Paraguai se diferenciava dos demais vizinhos pelo seu avançado desenvolvimento e, por não possuir em sua estrutura de classes sociais que estivessem disposta a renegar os interesses nacionais em detrimento de seus interesses de grupo.

Diante de tal situação, na visão do historiador argentino, a formação de grupo. Na visão do historiador argentino, a formação da Tríplice Aliança não foi acidental nem circunstancial, ao revés, tinha o objetivo evidente e específico que consistia em estruturar nessa pare do mundo, o sistema econômico, político de relações e dependências em função de interesses das grandes potências centrais, das quais a Grã-Bretanha era a principal.

Pomer aponta para os empréstimos contraídos no Brasil e nos demais países aliados de modo a afirmar que a guerra foi paga basicamente com dinheiro dos ingleses. Posteriormente, no Brasil, o jornalista brasileiro Julio José Chiavenatto lançou a obra Genocídio Americano: a guerra do Paraguai, em 1979 que teve grande repercussão tanto no meio acadêmico como o público em geral.

O autor logo no prefácio critica as barreiras que impediam de chegar às respostas sobre a guerra. E, uma das principais barreiras seria a manipulação da onda de patriotismo que os historiadores oficiais criaram descrevendo fenômenos esparsos dessa guerra, para denunciar a posição crítica como antipatriótica.

Em seguida, ele indica que tais historiadores não abordavam a guerra de uma maneira crítica, mas estariam fazendo da sua alienação, um exercício de “cata às pulgas” dos detalhes históricos.

Deixa evidente a crítica às abordagens sobre a guerra que haviam sido feitas até então, principalmente, pelos historiadores tradicionais presos aos detalhes das batalhas e números do conflito.

O jornalista realça os interesses do capital inglês bem como os aspectos políticos e militares. Ao caracterizar o Paraguai como mais progressista da América do Sul, destacando-se, já em 1840, não possuir analfabetos.

O imperialismo inglês não quer mudanças no mundo, deixa claro a tese defendida pelo autor, da influência inglesa na guerra, a começar pelo próprio título. No século XIX, a Inglaterra dominava as relações comerciais externas, porém, dois problemas se colocaram: a guerra da secessão, que acarretou o corte de fornecimento de algodão e os movimentos nacionalistas nas colônias inglesas, que geraram alto custo com forças de ocupação.

Esses fatores levaram à necessidade de buscar outros fornecedores de algodão e o Paraguai representou uma opção. Porém, o autor observa que se estabeleceu então uma contradição no sistema imperialista inglês, visto que o Paraguai já possuía um parque industrial em desenvolvimento e a Inglaterra, ao adquirir o algodão paraguaio, percebe que corria o risco de ser um forte concorrente no Prata.

Salles levanta algumas críticas às versões revisionista e tradicional da guerra, apontando que se por um lado os historiadores tradicionais erraram por um excesso de factualismo e oficialismo, por outro, os revisionistas também pecaram por, em muitos momentos, pautarem-se em simplificações.

Destacada a crítica, o autor parte para o objeto central de seu estudo onde procura compreender a forma como se deu a constituição de um exército profissional durante a guerra e a maneira como este se relacionou com a sociedade daquele contexto histórico, principalmente tendo em vista tais relações com as camadas mais populares da sociedade e os escravos. Para tanto, o historiador procura traçar um quadro geral da sociedade brasileira e da sua política externa antes do conflito.

No quadro político, nas relações entre o Brasil e as potências estrangeiras, o mesmo procurava acentuar as suas diferenças com relação aos países vizinhos latino-americanos, apresentando-se como sendo mais forte politicamente.

Nesse quadro o Império brasileiro mantinha o firme propósito de afirmar e legitimar os seus interesses mantendo o controle da nação de maneira centralizada. Entre tais interesses, destaca-se a garantia da livre navegação na Bacia do Prata e as reivindicações territoriais nas áreas fronteiriças. Diante disso, a guerra do Paraguai foi ao mesmo tempo parte e fruto de um processo de transformações na sociedade brasileira em um período de transição do escravismo para o capitalismo, juntando-se a isso a fundação do partido republicano e o desenvolvimento do movimento abolicionista.

Salles argumenta que antes da guerra, o contingente do exército era muito pequeno e, sua estruturação se dava a partir da Guarda Nacional que era usada em determinados momentos na resolução de conflitos regionais e nas pendências com os países vizinhos, sendo em muitos casos, também servindo aos interesses de autoridades locais.

