Discurso Jurídico do Supremo Tribunal Federal

Análise das metáforas e ficções jurídicas presentes no discurso do STF revela como a linguagem pode refletir e reforçar ideologias, influenciando a percepção e a aplicação do direito

Fonte: Gisele Leite

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Discurso Jurídico do Supremo Tribunal Federal.


Metáforas e ficções jurídicas.


Resumo: Identifica-se a ocorrência de uma metáfora conceitual “Direito é Guerra” nas decisões exaradas pela mais alta corte de justiça pátria, principalmente, no âmbito do Direito Constitucional, Civil e Administrativo.


Palavras-chave: Jurisprudência. STF. Argumentação Jurídica. Discurso Jurídico. Ficção jurídica.


Nota-se, igualmente, os pressupostos teóricos de Louis Althusser, Michel Pêcheaux, Lakoff e Johnson, Habermas, Tony Sardinha e tantos outros doutrinadores que usaram de métodos estatísticos, num estudo empírico sobre a metáfora conceitual e ainda outras metáforas licenciadas livremente dentro do discurso jurídico contemporâneo.


Entendemos que o Direito em face de suas idiossincrasias e relevância dentro do atual momento civilizatório, merece um olhar mais aguçado dos pesquisadores de todas as áreas das ciências humanas, especialmente, nos discursos jurídicos que são urdidos e compostos de metáforas que permeiam todas as construções e ficções do direito e sobre as quais o aparelho repressor e reprodutor de ideologias no seio da sociedade.


Acerca do emprego da metáfora conceitual “Direito é guerra”, na jurisprudência da mais alta corte de justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal – STF, em decisões constitucionais, cíveis e administrativas, analisando-lhes a carga semântica transferida, a incidência e a relevância do emprego de types (palavras), tokens (variações) e expressões metafóricas licenciadas pela metáfora conceitual no período dos últimos 12 (doze) meses.


Louis Althusser (1980) ao se referir ao Direito afirmou que está se referindo a um conjunto não somente normativo, mas também institucional, composto pela Polícia, pelos Tribunais e as Prisões, bem como tudo o que o cerca, tal como os elementos da própria atividade normativa e jurisdicional do Estado.


O doutrinador destacou que o direito é o único elemento do Estado que tem dupla finalidade, ser aparelho repressivo e ideológico do Estado.


O Direito não apenas serve de organismo repressor que irá “vigiar e punir” (Foucault, 1987), defendendo o stablishment, a lei e a ordem a serviço do Capital, como também gestará e reproduzirá em seus mecanismos a ideologia do Estado, através dos discursos urdidos pelos diversos atores e operadores do Direito.


E, diante dessa realidade, é nesse momento que exsurge a Teoria do Agir Comunicativo, de Jünger Habermas (1989), como uma possível resposta no sentido de ressignificar o Direito e suas estruturas repressoras/reprodutoras, numa inegável interconexão entre Direito e Linguagem, posto que não existe nem um nem o outro sem comunicação. Habermas situa o direito numa dupla tensão entre facticidade e validade, ou seja, entre o plano factual e o normativo. Trata-se de uma dupla tensão pois presente tanto internamente quanto externamente ao próprio direito.


Para Habermas (1989) além das representações ou suposições, os atos de fala produzem e renovam as relações interpessoais, tanto no mundo das interações sociais quanto na esfera de subjetividades.


E, assim foi que Habermas desenvolveu sua Teoria Discursiva do Direito, destacando pontos principais do Direito Continental Europeu, de família romana e, que está muito ligado ao Direito brasileiro.


Habermas destacou ainda o caráter subserviente do Direito ao Estado e, seu distanciamento do cidadão, denotando seu simples divórcio dos ideais de democracia.


Aliás, o Direito como meio organizacional de uma dominação política, referida aos imperativos funcionais de uma sociedade econômica diferenciada, o direito moderno continua sendo um meio extremamente ambíguo da integração social. Com muita frequência o direito confere a aparência de legitimidade ao poder ilegítimo.


À primeira vista, ele não denota se as realizações de integração jurídica estão apoiadas no assentimento dos cidadãos associados, ou se resultam de mera programação do Estado e do poder estrutural da sociedade; tampouco revela se elas, apoiadas neste substrato material, produzem por si mesmas a necessária lealdade das massas.


Cabe alertar sobre as origens e evolução da língua do Direito. E, nesse sentido, Pechêux (1990) estabelece a gênese da língua do Estado na Idade Média e que servia de barreira divisória a divorciar a massa daqueles que eram os únicos suscetíveis de compreender, o que se tinha a dizer, e fez referência à obra Régis Debray, "O Escriba: a gênese do político", que esclarece que o Estado e a Igreja, na Idade Média, ressuscitam e estabeleceram o latim como língua das "comunicações internacionais".


