Filosofia analítica & hermenêutica filosófica
A certeira influência da filosofia analítica e da hermenêutica filosófica forjou um novo conceito de direito que se libertando da tradição positivista, enxerga a intensa necessidade da interpretação.
A filosofia analítica e a hermenêutica filosófica alteraram nosso conceito de interpretar. E, permitem também alterar o próprio conceito de Direito, muito marcado ainda pela tradição positivista iniciada por Savigny, para quem tudo era objeto de interpretação.
Distinguir compreensão e interpretação, podemos afirmar que toda prática social, inclusive o Direito, exige compreensão, mas nem todas as ações dentro da prática representam objeto de dúvida e requerem interpretação no sentido estrito ou sugerido por Savigny.
Duas correntes filosóficas do século XX representadas pela filosofia analítica e a filosofia hermenêutica contribuíram para alterar o entendimento do que seja interpretar e mesmo para alterar o conceito de Direito. Cumpre destacar o papel desempenhado pelo positivismo para a inserção do Direito na universidade contemporânea, o que resultou em ver a lei como mandamento.
Cumpre destacar que mandamento difere de preceito, ordens de um ladrão que nos aponta uma arma são uma espécie de mandamento, conforme aludiu Hart. Já as regras gramaticais são preceitos. Seja essas prescritivas. O prescritivo ou imperativo não se esgota em ordens/mandamentos.
Aliás, Wright[1] distinguiu as leis da lógica, que não obrigam as pessoas a pensarem de certo modo, mas dão os critérios pelos quais julgamos a correção do pensamento. E, as prescrições e regulamentos emitidos por alguém (prescrições propriamente ditas). E, as regularidades e hábitos sociais. E, as diretivas ou normas técnicas (diretivas em geral).
E, foi contra essa concepção da lei que se insurgiu Herbert Hart, originando à mudança na teoria do Direito da segunda metade do século XX. Essas duas correntes filosóficas do século XX evidenciaram a limitação do positivismo, revelando sua inadequação para dar conta integralmente da racionalidade prática.
O que impôs a reorientação da ciência e filosofia do Direito por reintroduzir o olvidado tema do exercício prático da razão. E, tais aportes servem para colocarem em dúvida a ideia de que toda norma necessita de interpretação. Conclui-se, que nos afastamos da epistemologia moderna para a qual o objeto do Direito seriam as normas (como mandamentos ou decretos) para ir em direção ao entendimento de que há forma própria de compreender a atividade jurídica em suas distintas dimensões, a dos agentes de criação e aplicação da lei e a dos cidadãos comuns a esta submetidos, e, nessa nova compreensão, a objetividade não consiste em descobrir, achar ou inventar decisões, mas em justificá-las.
Enfim, trata-se de saber se a justificação pode aspirar a alguma forma de objetividade. E, nesse longo trajeto mostra como a objetividade mudou de dimensão ao se integrarem no discurso e nos sentidos objetos de natureza intencional e necessariamente procedentes de sujeitos. E, os discursos e sentidos existem e são objetivos, mas não existem sem sujeitos que os produzam, não são disponíveis para cada um dos participantes de certa comunidade de seres humanos.
As línguas têm existência objetiva e ideal, enquanto os discursos singulares possuem existência contingencial, singular (acontecem no tempo e no espaço) e são realizados por sujeitos individuais.
Na expressão de Karl-Otto Apel trata-se de relação entre comunidade ideal (a da língua) e a comunidade real de comunicação (determinada historicamente). A ética segundo Apel enfocava a mesma tendência de Habermas ligando-a à filosofia pura e à filosofia da ciência. Afirmou que está intimamente ligado à hermenêutica e às ciências sociais reconstrutivas. Que tentou desenvolver o assunto, em minhas conferências, aqui, em um nível bem elementar.
A noção está ligada a um enfoque novo da filosofia transcendental. Não pretendeu recuar até, por exemplo, uma consciência solitária, a um solipsismo do tipo " eu penso", como o que está em Descartes e em Kant ou Husserl. Acho que o a priori que não podemos evitar, que é em última instância requerida, é que sempre estamos discursando Desenvolveu com Habermas a noção de que, sempre que tenho pretensões de validade, tenho de seguir: a. pretensão de sentido (compartilhamento de sentido com outros com uma comunidade ilimitada de comunicação); b. pretensão de sinceridade e, também; c. pretensão de direito moral.
A comunidade ideal abrange todos os que falam determinada língua, ou a que pertencem a certo campo, expressão usada por Pierre Bourdieu[2]. A comunidade real consiste nos que realizam os discursos dentro das comunidades ou campos, discursos dotados de referência propriamente dita.
A mudança ocorrida ou ainda em andamento, não consiste em abandonar a objetividade, nem a distinção entre o sujeito e o mundo. E consiste em abandonar a ideia cética de que tudo o que é produzido pela razão do sujeito seja ilusão, fantasia, objeto ideal. Ou a ideia de que só o que é produzido pela mente é real e, o mundo exterior pode ser uma ilusão.
Lembremos que a objetividade positivista se baseava na capacidade de o sujeito suprimir do objeto tudo o que fosse subjetivo. Em Direito, isso implicava, tomá-lo como objeto independente dos sujeitos que o põem em prática, e depois ser capaz de prever qual solução (decisão, sentença, ação etc.) viria a existir, dadas as circunstâncias adequadas.
Objetividade era qualidade do conhecimento, que permitiria o consenso geral sobre a existência da regra, e eventualmente para algumas escolas como a previsibilidade do resultado.
De um lado, teríamos o positivismo[3] de Hans Kelsen, a propor o acordo mínimo sobre os critérios de validade das normas, de outro lado, o positivismo escandinavo de Alf Ross[4] ou dos realistas norte-americanos, segundo os quais o objeto próprio do conhecimento jurídico seria a decisão dos juízes dadas em função de elementos empíricos trazidos pela psicologia, pela sociologia, pela ciência política, pela economia e assim, por diante.