Diante de tamanho esforço de recrutamento é significativo o número de escravos que combateram do lado brasileiro, estimado pelo pesquisador em dez por cento do conjunto de tropas. A participação de parte dessa parcela da população que viva à margem da sociedade evidenciou uma contradição entre a estrutura político-jurídica liberal do Império brasileiro e a sua base escravocrata.

No pós-guerra deu-se um aumento do número de fugas e rebeliões, além da busca por direitos por parte de uma parcela de escravos. Salles também assinala a relevante participação dos chamados Voluntários da Pátria principalmente no começo da guerra, pois motivados pelo patriotismo que aflorou na sociedade brasileira.

Porém, com o trâmite do conflito e enfraquecimento desse sentimento, o grosso do exército brasileiro foi organizado de maneira coercitiva pelas autoridades locais e regionais no interior do Império. O autor frisa que tal mobilização não trouxe plenos direitos de cidadania para essas pessoas, mas contribuiu, significativamente para desmoralização do Império.

O exército, ao ser composto, durante a guerra, por membros de camadas sociais mais baixas e marginalizadas, de certa forma, foi afetado e, passou a ter vínculos com outras camadas populares e médias da sociedade. Perfazendo uma corporação mais permeada por contradições de todo social que se complexificava.

A partir daí, o exército pós-guerra passou ter peso maior na vida política brasileira, de forma que a Proclamação da República em 1889 teve com protagonistas os militares. Para Salles, outros momentos históricos ao longo do Século XX, como a Revolta Tenentista de 1920 e o Golpe Militar de 1964, também, evidenciam tal fato, apesar de que em contextos históricos distintos.

Outro expoente, dessa nova corrente historiográfica, trata-se de Francisco Doratioto que ao comentar as interpretações feitas seja pela conservadora ou pelo revisionismo histórico, critica ambas as abordagens. Acusou que tanto uma historiografia como outra procuraram simplificar as causas e o desenrolar da Guerra do Paraguai, ao ignorar o documento e anestesiar o senso crítico.

Rejeita a influência do imperialismo britânico defendida pelos revisionistas e, passa a defender a possibilidade de construção na América Latina de modelos de desenvolvimento autônomo, colocando o Paraguai de López como um modelo que poderia ter seguido por sua não dependência com às potências mundiais e, por seu grande desenvolvimento. Da mesma forma, o oficialismo paraguaio fez uso da imagem de López como vítima para defender os seus interesses ao longo da ditadura Stroessner.

Ao refutar a influência da Inglaterra na guerra, argumenta que os diplomatas britânicos que negociavam com o governo de López seguiram as instruções da Inglaterra, no sentido de impedir que o Paraguai envolvesse a Inglaterra em suas disputas com países vizinhos e garantir assim a livre navegação de embarcações inglesas nos rios Paraguai e Paraná.

Junte-se a isso, ainda, o rompimento diplomático entre Brasil e Inglaterra em 1863, devido ao bloqueio naval britânico na costa do Rio de Janeiro, encarado como humilhação pela opinião pública brasileira, e o fato que durante o conflito o representante inglês em Buenos Aires propiciava, por meio da mala diplomática britânica, comunicações frequentes de López com o exterior.

O historiador ainda apresenta carta datada de 04 de dezembro de 1864 escrita pelo representante britânico Edward Thornton e endereçada ao chanceler paraguaio José Berges, em um momento em que as relações entre Paraguai e Império estavam cortadas. Na carta o chanceler deplora o rompimento diplomático havido entre Paraguai e Basil e o desejo de reconciliação entre os dois países, colocando-se à disposição para auxiliar na resolução do impasse.

Tanto Chiavenatto como Pomer identificaram as altas somas de dinheiro inglês que financiou a guerra através de empréstimos feitos pelos países aliados para fundamentar o interesse da Inglaterra no conflito.

Segundo Doratioto, o recebimento de tais empréstimos, que foi mais recebido pelos aliados do que o Paraguai se justifica de que a partir de 1865 pois o mesmo passou a estar em desvantagem econômica, financeira e populacional em relação aos países da tríplice aliança. O capital não tem ideologia e realmente busca a melhor remuneração ao menor risco. Assim, ceder empréstimos ao governo paraguaio seria decisão de alto risco diante da impossibilidade de o país ganhar a guerra.