Não é sem razão que as bases do Direito são romanas, assim como o latim é idioma mais referido nas ficções e construções artificiais do Direito, como habeas corpus, habeas data, mandamus, inaudita altera partes, nemo potest venire contra factum proprium, sem esquecer outras expressões, máximas e brocardos latinos, como por exemplo, data maxima venia, a quo, ad quem, de cujus, eventum damni, etc.


A língua do Direito se traduz em plenos enunciados e códigos herméticos que não estão diretamente envolvidos na estrutura jurídica, se tratando de uma língua artificial, criada, desenvolvida e reproduzida com o único sentido de afastar a compreensão dos não iniciados, dos mecanismo do Direito.


A jurisprudência registra vários precedentes em que as conclusões se basearam em brocardos jurídicos. Citam-se dois:


PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. OBSCURIDADE. SENTENÇA E ACÓRDÃO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA.– Cabe ao juiz aplicar aos fatos trazidos a norma jurídica que entende apropriada, conforme princípios emanados dos brocardos jurídicos jura novit curia e da mihi factum, dabo tibi jus.


(TRF3, REOMS 4710/SP 2000.61.09.004710-3, Rel. Eva Regina, 26/04/2004).Prestação de serviços educacionais. Contrato celebrado sob a égide do Código Civil de 1916. Aplica-se o prazo prescricional anuo do artigo 178, parágrafo 6º, inciso VII, do diploma civil anterior, não alterado pela Lei 9.870/99. Incidência do brocardo jurídico dormientibus non sucurrit jus. É de rigor a cobrança das mensalidades não abrangidas pela prescrição. Não formalizada a desistência por escrito, conforme cláusula expressa. Sucumbência recíproca. Recurso da autora parcialmente provido, para julgar parcialmente procedente a ação. (TJSP, CR 941086008, Rel. Campos Petroni, 30/01/2009)


Volkoff (1999) assinalou que a forma como as "línguas de madeira" utilizam figuras de linguagem para criar e reproduzir o aparato ideológico do Estado.


A antiga “língua de madeira” se utilizava de imagens linguísticas e figuras de retórica para realizar propaganda ideológica, como a alegoria, o eufemismo, a prosopopeia, a metonímia e metalepse. Utilizava-se do maniqueísmo simplista para exaltar suas próprias virtudes e ainda desmoralizar o inimigo.


E, segundo Volkoff (1999) relaciona a "língua de madeira" com a assertiva do então chefe da propaganda nazista do Terceiro Reich, Paul Joseph Goebbels, para o qual, "Não falamos para dizer alguma coisa, mas obter um determinado efeito".


Voltando-se a proposta de Habermas (2003) que sugere romper com os atuais paradigmas do Direito, e centrarmo-nos em novo paradigma no qual o Direito passaria a ser um poder democrático e participativo, servindo de médium para o debate democrático e a exposição racional de argumentos.


Nesse vetor, Habermas (2003) ressaltou a forma e funcionamento desse novo paradigma jurídico: "O paradigma jurídico procedimental procura proteger, sobretudo, as condições do procedimento democrático. Elas adquirem um estatuto que permite analisar, sob outra luz, os diferentes tipos de conflito.


Os lugares antes ocupados pelo participante privado do mercado e pelo cliente das burocracias do Estado de bem-estar social são assumidos por cidadãos que participam de discursos públicos, articulando e fazendo valer interesses feridos, e colaboram na formação de critérios para o tratamento igualitário de casos iguais e para o tratamento diferenciado de casos diferentes.


[...] O fardo dessa legitimação suplementar poderia ser assumido pela obrigação de apresentar justificações perante um fórum jurídico crítico. Isso seria possível através da instauração de uma esfera pública jurídica capaz de superar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensível para transformar as decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas".


Observa-se que estamos distantes da utopia criada por Habermas, posto que inexequível no atual cenário internacional e atual estágio de evolução dos seres humanos, cada vez mais propensos à autodestruição.


Aliás, o rompimento do atual paradigma do Direito, não democrático, fleumático e subserviente ao Estado e ao Capital, demanda também expropriar o Direito de seu linguajar de madeira, expondo-lhes as entranhas e as formas como são urdidos seus discursos e estabelecendo as formas como sua ideologia belicosa é urdida e reproduzida nos textos escritos e orais que permeiam a prática dos tribunais".