A noção elementar de positivismo quase vulgar tendeu para o naturalismo, a modo de pensar segundo o qual apenas a natureza física seria real e somente o conhecimento dessa natureza, submetido à matematização, seria objetivo. Com o advento da nova ciência e da nova universidade no século XX surgiu outra questão, a saber: qual seria o locus das disciplinas interpretativas na própria universidade?[5]
A nova ciência era experimental e matematizada, assim como a nova física, a história natural ou a biologia classificatória e evolucionista presentes nos séculos XVIII e XIX.
As ciências e demais áreas tradicionais da universidade haviam sido discursivas antes dos séculos XVIII e XIX, não empíricas tais como a filosofia, teologia e o direito. No período pré-iluminista, a filosofia se traduzia em ser uma disciplina básica, cuja método e programa incorporavam a lógica, a gramática, a dialética e a filologia. Teologia e direito compartilhavam aspecto fundamental pois eram disciplinas dos textos (a saber: Bíblia e Corpus Juris Civilis) a aplicar.
Eram interpretativas ou hermenêuticas, de modo que as explicações dos textos (na teologia, pelo uso de sumas e dos livros de sentenças) e no direito pelo uso de glosas, dos comentários e dos tratados visavam sua aplicação. Tanto juristas quanto os teólogos dedicaram-se longamente ao problema hermenêutico.
A premissa na teologia era a Doutrina Cristã de Santo Agostinho, reelaborada por seus sucessores. E, a premissa dos juristas, a Constituição Tanta de promulgação do Digesto, que proibia a interpretação exceto quando significasse a tradução (quando fosse kata poda, “ao pé da letra”) e a Deo auctore (autoria divina).
Ambas desejavam evitar e coibir que os juristas invadissem a competência do Imperador para criar lei. Na filosofia, a interpretação esteve ligada à filologia e à tradução dos textos clássicos.
Quanto à estrutura da universidade medieval, há uma curiosidade. A filosofia propriamente dita era preliminar ao estudo das faculdades maiorias, a saber, a Teologia e o Direito. E, quem pretendesse estar qualquer destas, precisava, antes de tudo ser treinado no colégio de artes liberais, ou seja, precisava ser treinado na filosofia, que envolvia a capacidade analítica de pensar sobre as relações entre os termos e propor conceitos.
Aprendia-se através textos herdados da tradição clássicas. E, muitos textos serviam para o ensino de habilidades básicas da gramática e da lógica, outros para o treinamento da tradução e, todos, dependiam de certo modo da filologia. As faculdades maiores, teologia, leis e cânones concentravam os estudos na Bíblia e no Corpo do Direito Romano ainda não chamado assim, ou do Direito Canônico.
O passado era narrado nos textos, embora a atitude de filósofos, teólogos e juristas não fosse de historiadores. A interpretação/tradução não pretendia verificar ou aferir o contingente ou histórico dos textos, mas seu sentido permanente. Visto que o texto era concebido como dizendo algo aos presentes, pressupunha-se a interpretatio.
Quem sabia Direito não apenas quem só conhecesse o verbatim o Digesto, mas quem integrasse suas partes e fosse capaz de explicá-la segundo uma razão (ratio) que poderíamos traduzir como um sentido. O mesmo valia para a teologia, daí distinguirem-se dentro dos textos sagrados, seus sentidos literais, os narrativos e históricos, seus sentidos analógicos que eram os paralelismos entre o Antigo e Novo Testamento e, seus sentidos propriamente alegóricos e pedagógicos, ou seja, aquilo que significavam praticamente para o leitor atual, pelas metáforas e narrativas de Deus ou da história sagrada.
Os sentidos constituíam, nestes termos, a ratio. No entanto, a universidade, o saber e a ciência mudaram completamente entre os séculos XVIII e XIX, ocorreu a rediscussão do ensino e dos métodos do Direito.
E, o progresso e o sucesso das ciências[6] naturais e experimentais provocou reflexão filosófica, cujas referências se acham no empirismo inglês, nas pesquisas do iluminismo escocês e no idealismo alemão, particularmente, no criticismo kantiano[7]. Foi profundamente a crítica da tradição interpretativa que a precedeu, e, mais relevante, restringiu o campo da razão: a razão era formal ou instrumental e tecnológica.
Pela razão, o domínio próprio foi limitado ao conhecimento da natureza por suas regularidades. A razão prática foi limitada a razão tecnológica (produzir/fabricar, com exclusão de agir/praticar).
O Direito, especialmente a partir do século XVIII, esteve sob a influência desse pensamento e buscou assemelhar-se ao novo pensamento científico. E, tudo que escapasse disso, beirava ao irracional.
E, com o progresso das ciências modernas, precisavam os juristas também a firmar o caráter científico de seu saber e seu lugar na universidade. De certa forma, sofrem um complexo de inferioridade diante da ciência moderna, e então tiveram de adaptar-se.
Com a nova racionalidade promoveu as especializações com base no Direito mesmo, antes considerado vera civilis philosophia e deste se foram ramificando outros saberes. O direito natural[8] ou jurisprudência universal tornou-se disciplina autônoma, indo desembocar na filosofia do Direito. E, seu caráter fora cada vez mais sistemático e político. Também a economia ganhou foro próprio, passando a contar com método e objetos definidos, seja na vertente francesa ou dos escoceses e ingleses.
A partir do século XIX, as novas ciências sociais (história e sociologia, economia e política propuseram-se critérios de cientificidade, tratando a vida social quase como objeto empírico. Os juristas também adotaram tal tendência. E, foi preciso definir seu objeto, num primeiro momento, o espírito do povo, para Savigny, ou espírito universal para Hegel. E, em seguida, buscaram-se os conceitos e os institutos, criações objetificadas da ciência jurídica (a família, o contrato, a economia e a lei). Em resumo, os juristas precisavam de algo que simulasse o mundo exterior das ciências empíricas modernas.
Mais exemplar caso foi o de Savigny[9]. O Direito, para Savigny, por ser em si mesmo um fenômeno histórico, deveria ser conhecido como se conhecem todos os fenômenos históricos. Savigny manifestou-se contrário à filosofia do Direito natural, que em seu tempo inspirava fortemente os códigos em elaboração em toda parte na Europa.