Ao pensar na guerra do Paraguai, não podemos nos ater a visão maniqueísta, nem procurar mocinhos ou vilões como fez o revisionismo, mas faz-se necessário que a guerra ocorreu em um momento de constituição dos Estados Nacionais, onde cada um dos países envolvidos no conflito possuía e defendia seus próprios interesses. Afinal, a guerra do Paraguai eclodiu em razão de contradições platinas, tendo como razão última a consolidação de Estados Nacionais na região.

E, conclui sua pesquisa[25] apontando para os efeitos da guerra, que proporcionou alteração no plano regional das relações entre os países envolvidos. Sobre o Paraguai, o autor coloca que o conflito significou a perda de disputas territoriais com seus vizinhos, a destruição do Estado existente e de sua economia de tal maneira que, aliado a isso, destacam-se a perda de vidas paraguaias girando em torno de sessenta e nove porcento de toda sua população na época.

Para o Império brasileiro, a guerra inesperada mostrou escancaradamente o despreparo militar[26] para tal empreitada. Mas, com a vitória, o exército saiu fortalecido do campo de batalha, passando a adquirir nova identidade e dissociar-se da monarquia, tanto, que mais tarde, desempenhou nobre papel na Proclamação da República em 1889.

A guerra do Paraguai foi interpretada por pesquisadores e estudiosos de diferentes correntes historiográficas, desde o fim do século XIX e no decorrer do século seguinte. Houve análise de diferentes ângulos.

Os tradicionais que por meio de uma análise personalista viam o governante paraguaio Solano López como sendo responsável e causador da guerra e com certo patriotismo defendiam a ação brasileira na disputa. A partir da década de 1960, a corrente revisionista, propôs a influência do imperialismo britânico como fator determinante para a deflagração de guerra e destruição do Paraguai. 

Mais recentemente na década de 1990, os pesquisadores neorrevisionistas indicaram que a guerra teria se constituído como fruto das contradições platinas e da consolidação dos Estados Nacionais na região.

A guerra do Paraguai foi o conflito externo de maior repercussão para os países envolvidos, quer quanto à mobilização e perda de vidas, quer quanto aos aspectos políticos e financeiros. É importante salientar que as teses apresentadas por Salles e Doratioto, entre outros pesquisadores, apresentam-se como sendo as mais aceitas, tendo em vista a farta base documental em que pautam as análises e as metodologias que usaram nas interpretações sobre o conflito.

Enfim, a Guerra do Paraguai ajudou na produção de uma cultura nacional durante o Império brasileiro e, foram forjadas estratégias políticas que impulsionassem o sentimento de pertencimento surgido durante o conflito por meio de manipulação do imaginário coletivo. De forma que os discursos produzidos pelos intelectuais da época que possuíam a função ideológica de transpor as aspirações dominantes, reforçando o poder simbólico do Império na construção nacional[27].

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Notas:

[1] A historiografia é o estudo como a história é escrita e relatada e como nossa compreensão histórica muda com o passar do tempo. A historiografia reconhece e discute esse processo de mudança, É o estudo das melhores formas de interpretar as fontes históricas e os modos como a história é escrita, incluindo-se a investigação histórica e a história da história.

[2] Sobre a Retirada da Laguna, o próprio autor destacou em suas memórias que o episódio muito provavelmente não teria a dimensão histórica que conheceu, não fosse seu valioso testemunho. "Começava a expedição de Mato Grosso. Dia por dia contei, oficialmente, a espaçada e morosa viagem que fiz pelas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso no Relatório Geral da Comissão de Engenheiros, por mim redigido, de Santos até a vila de Miranda, viagem completada por operações de guerra narradas no meu livro, hoje bem conhecido, a Retirada da Laguna. [...] já escritas ao correr da pena e do capricho, a respeito daquelas fôrças de Mato Grosso que tanto e tão inutilmente sofreram e de cujas aventuras dramáticas e trágicas não restaria hoje o mais leve sinal, a mais apagada lembrança, se eu as não tivesse – talvez para sempre! livrado do esquecimento". In: TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle. Memórias. São Paulo: Edições melhoramentos, 1994. p. 453.