Insta-nos, assim, apreender, dissecar e compreender o discurso jurídico, seja na análise crítica, ou através do estudo da jurisprudência que evidenciam o cognitivo e o imaginário dos operadores do Direito, como forma de contribuir para a quebra de paradigma proposta por Habermas.


A metáfora não se traduz como mero recurso estilístico ou mesmo adorno de discurso, o que pode ser corroborado por Verezza (2010) que assim traduziu sua compreensão da metáfora, in litteris: “[...] ela não é mais apenas um adorno supérfluo, mas um importante recurso cognitivo usado, não só para se “referir” a algo por meio de outro termo mais indireto, mas, de fato, construir esse algo cognitivamente, a partir da interação com um outro domínio da experiência”.


Com efeito, muitos conceitos, muitas ficções e institutos são construídos a partir de sentido ou de um lugar metafórico e no sentido inverso, muito do mundo que nos cerca, nos é dado compreender através de metáforas.


Muito nos apoiamos em metáforas com o objetivo de conhecer não apenas o outro, mas também a esse estranho que diariamente nos observa a partir do espelho.


É diante dessa importância fundamental da metáfora para nosso devir cognitivo e para a construção da realidade em nosso entorno, que exsurge a Teoria da Metáfora Conceptual proposta por Lakoff e Johnson (1980).


Como bem assevera Zoltán Kövecses (2011), a linguística de corpus deveria prestar uma atenção maior ao estudo da metáfora conceptual: “Acredito que os estudos de corpus de conceitos-alvo específicos devam prestar mais atenção à análise dessas metáforas conceptuais que podem ser consideradas “centrais” no que diz respeito aos conceitos-alvo. Essas são as metáforas que mais contribuem para a estrutura e o conteúdo dos conceitos abstratos”.


Asseverou Tony Berber Sardinha (2007) esse é um campo desafiador para a "Linguística de Corpus". A teoria da metáfora conceptual coloca desafios para a Linguística de Corpus, principalmente porque nessa visão, metáfora é uma representação mental. Ela é cognitiva (existe na mente e atua no pensamento).


[...] Como a Linguística de Corpus se ocupa de dados realizados, de produção, como pode ela dar conta de encontrar as metáforas conceptuais, que residem na mente?


Para Berber Sardinha (2007) a resposta se encontra nas expressões metafóricas licenciadas pela metáfora conceptual e pelos padrões de uso da língua que nos permitem deduzir tanto as expressões metafóricas quanto as metáforas conceptuais.


Sinteticamente, uma metáfora conceitual faria parte de um “inconsciente cognitivo coletivo” pairando sobre e antes do discurso ser urdido, de forma que as expressões metafóricas são de alguma forma, correlacionadas e subordinadas a esta.


Vide as expressões como a “presente lide”, em verdade, trata de assunto diverso, ao usar o termo lide, em vez de ação ou processo, remetem a uma metáfora conceitual de que Direito é guerra, dado que a carga semântica de lide se traduz em luta, peleja, batalha e combate.


Temos dois domínios subjacentes à metáfora conceitual, o domínio origem, do qual brotam as inferências e o domínio destino aos quais as inferências se aplicam, como esclarece Kövecses (2010).


Os dois domínios que participam da metáfora conceitual têm nomes especiais. O domínio conceitual do qual extraímos expressões metafóricas para entender outro domínio conceitual é chamado de domínio de origem, enquanto o domínio conceitual entendido dessa forma é dada à historicidade da prática social aplicada do direito, cujas origens remontam as civilizações guerreiras da Suméria e tem sua base conceptual no Direito Romano, o mais beligerante dos impérios da antiguidade, não é surpresa que esse fenômeno social tenha a faculdade de ser conceptualizado a partir de termos e vocábulos militares.


Tais exemplos corroboram a conceptualização do direito como guerra, na qual os sujeitos do processo são inimigos em combate e as armas são os argumentos de uma e doutra banda, manejados pelos soldados treinados para isso, os advogados e promotores, tendo como teatro de operações os campos de batalha de nossos tribunais.


Dessa forma, veremos que “Direito é guerra” é uma metáfora superordenada com o mapeamento “Direito é litígio”, “Direito é luta”, “Direito é ataque e defesa”.


De fato, não existe um corpus jurídico ao qual se possa recorrer e aplicar as formas tradicionais de análise, desenvolvidas com os softwares como “concordanciadores, extratores de frequência e etiquetadores” (BERBER SARDINHA, 2004), isso porque “o Banco de Português, o Lácio Web, o Tycho-Brahe, de português histórico, a Linguateca” e os vários corpora em português, inclusive o do NILC, de português brasileiro, não possuem corpus da área por nós pretendida.