Se o Direito natural era filosofante e abstrato, para o jurista alemão o objeto da ciência do Direito era histórico e concreto. Nesta não apenas se tratava de reconhecer a positividade das leis. Isso sempre se fez, de tal modo que a expressão “Direito positivo” (ius positum) era usada pelos juristas medievais. Savigny pretendia que o saber do Direito fosse reconhecido como uma das ciências da academia.
A história, natural ou política, era a ciência por antonomásia das coisas vivas, orgânicas e contingentes. Isso significou, portanto, a aproximação do saber jurídico, ou da ciência do Direito, a um padrão positivo ou positivista de ciência.
O saber jurídico era composto de elemento de observação (podia-se observar o Direito posto, podia-se fazer a crítica documental das fontes), de um elemento intelectual conceitual (sistema, ou ciência) e de interpretação, entendida como ato subjetivo de compreensão da vontade alheia (a do legislador).
A relevância de Savigny não está apenas no papel que desempenhou na redefinição do Direito dentro da universidade (que ele ajudou a criar em Berlim). Está, sobretudo, no afirmar que a interpretação e compreensão são a mesma atividade intelectual e, por isso, toda lei precisa ser interpretada.
A diferença entre compreender (dar-se conta do sentido de uma situação, um campo, uma prática em geral) e explicar (auslegen) o que diz uma regra singular deixa de ser relevante. O problema interpretativo antes colocado apenas em caso de dúvida derivada da ambiguidade dos termos, da equivocidade da construção sintática, da novidade das circunstâncias amplia-se e espalha-se, pois a seu juízo o ato de interpretar e aplicar corretamente a lei não se distingue da operação mental consistente em assimilar as fontes do Direito de um ponto de vista interno.
Interpretar torna-se sinônimo de compreender. Logo, tudo precisa ser interpretado, na medida em que tudo precisa ser compreendido. No Sistema de direito romano atual, este se posiciona contra a tradição longamente aceita de que interpretação não seria necessária para leis claras (in claris cessat interpretatio[10]).
Como mitigar ou eliminar essa extraordinária abertura? Confiando no método. A Ciência do Direito tem duas dimensões distintas: de um ponto de vista externo, esta identifica as fontes; e, de um ponto de vista interno, este as assimila.
Nesse aspecto, esta se dá conta de que não produz as fontes, mas percebe-as fora de si e as oferece à consciência humana com as características precisas. Savigny dedicou-se à metodologia em preleções em seus cursos e no célebre Sistema.
Os cursos de Direito seriam, desde então, precedidos de uma longa exposição metodológica própria, que não se confundiria como técnicas de interpretação nem com os pressupostos da filosofia prática aprendidos da filosofia geral.
Tratava-se agora de um método próprio da ciência jurídica[11]. Essa tradição Hart veio finalmente dar nas disciplinas de Enciclopédia Jurídica e Introdução à Ciência do Direito. De todo modo, ora interessa que a interpretação de que se passou a tratar foi primariamente a das normas entendidas cada vez mais claramente como comandos e comandos de um soberano, ou seja, de alguém, mesmo que alguém abstratamente considerado.
Em todas essas vertentes retromencionadas, do espírito do povo à lei, tratava-se de conhecer, de observar especulativamente, como que de fora, todos esses objetos. Deixava-se de lado, a perspectiva do agente, do sujeito que decide, e tentava-se substitui-la pela perspectiva doa gente, do sujeito que decide e, tentava-se substitui-la pela perspectiva do cientista que observa.
O resultado pode ser sumarizado na frase de Hart: “oscilava-se entre o pesadelo do empirismo e o nobre sonho dos pregadores morais”. Contra isso, a abordagem iniciada por Hart sugeriu uma saúda do impasse e da noção empirista (naturalista) de objetividade, ou da noção (convencionalista) de objetividade como unanimidade moral.
A crítica formulada por Hart ao final dos anos cinquenta e começa dos anos sessenta, é contemporânea de explorações filosóficas novas, cujo impacto na teoria do Direito ainda não foi totalmente apreciado.
Trata-se do abandono de objetividade conforme proposta pelo positivismo e pelo neopositivismo[12] das ciências sociais e de sua reconcepçção em termos mais estritamente práticos. Em outras palavras, trata-se de substituir a objetividade do observador pela objetividade do agente, como todos os desdobramentos de pesquisa que isso acarreta.
Conforme afirma Brian Bix, a grande novidade da teoria de Hart foi trazer de volta essa perspectiva do agente, perspectiva interna ou hermenêutica. E, nas palavras de MacCormick[13], Hart rejeitou explicitamente a teoria de que regras são comandos ou imperativos, assim como a de que são simplesmente proposições preditivas ou proposições que dão base a previsões do que as pessoas fariam em certas circunstâncias.
Seu caminho novo foi hermenêutico, aproximando-se da filosofia de Wittgenstein e Weber. Hart deve isso ao trabalho de J.L. Austin[14] e Peter Winch[15].
As derradeiras décadas do século XX redescobriram duas perspectivas relativamente esquecidas nos anos precedentes, correspondentes à filosofia hermenêutica e à filosofia da linguagem. Trata-se de duas correntes como que opostas, mas semelhantes quanto a suas distâncias com relação ao positivismo e ao idealismo dominantes em muitas áreas.
Para quem percebe as diferenças, a primeira, a hermenêutica, é um desdobramento da filosofia do sujeito e da consciência, de estilo fenomenológico, herdeira de Edmund Husserl[16]; a segunda, a filosofia analítica é de matriz lógica, herdeira do segundo Wittgenstein.
Para os que percebem a semelhança, ambas apontaram para limites do positivismo: primeiro, destacaram a razão em sua dimensão discursiva, dialógica e pragmática; segundo, apontaram para relação entre pensar e agir, ou seja, para aquilo que se chamava a razão prática, os motivos e as razões para agir.
Ou seja, o modelo da ação humana foi diferenciado dos eventos do mundo, dos movimentos, dos acontecimentos puros e simples.
Segundo a filosofia hermenêutica, cujos expoentes foram Hans Georg Gadamer[17] e Paul Ricouer, a interpretação não se limita a uma disciplina, mas constitui-se numa dimensão da existência do próprio ser humano.