[3] O nascimento do lopismo atendeu a um vazio ideológico no Paraguai, carente de um herói paradigmático que encarnasse os valores, supostos ou verdadeiros, da nacionalidade paraguaia. É "menos nobre", porém, o motivo da escolha da figura de Solano López para cumprir esse papel. Finda a guerra, a irlandesa Elisa Lynch, companheira de López e sua herdeira, que durante o conflito tivera transferida para si cerca de 10 milhões de hectares de terras públicas, instalou-se em Paris. Ignorado pelos livros que fazem a apologia de Solano López no Brasil, o fato de o Estado paraguaio ter sido um feudo da família López é reconhecido por diferentes autores.

[4] Os ocupantes do país vencido e destroçado não oferecem qualquer ajuda para sua reconstrução, pois partem do princípio de que o povo paraguaio deve expiar as culpas de sua adesão ao tirano. O peso maior recairá sobre as mulheres, forçadas à poligamia como forma de reposição das perdas demográficas. Os procedimentos para a demarcação de limites atendem às máximas pretensões territoriais do Brasil e até hoje permanecem obscuros, pois fazem parte da documentação para a qual o Itamaraty defende o sigilo eterno. A lembrança de que boa parte do atual estado do Mato Grosso do Sul foi anexada como despojo de guerra está presente, porém, na memória coletiva, expressa por Almir Sater na canção Sonhos Guaranis, cuja letra se refere aos costumes e tradições da região de fronteira “onde o Brasil foi Paraguai”.

[5] Após a tomada de Assunção, em janeiro de 1869, Caxias dá a tarefa por terminada e retorna ao Brasil, como também o fazem argentinos e uruguaios, voltaram para seus países. O conde D’Eu, então, assumiu as tropas brasileiras para escrever as páginas vergonhosas daquilo que não pode mais ser chamado de guerra, pois ao lado de Solano López só restam velhos, mulheres e crianças. Estas se disfarçam com barbas postiças para travar em 16 de agosto a Batalha de Acosta Ñu: a data é hoje celebrada no Paraguai como o Dia das Crianças, em homenagem aos 3.500 infantes chacinados após seis horas de resistência diante de 20 mil soldados.

[6] A obra "Guerra do Paraguai" de Thompson é relato sob a ótica paraguaia Thompson foi um engenheiro inglês contratado para melhorar a infraestrutura do Paraguai que acabou se engajando no exército paraguaio e foi o principal arquiteto das defesas paraguaias que foram um obstáculo formidável para os exércitos aliados. O livro escrito em inglês no ano de 1869, portanto antes da guerra terminar, teve algumas edições em português que estão esgotadas há muito tempo.

[7] Solano López era o mais velho dentre cinco filhos de Carlos Antônio López. Aficionado pela leitura, procurava trazer livros de Buenos Aires e da Europa. Particularmente, sobre Napoleão Bonaparte. Nos esportes, destacou-se na esgrima e na equitação. Era um homem sensível, agindo mais pelo impulso do que pela razão. Um patriota ao seu modo. Aos quinze anos tomou conhecimento de uma séria revelação, por ocasião da morte de D. Gaspar de Francia, quando ficou sabendo que D. Carlos López não era seu pai. Sua mãe D. Juana Carrillo se casara grávida de seu padrasto D. Lázaro Rojas, seu padrinho de batismo. Em 14.3.1844, Carlos López assumiu a Presidência do Paraguai. Em seguida, incorporou Solano ao Exército, como coronel, sem nunca ter passado pela caserna ou frequentado uma academia militar. Aos 19 anos, foi promovido a brigadeiro e nomeado chefe do Exército e ministro da Guerra.

[8] Sobre as idiossincrasias pessoais dos governantes da época há um episódio curioso, omitido pela historiografia brasileira, mas mencionado pelo historiador paraguaio Efraím Cardozo. Segundo ele, antes da guerra, López concebeu o projeto de proclamar-se imperador e aliar-se ao Brasil pela via do matrimônio com uma das filhas de dom Pedro II, proposta efetivamente encaminhada e prontamente rechaçada pelo brasileiro. Este também se oporia às várias tentativas de mediação de países como os Estados Unidos e de rendição negociada que preservasse o poder do ditador, dando carta branca ao marido francês da princesa Isabel, Luis Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o conde D’Eu, para que o caçasse até a morte, como de fato aconteceu.