Ainda nesse sentido, destaca-se que o Corpus Brasileiro v. 5.1 (BERBER SARDINHA, 2019), sequer tem indexado os gêneros “direito” e “sentença” – objetos mediatos do presente estudo – e, como consequência lógica, a pesquisa por expressões metafóricas compostas pelos tokens “direito” e “estratégia”.


O pesquisador, Dr. Tony Berber Sardinha, desenvolveu em parceria com o Dr. Kenneth Ward Church um algoritmo para extração de metáfora conceptual e expressões metafóricas em corpus submetidos por outros pesquisadores através do sítio http://www4.pucsp.br/pos/lael/corpora/, da PUC São Paulo.


No entanto, o sistema foi descontinuado e ao intentar-se o upload de corpora, retorna a mensagem “2008/12/08: “Infelizmente, devido a problemas além da minha alçada, este serviço está suspenso sem perspectiva de retorno”.


Ainda nesse sentido, as versões do software dos referidos pesquisadores, o Metaphor 1 e 2, estão indisponíveis nos servidores da instituição que retorna sempre o aviso 404 – Page Not Found.


Evidente que existe corpus jurídicos que não estão disponíveis e publicizados na rede mundial de computadores, bem como também é certo que há outros pesquisadores que se debruçam sobre corpora jurídicos.


Trazemos como exemplo, a Dra. Rove Chishman da UNISINOS, que vem desenvolvendo importante projeto de “tecnologias semânticas aplicadas à recuperação de informação jurídica”, baseado teoria da semântica de frames de Charles J. Fillmore (1982).


O corpus analisado foi eleito a partir de um recorte epistemológico, limitado no tempo e no espaço, às decisões do STF no período compreendido entre 24 de julho de 2018 e 24 de julho de 2019, limitando-se ainda aos campos do direito constitucional, matéria eminentemente afeta ao STF, direito civil e administrativo, esses por sua conexão direta e específica ao direito constitucional.


Dessa forma, cabem algumas considerações acerca dos mecanismos e softwares disponíveis para a coleta e manipulação de dados a serem estudados, e as dificuldades encontradas.


O primeiro software testado foi o Digesto® (2019), um web search engine, baseado em um site da Internet cujos robots apresentaram uma severa inconsistência de dados quando aplicado filtro temporal para limitar o corpus ao período pretendido e que não distingue no filtro “federal”, os Tribunais Regionais Federais dos Tribunais Superiores, além de retornar resultados negativos para os types delimitados.


No mesmo sentido, Stefanowitsch (2006) referência e descreve o método adotado da seguinte forma: (ii) Pesquisando o vocabulário do domínio de origem. Expressões metafóricas e metonímicas sempre contêm itens lexicais de seu domínio de origem (é isso que os torna não literais em primeiro lugar).


Portanto, é uma estratégia razoável iniciar uma investigação selecionando um domínio de origem em potencial (ou seja, um domínio ou campo semântico conhecido por desempenhar um papel em expressões metafóricas ou metonímicas).


Em uma primeira etapa, o pesquisador pode procurar por itens lexicais individuais desse domínio (cf. Deignan 1999a, b, este volume, Hanks 2004, este volume, Hilpert, este volume) ou conjuntos inteiros de tais itens (cf. Partington 1997, 2003, este volume, Koller, este volume, Markert e Nissim 2002b, este volume).


A escolha dos itens pode ser baseada em decisões a priori (cf. Deignan, este volume, Koller, este volume, Hilpert, este volume), pode ser baseada em listas exaustivas existentes (cf. Markert e Nissim, este volume), ou pode basear-se em uma análise de palavras-chave precedentes de textos que tratam de tópicos do domínio de destino (cf. o procedimento de seis etapas, apresentado por Partington, este volume, baseado em Partington 1997, 2003).


A busca desses itens pode ser exaustiva (ou seja, todas as ocorrências do item(s) em questão são recuperados, cf. Deignan, este volume, Hilpert, este volume, Koller, este volume) ou pode ser limitada a contextos particulares que são considerados promissores (cf. Hanks, 2004, este volume) ou relevantes para a questão de pesquisa (Stefanowitsch 2005).


Numa segunda etapa, o pesquisador identifica os domínios-alvo nos quais esses itens ocorrem e, assim, os mapeamentos metafóricos ou metonímicos dos quais participam.