Estabeleceu-se com dupla pretensão a distanciá-la de sua origem remota: de um lado, desejava desvincular-se de uma possível inclinação psicologizante, de outro, pretendia superar a discussão metodológica, tão cara e preciosa às ciências naturais, para propor a busca da verdade cujo ponto de partida não fosse o método.
Nas atividades humanas e nas disciplinas que as estudam, não é possível pretender um método como o das ciências naturais. O método não leva longe nas práticas humanas.
Poderíamos afirmar que não existem algoritmos de decisão. Isso não se deve a um defeito, ou falta de desenvolvimento das disciplinas, trata-se de levar a sério a natureza de seu objeto, a ação humana. Não existem algoritmos de decisão para os agentes do ponto de vista de sua vida, dos compromissos que assumem, da direção que dão a sua biografia.
A constatação da impotência do método para dirigir uma vida não significa, porém, que a decisão seja irracional. Ao contrário, a proposta da filosofia hermenêutica é retomar os problemas clássicos da inteligibilidade e da racionalidade da ação, da deliberação, dos sentidos.
A filosofia analítica da linguagem ordinária, por seu lado, pretendeu dar resposta àquilo que lhe pareceram os desafios do logicismo. Conta-se que o economista Piero Srafa, conversando com Wittegenstein, fez o típico gesto napolitano que significa "sei lá" ou "e daí" e perguntou ao filósofo: Qual a estrutura lógica disso!
O episódio é narrado para dizer como, a partir dessa surpresa, Wittegenstein[18] transformou a lógica da linguagem ordinária no foco de seus trabalhos a partir dos anos trinta. O gesto do napolitano pode não ser uma asserção com valor de verdade, mas realmente quer dizer alguma coisa e pode ser compreendido.
Pode-se dizer que a preocupação com a linguagem levou ainda a uma terceira onda de reflexão relevante: a ética do discurso e, a seguir, a pragmática universal. Particularmente na obra de Apel, essa terceira linha apresenta mais de uma tentativa de relacionar, quando não integrar, a hermenêutica e a filosofia analítica.
Tanto a filosofia analítica quanto a filosofia hermenêutica pressupõem que o agente e falante domina minimante algum sentido, de modo que possa explicar e justificar aquilo que faz. O sentido de uma ação individual, de uma atividade e de um discurso compartilhados, para ficar nestes três exemplos, funciona como um prius lógico. Não se trata apenas dos discursos.
As duas correntes tomaram o discurso como o caso exemplar, mas o que está efetivamente em jogo é a ação humana. A ação humana não é uma das coisas que acontece no mundo, pois para que ela aconteça, é preciso que haja alguém que a realize. A ação é, portanto, criação especial dos seres humanos não dá em árvores.
E, toda ação pode ser dita, pode ser expressa. Assim, toda a ação humana está implicada num seu discurso. Tudo que fazemos pode ser expresso. As perguntas "o que você fez?" e "por que você fez isso?" sempre podem ser feitas e sempre podem ser respondidas: "cuidei do jardim", "comprei alguma coisa", "descansei", "ensaiei uma apresentação teatral", "escrevi uma novela", fundei uma associação etc.
Qualquer dessas práticas dá inteligibilidade à minha ação, dá o todo dentro do qual se insere a parte, minha ação singular. À pergunta pelo porquê responde-se indicando motivo, razão eventualmente finalidade. Posso responder: “cuidei do jardim porque ele estava morrendo, ou cuidei do jardim para agradar a minha amada, que que gosta do jardim”, e assim por diante. Essas explicações, esses porquês de minha ação não são causas. Não indico um antecedente externo que me haja movido.
Não digo, por exemplo, cuidei do jardim porque a pressão barométrica chegou a tanto e afetou meu cérebro de tal modo que sem pensar, por absoluto constrangimento pulei da cama e saí cuidando do jardim.
Qualquer ação pode ser dita e qualquer discurso se desenvolve dentro de uma linguagem, mas conforme adverte Wittgenstein, há muitas linguagens, muitas formas de vida. E, dentro destas, pressupõe-se algum sentido. A equação é como cantar uma cantiga de roda ou ciranda e são duas atividades distintas, cada uma destas tendo seu próprio sentido. Quem não entende o sentido da atividade não é, pois, capaz de realizá-la de forma autônoma.
E, precisará sempre ser guiado em cada etapa individual. Se a explicação fosse empírica, psicológica, afirma-se que o agente internaliza por meio da repressão um comandante abstrato que o obriga a realizar as ações. Numa explicação mais elegante, que dispense a multiplicação dos "eus" ou das "mentes" interiores, assim, conclui-se que o agente aprendeu a usar, autonomamente ele mesmo, a usar a linguagem natural.
Já na filosofia hermenêutica destaca-se o caráter histórico do sentido, este é percebido não do ponto de vista de um agente racional imerso no jogo, mas do ponto de vista de um participante numa tradição, alguém que entra num mundo que já está pronto.
O fato de o sentido preexistir aos agentes pode ser entendido como preexistência temporal. Justamente, por isso, o caráter tradicional do sentido é destacado por Gadamer[19]. Porém, naturalmente, esse sentido tradicional precisa ser apreendido intelectualmente. O que necessita, portanto, de uma dimensão lógico-semântica e de consciência da historicidade do sentido mesmo.
Não se trata mais de verificar uma representação mental, que se possa fazer a sós, solipsisticamente, mas se trata de participar de um contexto. Assim, a compreensão se dá na participação em uma tradição. A semântica determina a extensão e intenção dos termos e isso constrange seu uso.
Trata-se de um constrangimento de caráter conceitual e racional, por isso lógico. Em resumo, ambas lidam com o sentido das atividades e, por caminhos diferentes, consideram-no objetivo, ou seja, independente do agente singular, embora não independente dos agentes humanos.
Na filosofia analítica[20], este é objetivo por ser condição de entendimento mútuo: da mesma forma como qualquer linguagem existe de forma objetiva, como artefato que torna possível o pensamento em comum, as práticas das diversas linguagens existem objetivamente.