[9] A palavra genocídio foi inventada no fim da Segunda Guerra Mundial pelo jurista polonês Raphael Lemkin, um refugiado judeu que conseguiu asilo nos EUA. Power narra com simpatia o esforço de Lemkin para criar um termo que desse conta do que ocorria na Europa ocupada pelos nazistas, algo que descrevesse "ataques a todos os aspectos da nacionalidade - físicos, biológicos, políticos, sociais, culturais, econômicos e religiosos". A palavra foi cunhada por Lemkin em um livro sobre a legislação racial promulgada nos territórios conquistados por Hitler, livro que teve repercussão imediata na imprensa e nos meios diplomáticos.

[10] O crime de genocídio no direito internacional foi, como qualquer outro crime, tipificado por determinados atores em um dado contexto histórico visando à proteção de certos valores considerados fundamentais para a harmônica coexistência dos estados. Um dos papeis da criminologia com relação ao direito penal é buscar entender os processos de criminalização primária, isto é, os processos que estabelecem determinadas condutas como criminosas. E não há razão para que a criminologia não possa fazer o mesmo com relação ao direito penal internacional.

[11] O vice-reinado do Rio da Prata era uma entidade territorial do Império espanhol, criada pelo rei Carlos III da Espanha em 1776. Antes de sua criação, os territórios que o formaram faziam parte do vice-reinado do Peru. O vice-reinado cobriu grande parte da América do Sul. O Vice-Reino do Rio da Prata (em espanhol Virreinato del Río de la Plata), estabelecido em 1776, foi o último e mais curto vice-reino criado pela Espanha durante o período de colonização das Américas. Os seus limites continham os territórios da atual Argentina, Paraguai, Uruguai (este último dentro do território conhecido à época como Banda Oriental do Uruguai), e pequenas partes dos territórios que atualmente pertencem ao Brasil e à Bolívia. Foi criado sobretudo por razões de segurança, no sentido de tentar conter as outras potências mundiais com interesses na área, como a Grã-Bretanha e, sobretudo, Portugal.

[12] Simón José Antonio de la Santíssima Trinidad Bolívar y Palacios Ponte-Andrade y Blanco (1783-1830) foi militar e líder político venezuelano, sendo o primeiro a apoiar na prática a descolonização. Após triunfar sobre a Monarquia Espanhola, Bolívar participou da fundação da primeira união de nações independentes na América Latina, nomeada Grã-Colômbia, da qual foi Presidente de 1819 a 1830. Simón Bolívar é considerado por alguns países da América Latina como um herói, visionário, revolucionário e libertador. Durante seu curto tempo de vida, liderou a Bolívia, a Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Venezuela à independência, e ajudou a lançar bases ideológicas democráticas na maioria da América Hispânica. Por essa razão, é referido por alguns historiadores como "George Washington da América do Sul.

[13] A queda do general Rosas em 1852 não solucionou os conflitos na região. Embora fosse o fim da ameaça argentina à soberania e integridade do Paraguai, instaurou-se uma nova conjuntura política marcada pelo conflito político entre o governo do presidente Carlos Antonio López (1790-1862) e o Império do Brasil. Guerra contra Oribe e Rosas, foi um episódio numa longa disputa entre Argentina, Uruguai e Brasil pela influência do Paraguai e hegemonia na região do Rio da Prata. A guerra foi travada no Uruguai, Rio da Prata e nordeste argentino de agosto de 1851 a fevereiro de 1852, entre as forças da Confederação Argentina e as forças da aliança formada pelo Império do Brasil, Uruguai e províncias rebeldes argentinas de Entre Rios e Corrientes. A Guerra do Prata terminou com a vitória aliada na Batalha de Monte Caseros em 1852, estabelecendo a hegemonia brasileira na região do Prata e gerando estabilidade política e econômica no Império do Brasil. Porém, a instabilidade nos outros países da região permaneceria, com as disputas internas entre partidos no Uruguai e uma guerra civil na Argentina pós-Rosas. Este conflito faz parte das chamadas Questões Platinas na História das Relações Internacionais do Brasil e como parte integrante da Guerra Grande nos países hispanófonos.