Na filosofia hermenêutica, a dimensão temporal da experiência de apreender e modificar o sentido da linguagem vem em primeiro plano. E, em ambas, é um prius ou pressuposto de qualquer discurso. o sentido não pertence ao agente individual. A criação do sentido ultrapassa a intenção dos agentes individuais.
Ambas as filosofias foram obrigadas a enfrentar o problema clássico da relação entre sujeito e objeto, colocado pela tradição positivista e cientista. Tratava-se ainda da pretensão de que a racionalidade se concentrava apenas na linguagem assertivo-descritiva das ciências naturais. Fora dela haveria apenas o “blá-blá- -blá”, desleixo e o sem-sentido[21].
Essa concepção de racionalidade havia invadido mesmo o pensamento moderno a respeito da sociedade. Pretendia Karl-Otto Apel[22], in litteris: “reduzir os objetos comportamentais da tecnologia ao status de objetos naturais sem voz”.
O modelo dependia de os sujeitos serem tratados como objetos, mas isso sempre foi o ponto mais fraco das ciências sociais, impedindo-as de se assemelharem às ciências propriamente ditas da modernidade.
Referências
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Notas:
[1] Um dos primeiros problemas de Lógica deôntica é relativo às espécies ou tipos de normas. VON WRIGHT distingue fundamentalmente três tipos de normas: as regras, as prescrições e as diretrizes: entre as primeiras estão as regras de jogo, as regras de gramática, as de lógica e da matemática; as prescrições são as ordens, proibições ou permissões dadas à conduta humana; entre elas estão as leis e demais normas jurídicas; as diretrizes são as normas técnicas, constituem meios a empregar para alcançar determinado fim. Von Wright classifica as normas em seis espécies, sendo três principais e três secundárias. As espécies principais são as 1) normas definitórias ou determinativas, 2) normas diretivas ou normas técnicas e 3) normas prescrições. ... As diretivas ou normas técnicas são normas que indicam um meio para se alcançar certo fim.
[2]
Pierre Bourdieu foi um dos maiores pensadores das ciências humanas do século
XX. Filósofo por formação, desenvolveu importantes trabalhos de etnologia, no
campo da antropologia, e conceitos de profunda relevância no campo da
sociologia, como habitus, campo e capital social. Sua obra é extensa e
abrangente, com contribuição para diversas áreas do conhecimento, especialmente
na educação e cultura. Em 1962, fundou o Centro Europeu de Sociologia e
tornou-se diretor de estudos da Escola de Estudos Superiores em Ciências
Sociais. Sua intensa produção intelectual e suas pesquisas de etnologia
desenvolvidas nas décadas de 1960 e 1970 tiveram profundo impacto na
sociologia. Sua observação e análise dos hábitos culturais, especialmente dos
franceses, conduziram-no à conclusão de que os gostos e estilos de vida eram
condicionados pela experiência social de cada grupo: classe operária, classe
média e burguesia. Sua obra mais importante é A distinção: crítica social do
julgamento, lançada em 1979.
[3]
Ronald Myles Dworkin (1931-2013) foi um dos mais importantes filósofos do
direito de língua inglesa da segunda metade do século XX até os dias de hoje.
Ainda que a sua contribuição mais original e importante seja no campo da teoria
do direito, sua obra tem também significativa relevância no campo da Filosofia Política,
Filosofia Moral, Epistemologia Moral e Direito Constitucional, domínios do
conhecimento que ele reconhecia como conceitualmente interligados. A atividade
como intelectual público estendeu o impacto de suas ideias para além do mundo
puramente acadêmico, influenciando profundamente uma geração de juristas e
marcando o debate de ideias sobre grandes temas contemporâneos como Aborto,
Eutanásia, Liberdade de Expressão, Democracia, Eleições, Ação Afirmativa,
Desobediência Civil, Feminismo, Pornografia, etc., em especial em artigos
publicados no The New York Review of Books. Ronald Dworkin é autor de um
dos mais citados artigos de teoria do direito da segunda metade do século XX:
“O modelo de regras I”. Nele, Dworkin apresenta a primeira versão de sua vigorosa
crítica aos fundamentos do positivismo jurídico em geral, tomando por base o
livro “Conceito de direito”, de H.L.A. Hart (1962). Nesse artigo, Dworkin
aponta três linhas de argumentação contra Hart, escolhido pelo primeiro como o
seu principal e mais sofisticado interlocutor.
A primeira crítica se refere à tese das fontes sociais do direito (source
thesis), denominada por Dworkin de “tese do pedigree”. Segundo ela,
o fundamento de validade das normas reporta-se, ao menos em última instância, a
uma questão de fato. A validade de uma regra é estabelecida por sua relação com
outra norma, independentemente de seu conteúdo ou de seu mérito. Dworkin
enfatiza a afirmação hartiana de que a regra de reconhecimento, que funciona
como um padrão unificador e garantidor da identidade jurídica, não é ela mesma
validada, mas antes aceita como um fato social. Para Hart, a aceitação da regra
de reconhecimento e das instituições que constituem o direito independe dos
méritos morais e avaliativos delas. O direito de uma comunidade é constituído
por um conjunto de standards reconhecidos como válidos exclusivamente em função
de sua origem numa autoridade (o seu caráter autoritativo, ou seja, dotado de
autoridade). Em outras palavras, as normas jurídicas têm sua validade e sua
juridicidade garantidas exclusivamente em razão de seu pedigree. A segunda
linha refere-se à tese da convencionalidade, segundo a qual, o critério de
validade das normas jurídicas repousa, em última análise, numa “regra de
reconhecimento” que é aceita convencionalmente,4 ainda que por meio de uma
trama complexa de práticas realizadas por tribunais, seus funcionários e
agentes públicos. Em terceiro lugar, o positivismo metodológico estabelece que
a tarefa da teoria do direito é descrever o direito independentemente de
qualquer tipo de consideração valorativa ou moral. Poderíamos denominá-lo de
tese do caráter descritivo da teoria do direito.
[4]
Alf Niels Christian Ross (1899-1979) foi jurista dinamarquês, além de professor
de Direito Internacional. Conhecido como um dos fundadores do realismo jurídico
escandinavo. Em suas muitas obras, uma de suas ideias centrais foi a de tentar
liberar o pensamento dos juristas das ideias místicas e de pressupostos não
verificáveis, que não estão embasados na ciência. O nome de Ross está
diretamente ligado ao chamado realismo jurídico escandinavo, movimento que está
vinculado no positivismo lógico. Parte da obra de Ross esteve focada em
analisar e criticar a doutrina do jusnaturalismo, e por outro lado, a reflexão
em torno dos fundamentos epistêmicos e metodológicos da construção teórica de
um de seus mais admirados mestres e colegas: Hans Kelsen.
[5]
Neil MacCormick e Beverly Brown, em ensaio sobre filosofia do direito,
reconhecem a insuficiência da mera existência de um corpo de textos que
incorporam normas jurídicas – como resultado do “ideal do ‘primado do direito’
que exige governo sob a forma de direito e direito na forma de regras
claramente identificáveis” – para qualquer explicação do direito socialmente
realista, ou para qualquer visão politicamente persuasiva do primado do
direito. Ao final do texto fazem a seguinte provocação: "O código
legislativo não se auto-aplica nem auto-interpreta. Para assegurar o primado do
direito é necessário ter regras prospectivas conhecidas por todos. Mas, como
destaca L.L. Fuller, é necessário que elas sejam interpretadas de uma forma
razoável e propositada, e fielmente postas em ação pelos oficiais do estado
respectivo. Como se há-de assegurar isto?"
[6]
Scientia é palavra latina, significa “aprender ou alcançar conhecimento”
Do grego Scirem, ciência significa conhecimento criticamente
fundamentado “caracteriza-se pelo conhecimento racional, sistemático, exato, verificável
e falível”. “É a atividade que propõe a aquisição sistemática do conhecimento
sobre a natureza biológica, social e tecnológica. A ciência desconfia das
nossas certezas! Vê o mundo através de problemas e obstáculos. O Conhecimento
Científico é objetivo – busca estruturas universais. É quantitativo – busca
medidas e padrões. É homogêneo – busca leis gerais de funcionamento. É generalizador
– reúne coisas percebidas como diferentes sob leis semelhantes.
[7]
A Filosofia de Kant recebeu o nome de criticismo, pois entre seus grandes
objetivos constava submeter a razão a uma grande e profunda crítica, na busca
de um conhecimento bem fundamentado, descartando como conhecimentos seguros
aqueles que não apresentavam base científica. Nessa lógica, Kant estabelece que
o conhecimento seguro deriva da experiência e caminha para os juízos universais.
Ou seja, ele faz uma síntese entre o empirismo e o racionalismo, articulando
essas duas visões que eram vistas como antagônicas, contrárias,
irreconciliáveis. Kant é seguramente o filósofo mais importante da Ilustração
e, quiçá, de toda a modernidade. Por isso frequentemente se divide o pensamento
moderno entre pré-kantiano e pós-kantiano. Quando cogitamos assim, na verdade,
estamos distinguindo entre o tipo de filosofia que se fazia antes e depois da
Crítica da razão pura, já que é nesta obra que são sintetizados os princípios
do criticismo kantiano e da revolução copernicana na filosofia. No entanto,
Kant não foi sempre um crítico, já que possuiu uma larga fase denominada
pré-crítica, na qual ainda não havia desenvolvido o criticismo. Contudo, podemos
interpretar toda esta ampla etapa como um continuado esforço de Kant para
conseguir formular o criticismo, que constitui seu pensamento maduro e a
síntese de sua contribuição filosófica. Deve-se notar, contudo, que Kant possui
um pensamento muito complexo e bem mais amplo que o identificado com suas três
críticas: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica da
faculdade de julgar.
[8]
Para Kant, o Direito Natural básico do ser humano é a liberdade. ... Não há
direito natural como regra tirada da natureza. O direito positivo não encontra
seu fundamento de validade última em si mesmo ou no arbítrio do legislador, mas
na razão, ou em última palavra, na liberdade, o único direito natural. Na
teoria Tomista, o Direito Natural não figura apenas como “ditame da boa razão”.
Para muito além, o Direito Natural é a própria lei de Deus inscrita no coração
dos homens; constitui em si mesmo a afirmação de uma nova lei inaugurada pelo
advento do messias e que assim, pode substituir a velha lei correspondente ao
conjunto de mandamentos prescritos pelo antigo testamento bíblico. A teoria
inaugurada por Aquino afirma a existência da lex aeterna. Esta seria a
expressão da razão divina que governa todo o universo. Por meio desta figura
surge a lex naturalis que é derivação da lex aeterna, que propicia
um momento de participação humana nesta lei maior, isto é, na lex aeterna,
por meio da razão. Aquino leciona ainda acerca da lex humana que
derivada desta última (lex naturalis), correspondente à lei que se
aplica a cada caso concreto, isto é, a lei em sentido “positivo”.
[9]
Nessa época, Savigny sustentava que o direito era uma ciência que se deveria
elaborar histórica e filosoficamente.
Portanto, o conhecimento do direito não poderia reduzir-se a uma mera
exposição fragmentária do sentido das normas, mas deveria ser capaz de
organizar sistematicamente todos os conceitos jurídicos. Friedrich Carl von
Savigny (21 de fevereiro de 1779 – 25 de outubro de 1861) foi um dos mais
respeitados e influentes juristas alemães do século XIX. Maior nome da Escola
Histórica do Direito, seu pensamento teve grande influência no Direito alemão,
bem como no Direito dos países de tradição romano-germânica, especialmente no
Direito civil. Savigny é responsável pela criação e pelo desenvolvimento do
conceito de relação jurídica e de diversos conceitos relacionados, como o de
fato jurídico, tendo seu método histórico influenciado, entre outros
movimentos, a jurisprudência dos conceitos. Na política alemã, Savigny foi
Ministro da Justiça entre 28 de fevereiro de 1842 e 30 de março de 1848, tendo
renunciado devido à revolução.