[14] Tem suas origens nos enfrentamentos entre dois destacados líderes da luta pela independência (1825-1828), Fructuoso Rivera e Manuel Oribe.  Na batalha de Carpinteria surgem as cores das divisas que posteriormente identificam cada grupo político: blancos, partidários de Manuel Oribe, e colorados (vermelho), os de Rivera. O partido nacional no Uruguai, os blancos foi fundado em 1830, no início do processo de afirmação do Estado, manteria precariamente a hegemonia sobre o Uruguai durante o franco predomínio dos caudilhos contra os letrados, até a guerra civil iniciada em 1863, quando o Partido Colorado passou a disputar o poder de armas nas mãos. Embora derrotados pelo rival no confronto armado, em 1865 e em todas as eleições seguintes, até a de 1959, os blancos comporiam com os colorados o regime político mais estável do continente, de mais de um século sem rupturas legais, mesmo após a segunda Constituição, de 1919, com o poder passando de um presidente eleito a outro, que tornou o país conhecido como a “Suíça da América Latina”, comparação que evoca a tradicional neutralidade do país alpino e a estabilidade de suas instituições.

[15] Para tal fim, faz-se necessária a apresentação e o debate, dos fatores que corroboraram na consubstanciação das políticas do general Mitre, tanto internos quanto externos, objetivando a elucidação da proeminência de Mitre nas relações internacionais dentro do âmbito do sistema do Prata.

A experiência popular paraguaia do século XIX será analisada a fim de se compreender as motivações para a efetivação da cruzada liberal-civilizadora empreendida pelos demais vizinhos, amplamente apoiados pelo nascente imperialismo inglês. Da mesma forma, torna-se imprescindível avaliar as conturbações na República Oriental do Uruguai a partir de 1860, com o governo de Bernardo Prudêncio Berro, elucidando-se que a experiência intervencionista uruguaia consistia em prenúncio do conflito que estaria por emergir, bem como as bases para o envolvimento intervencionista argentino-brasileiro no Uruguai, observando-se, assim, a rede de relações criadas por Mitre, que inevitavelmente levaram à Guerra da Tríplice Aliança.

Flores e os Colorados irão encontrar seu grande apoiador no novo presidente da Argentina, eleito por unanimidade em 1862, o general Bartolomé Mitre. Este havia logrado a hegemonia de Buenos Aires sobre as províncias do interior. Nesse momento ao menos, no entanto, necessitava de uma rápida resolução das problemáticas uruguaias, assim como de um regime amistoso no país vizinho, ainda mais quando se observa que os principais apoiado res do governo Blanco eram os federalistas do interior argentino, ávidos pela manutenção do governo uruguaio, mas principalmente pela destituição de Mitre, em favorecimento à consolidação do poder das províncias do interior argentino.

[16] O Partido Colorado é um partido político uruguaio que abarca o espectro político de centro-esquerda, com tendência menos socialista, ainda assim, não de centro-direita. Entre seus integrantes podem encontrar-se posturas que vão desde a social-democracia até o liberalismo. Vinculado mais ao setor urbano da economia, foi o berço do batllismo, que tendia ao welfare state cujo máximo referente foi o ex-presidente José Batlle y Ordóñez que governou duas vezes (1903-1907; 1911-1915) e deixou uma impronta que marcou a política uruguaia no século XX.

[17] Em verdade, Caxias não queria a presença de negros, embora não pudesse dispensá-los na guerra do Paraguai. O caminho para refletir sobre o que era dito sobre os negros e a guerra era admitir a precariedade da busca, sobretudo, quando se constata que os documentos disponíveis sobre a guerra não relatam muito sobre os negros, só restava ouvir o silêncio e juntar os cacos. A história da participação dos negros no conflito seria valorizar as narrativas, traçando um olhar sobre as histórias de pessoas comuns, sendo protagonizada por pesquisadores de diversas áreas como sociólogos, antropólogo, filósofos, historiadores e teóricos da literatura.

[18] O historiador Alfredo da Mota Menezes, doutor em História da América Latina, especialista no tema, contraria a principal tese sobre a origem da Guerra do Paraguai, ideia que culpa o imperialismo inglês pelo conflito, e responsabiliza os países sul-americanos. (In: MENEZES, Alfredo da Mota. A Guerra é Nossa. São Paulo: Editora Contexto, 2012).

[19] Bartolomé Mitre Martinez (Buenos Aires, 26 de junho de 1821 — Buenos Aires, 19 de janeiro de 1906) foi um político, escritor e militar argentino, foi presidente da Argentina de 1862 a 1868. Filho de Ambrosio Estanislao de la Concepción Mitre e Josefa Martínez Whertherton, seus irmãos eram Emilio e Federico.