[10]
O princípio da in claris cessat interpretatio não tem mais aplicação na
atualidade, pois mesmo quando o sentido da norma é claro não há, desde logo, a
segurança de que a mesma corresponda à vontade legislativa, pois é bem possível
que as palavras sejam defeituosas ou imperfeitas que não produzam em extensão o
conteúdo. Considerada a passagem histórica, o in claris cessat interpretatio
teve uma grande importância, uma vez que despertou o interesse de estudiosos
que posteriormente viriam a sistematizar técnicas interpretativas que
originariam a disciplina autônoma da Hermenêutica jurídica. Antes do surgimento
desta, grandes pensadores trouxeram contribuições para a prática da
interpretação. No mesmo Digesto, Ulpiano afirmava que “embora claríssimo o
edito do pretor, contudo não se deve descusar da interpretação respectiva”.
Ainda no mesmo livro do Corpus Júris Civilis, Celso brilhantemente
pondera que “saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e
poder”.
[11]
No decorrer da história houve exemplos de ordenamentos que proibiam ou
repudiavam o processo de interpretação dos dispositivos legais. Dentre eles
vale citar o Código da Baviera (1841) que proibiu a interpretação dos seus
dispositivos e a famosa frase que Napoleão Bonaparte disse quando passaram a
interpretar o Código Civil francês: “o meu código está perdido”. Apesar dessas
posições em contrário, verdade é que interpretar não uma opção quando a lei se
mostra obscura ou lacunosa, mas uma regra a ser seguida quando se objetivar um
entendimento com maior certeza e segurança, atentando, sobretudo nos tempos
atuais, a critérios de justiça. “Admitir uma imperfeição acidental das leis,
como condição necessária da interpretação, é considerá-la como um remédio a um
mal, remédio cuja necessidade deve diminuir à medida que as leis de tornem mais
perfeitas”.
[12]
Em 1929 publicam "O ponto de vista científico do Círculo de Viena",
manifesto que expunha, em síntese, a postura filosófica do grupo e os problemas
das filosofias, das matemáticas e das físicas que procuravam resolver. Citam a
metafísica como o exemplo da ausência de sentido gerada pelo menosprezo da
lógica real da linguagem. Como refere Ayer (1978, El positivismo lógico),
"no caso dos positivistas lógicos juntou-se o epíteto de
"lógica" porque pretenderam incorporar os descobrimentos da lógica
contemporânea. Pensavam que, em particular, o simbolismo lógico (desenvolvido
nomeadamente por Russel) lhes seria útil, contudo, a sua atitude geral é a
mesma de Hume". Dividiam as proposições significativas em duas classes: as
proposições formais, como as da lógica ou as das matemáticas puras, que diziam
ser tautológicas, e as proposições fáticas, que requeriam ser verificáveis
empiricamente. "Supunha-se que estas classes continham todas as
proposições possíveis de modo que se uma proposição não conseguisse expressar
nada que fosse formalmente verdadeiro ou falso, nem expressar algo que pudesse
submeter-se a prova empírica, se adotava o critério de que ela não constituía
uma proposição em absoluto" (Ayer, 1978). A sua atitude empírica
estende-se a todos os domínios do pensamento. Para eles, o tratamento
matemático e lógico dos factos e a prova empírica são as fontes exclusivas do
conhecimento científico. Os positivistas lógicos fazem "depender a
impossibilidade da metafísica não na natureza do que se pode conhecer, mas na
natureza do que se pode dizer; a sua acusação contra o metafísico é no sentido
de que viola as regras que um enunciado deve satisfazer para ser literalmente significativo"
(Ayer). Os positivistas vienenses interessaram-se principalmente pelas ciências
formais e naturais e, embora não identifiquem a Filosofia como ciência, achavam
que esta poderia contribuir para o progresso do conhecimento científico. In:
neopositivismo in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020.
[consult. 2020-11-05 16:32:34]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/$neopositivismo Acesso em 05.11.2020.
[13]
A teoria de Neil MacCormick permite refletir sobre o significado de normas
jurídicas como elementos de práticas sociais por elas reguladas através de
instituições. Práticas só existem na medida em que as ações dos agentes são
regradas. Mas, diferente de outras práticas sociais há conflitos que precisam
ser resolvidos. Para tanto, há sempre uma autoridade encarregada da aplicação
das regras, que deve interpretar o direito para aplicá-lo de maneira justa e
independente da vontade da autoridade de quem interpreta. De fato, o autor
elaborou uma “teoria institucional do direito”, em que afirma que se trata de
uma “teoria pós-positivista do Direito que sustenta a possibilidade do
conhecimento jurídico genuíno, mas não um conhecimento avalorativo”, e uma
“teoria da argumentação jurídica”, que reconhece a insuficiência da
argumentação puramente dedutiva no contexto jurídico e destaca o lugar da
universalizabilidade e de um consequencialismo restrito na solução de
problemas. A partir da teoria de Paul Ricoeur é possível refletir sobre a
posição do sujeito que age de acordo com o direito, seu distanciamento em
relação ao texto ao mesmo tempo em que o concretiza com sua ação. E cada ação
cria ou se remete a um legado capaz de moldar a história de uma sociedade e seu
presente, na medida em que a ação se torna um referencial para futuras decisões
e um legado em si mesma.
[14]
John Langshaw Austin (1911—1960) foi um filósofo da linguagem britânico que
desenvolveu uma grande parte da atual teoria dos atos de discurso. Filiado à
vertente da Filosofia Analítica interessou-se pelo problema do sentido em
filosofia. Fortemente influenciado por autores como Thomas Hobbes, Jeremy
Bentham, David Hume, Paley e Berkeley, Austin publicou em vida, no ano de 1832,
a sua obra mais importante, “The Province of Jurisprudence Determined”
(numa tradução livre “a determinação do âmbito da teoria do direito”). Em 1863,
uma coletânea com suas anotações foi publicada por sua esposa com o nome de “Lectures
on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law” (“Aulas de
teoria do direito ou a filosofia do direito positivo”). Sua obra passou quase
despercebida em vida. No fim do século XIX, no entanto, o tratamento
sistemático e desligado de questões ligadas à moral dispensado por Austin ao
direito ganhou popularidade e a sua obra passou a ser amplamente estudada nas
universidades inglesas, tendo influenciado diversos juristas, incluindo Maine,
Bryce, Markby, Oliver Wendell Holmes Junior e H. L. A. Hart.
[15]
Peter Guy Winch (1926-1997) foi filósofo britânico conhecido por suas
contribuições à filosofia da ciência social, estudos de Wittgenstein, ética e
filosofia da religião. Famoso por sua primeira obra The idea of a
Social Science and its Relation to Philosophy de 1958, onde fez um ataque
ao positivismo nas ciências sociais, baseado no trabalho de Collingwood e na
filosofia posterior de Wittgenstein.
[16]
Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859 —1938) foi um matemático e filósofo alemão
que estabeleceu a escola da fenomenologia. Ele rompeu com a orientação
positivista da ciência e da filosofia de sua época. Elaborou críticas ao
historicismo e ao psicologismo na lógica. Em seu trabalho maduro, ele procurou
desenvolver uma ciência sistemática baseada na chamada redução fenomenológica.
Argumentando que a consciência transcendental estabelece os limites de todo
conhecimento possível, Husserl redefiniu a fenomenologia como uma filosofia
transcendental-idealista. O pensamento de Husserl influenciou profundamente
todo o cenário da Filosofia do século XX e XXI. Apesar de ter nascido em uma
família de origem judaica, em 1886 Husserl foi batizado como luterano. As leis raciais do regime nazista de 1933
tiraram sua situação acadêmica e privilégios. Na sequência de uma doença, ele morreu
em Friburgo, em 1938. Husserl influenciou, entre outros, os alemães Edith
Stein, Eugen Fink e Martin Heidegger, e os franceses Jean-Paul Sartre, Maurice
Merleau-Ponty, Michel Henry e Jacques Derrida. O interesse do matemático
Hermann Weyl pela lógica intuicionista e pela noção de impredicatividade teria
resultado de contatos com Husserl. Na verdade, a impulsão primeira da lógica
positivista, bem como seus desenvolvimentos mais recentes, seria estreitamente
tributários da crítica de certos aspectos da filosofia de Husserl pelas
filosofias britânica e americana. Ao reverso, a obra do discípulo Heidegger foi
considerada pelo mestre como resultado de graves interpretações incorretas de
seus ensinos e métodos.
[17]
Hans-George Gadamer (1900-2002) foi um filósofo alemão considerado como um dos
maiores expoentes da hermenêutica (interpretação de textos escritos, formas
verbais e não verbais). Sua obra mais relevante é intitulada "Verdade e
Método" de 1960, onde elabora uma filosofia propriamente hermenêutica, que
trata da natureza do fenômeno da compreensão. É considerado um dos mais
importantes pensadores do século XX, tendo tido um enorme impacto em diversas
áreas, da estética ao direito, e tendo adquirido respeito e reputação na
Alemanha e em outros lugares da Europa que foi muito além dos limites
costumeiros da academia. Os muitos ensaios, palestras e entrevistas de Gadamer
sobre ética, arte, poesia, ciência, medicina e amizade, bem como referências ao
seu trabalho por pensadores nesses campos, atestam a onipresença e relevância
prática do pensamento hermenêutico hoje.
[18]
Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (1889-1951) foi filósofo austríaco,
naturalizado britânico. Um dos principais autores da virada linguística na
filosofia do século XX. Suas principais contribuições foram feitas nos campos
da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da matemática, e filosofia da
mente. Muitos o consideram o filósofo mais importante do século passado. Seu
mais popular livro de filosofia publicado, o Tractatus Logico-Philosophicus, de
1922, exerceu profunda influência no desenvolvimento do positivismo lógico.
Mais tarde, as ideias por ele formuladas a partir de 1930, e difundidas em
Cambridge e Oxford, também impulsionaram um outro movimento filosófico — a
chamada "filosofia da linguagem comum". Seu pensamento é geralmente
dividido em duas fases. Para identificá-las, muitos autores recorrem ao
artifício de atribuir os escritos da juventude ao Primeiro Wittgenstein e a
obra posterior ao Segundo Wittgenstein, como se designassem autores distintos.
A cada um desses períodos corresponde uma obra central na história da filosofia
do século XX. À primeira fase, pertence o Tractatus Logico-Philosophicus, livro
em que Wittgenstein procura esclarecer as condições lógicas que o pensamento e a
linguagem devem atender para poder representar o mundo. À segunda fase,
pertencem as Investigações Filosóficas, publicadas postumamente, em 1953. Nesse
livro, Wittgenstein trata de tópicos similares aos do Tractatus (embora sob uma
perspectiva radicalmente diferente) e avança sobre temas da filosofia da mente
ao analisar conceitos como os de compreensão, intenção, dor e vontade.
[19]
Finaliza-se afirmando que essa hermenêutica linguístico-filosófica em Gadamer
se fez histórica para a hermenêutica jurídica porque rompe com concepções
metafísicas e práticas de produção de conceitos para o consumo dos juristas.
Ela acredita em uma forma de compreender o direito através do modo humano de
ser-no-mundo, perpassando a compreensão a partir da historicidade e posição no
mundo: Gadamer não acredita que o encontro com o direito deva ser neutro, mas
que seja um encontro do próprio ser com a sua historicidade.
[20]
Como uma prática filosófica, é caracterizada pela valorização da clareza e
precisão argumentativa, utilizando-se da lógica formal, análise conceitual e,
em alguns casos, da matemática e ciências naturais. Tem suas raízes no início
do século XX, com o movimento conhecido como positivismo lógico e em filósofos
como o Prêmio Nobel Bertrand Russell, o pai da lógica moderna Gottlieb Frege, o
editor da renomada revista Mind e defensor dos conceitos de senso comum George
Edward Moore e Ludwig Wittgenstein, autor do ainda hoje influente Tractatus
Logico-Philosophicus, de 1921.
[21] Com
os processos de globalização “a nação se transforma em mera província do
capitalismo mundial sem condições de realizar sua soberania [...]. Um
Estado-Nação em crise, amplamente determinado pelo jogo das forças produtivas
predominantes em escala mundial [...] o Estado se torna mais comprometido com o
que é transnacional, mundial ou global, reduzindo seu compromisso com
inquietações ou reivindicações da sociedade civil [...]”. (Otavio Ianni: 2001).