[20] Alfredo Stroessner Matiauda (1912-2006) foi militar, político e ditador como Presidente do Paraguai, estabeleceu governo autoritário desde 15.08.1954 até 3.02.1989. Sua ditadura de quase trinta e cinco anos e recebendo a denominação histórica de El Stronato foi o segundo período mais longo em que uma única pessoa ocupou um governo sul-americano, depois de Dom Pedro II e Fidel Castro (em Cuba).

[21] Finalmente, a 1º de março de 1870, López e seus últimos esfarrapados seguidores são cercados em Cerro Corá. Ferido pela lança do cabo José Francisco Lacerda, vulgo Chico Diabo, o paraguaio recusa a render-se, com um grito: “Morro com minha pátria”. Seu cadáver é desnudado e ultrajado. Elisa Lynch, que desempenhara durante a guerra a função de enfermeira-chefe, cava a sepultura do marido, para enterrá-lo ao lado do filho mais velho do casal, morto no mesmo dia. Aos arreganhos da soldadesca, adverte: “Cuidado, sou inglesa”.

[22] A Pax Britannica, tal como referência à Pax Romana descreve o período de paz observado por cem anos depois do fim das Guerras Napoleônicas e que teve como característica a hegemonia e maior expansão do Império Britânico. Durante este tempo, a Europa desfrutou de uma paz relativamente estável, tendo Império Britânico controlado as principais vias e rotas navais e conquistado uma posição hegemônica sobre os mercados estrangeiros, elevando o Reino Unido quase a dominar os entrepostos chineses depois das Guerras do ópio. A Pax Britannica declinou com o fim da ordem estabelecida no Congresso de Viena, após a Guerra da Crimeia e a consequente formação dos estados-nações unificados de Itália e Alemanha resultantes do Risorgimento da guerra franco-prussiana, respectivamente. A industrialização da Alemanha e dos Estados Unidos concorreram para um declínio mais rápido da supremacia industrial britânica. Com a Primeira Guerra Mundial ficou ditado o fim desta era e a sua sucessão pelos Estados Unidos como nova potência mundial.

[23]Juan Emiliano O'Leary logo tornou-se, porém, o mentor do revisionismo histórico conhecido como lopismo ou movimento nacionalista. Esse revisionismo transformou a imagem de Solano López de ditador, responsável pelo desencadear de uma guerra desastrosa para seu país, em herói, vítima da Tríplice Aliança e sinônimo da nacionalidade paraguaia. Nas décadas seguintes, O'Leary persistiu em sua militância lopista, o que lhe proporcionou, até sua morte em 1969, as benesses dos governos paraguaios ditatoriais, para os quais o culto à tirania em que se transformou o nacionalismo lopista, constituía fator de legitimação histórica.

[24] As consequências para os vitoriosos foram distintas. Na Argentina, consolidou-se o Estado nacional, ao serem eliminados e incorporados todos os focos de oposição à república dos proprietários rurais. Para o Brasil, a principal herança do conflito foi um exército que saiu prestigiado o suficiente para derrubar a monarquia, em 1889, e daí por diante interferir, durante mais de um século, de forma autoritária na vida política do país.

[25] A Guerra do Paraguai contou com a participação de quatro países, e inúmeras personalidades tiveram papel crucial nos eventos relacionados a ela. Separamos aqui o nome de personagens importantes desse cenário: Paraguai: Solano López era o ditador do país e o comandante das tropas paraguaias. Lutou na guerra e foi morto, em 1870, na batalha de Cerro Corá. Brasil: D. Pedro II era o imperador do Brasil. Os dois grandes nomes do exército brasileiro na guerra foram Duque de Caxias e Conde D’Eu. Argentina:  Bartolomé Mitre era o presidente argentino durante o conflito. Ele viu na guerra uma forma de consolidar seu domínio no país colocando fim nos federalistas que apoiavam o Paraguai. No decorrer da guerra, passou a presidência para Domingo Sarmiento. Uruguai: Venancio Flores era o presidente do Uruguai. Era o líder dos Colorados, partido que assumiu a presidência após o Brasil invadir o Uruguai. Presidiu o país até 1868, quando foi assassinado.

[26] Na Roma Antiga, o escritor latino Públio Vegécio Renato publicou, no século IV, Epitoma rei militaris, traduzida como Compêndio militar.  Vegécio é reconhecido como autor da máxima “Si vis pacem, para belum”, traduzida para o português por “Se queres a paz, prepara-te para guerra”.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Historiografia Guerra do Paraguai Revisionista Pós-revisionista Inglaterra Império do Brasil

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