Nesse ponto, cabe refazermos a analogia de Volkoff (1999) que acertadamente relaciona as “línguas de madeira” com a Nova língua (Newspeak), da obra de George Orwell 1984 (2009), que traduz os reais objetivos das línguas artificiais como o Direito:


A ideia era que, uma vez definitivamente adotada a Nova língua e esquecida a Velha língua, um pensamento herege, isto é, um pensamento que divergisse dos princípios do Socing — fosse literalmente impensável, ao menos na medida em que pensamentos dependem de palavras para serem formulados.


[...] Por outro lado, embora fosse vista como um fim em si mesma, a redução do vocabulário teve alcance muito mais amplo que a mera supressão de palavras hereges: nenhuma palavra que não fosse imprescindível sobreviveu.


A Nova língua foi concebida não para ampliar, e sim restringir os limites do pensamento, e a redução a um mínimo do estoque de palavras disponíveis era uma maneira indireta de atingir esse propósito. (grifou-se)


O objetivo da dureza da língua do Direito não é construir um vocabulário seu, que atenda as exigências de um campo do saber com suas peculiaridades, mas sim, moldar o pensamento dos operadores e da sociedade em geral, para que, ainda que por meios indiretos, jamais cheguem à conclusão de que o direito seria totalmente prescindível em uma sociedade pautada pelo respeito total à vida e a liberdade.


O Discurso jurídico, verdadeira “Nova língua”, serve, portanto, para reduzir a capacidade de pensamento e de crítica, criando a ilusão de ordem e normalidade e como afirmou Habermas (2003), conferindo a “aparência de legitimidade ao poder ilegítimo”.


Buscou-se com o presente texto demonstrar a existência de uma metáfora conceitual, “Direito é Guerra”, que permeia o imaginário da mais alta corte de justiça brasileira, e que se expressa no discurso jurídico através do uso de types, tokens e expressões que remetem a referida metáfora.


Com efeito, a discussão dos resultados comprovou empiricamente, não apenas a ocorrência significativa dos types buscados e das expressões pinçadas das decisões alvo do estudo, como demonstrou também que a substituição de quaisquer types e tokens, uns pelos outros, ou mesmo por novos types e tokens licenciados pela metáfora conceitual "Direito é Guerra", transfere indubitavelmente a carga semântica, de forma que o discurso jurídico mantém seu sentido original, sua significação e compreensão pelos falantes do “juridiquês”.


Mais do que demonstrar a ocorrência da metáfora conceitual no discurso entalhado nos tribunais, esse artigo serve de base cognitiva a desvendar os meandros da mente “jurista” e as diversas formas e empregos da metáfora como algo que transcende o mero adorno do discurso no sentido da retórica.


Com efeito, poucos são os magistrados que, de fato, tecem e urdem a sentença em uma língua acessível a todos os falantes.


Visto que, a grande maioria ainda esculpe e entalha em “língua de madeira”, uma sentença adornada com um verniz de erudição que no mais das vezes apenas é compreendida pelos iniciados na seita do direito.


Ressaltamos que a maioria das sentenças, acórdãos ou decisões do STF (sete de cada dez), comportam alguma inferência à metáfora conceptual “Direito é guerra”.


Ou seja, o método estatístico utilizado demonstrou de forma inequívoca que, apesar do discurso institucional de que o direito exerce o papel de pacificador dos conflitos, o discurso ter sido e urdido nas sentenças da mais alta corte de justiça do Brasil, ainda se encontra permeado em seu coletivo cognitivo por uma metáfora conceptual antagônica ao referido discurso.


Conclui-se que é necessário desconstruir o discurso jurídico dominante, permeado por polissemias e anacronismos é essencial para que as estruturas não democráticas do Poder Judiciário brasileiro possam ao menos dialogar de forma eficiente com a sociedade, convertendo-se em medium, baseado não na força das palavras “duras” ou da autoridade mantenedora do status quo e reprodutora das ideologias do sistema, mas sim, baseado na razão comunicativa, democrática e participativa.


O Direito exerce papel político, função social e pode-se proferir que suas características fundamentais são a generalidade (que não se confunde com neutralidade) e a alteridade (bilateralidade). Estabelecido que o texto jurídico é uma maneira de comunicação, nele acontecem os elementos envolvidos no ato comunicatório. Deve ter, então, um objeto de comunicação (mensagem) com um conteúdo (referente), transmitido ao receptor por um emissor, por meio de um canal, com seu próprio código.


Toda e qualquer maneira de comunicação se apoia no binômio emissor-receptor e não existe comunicação unilateral. A comunicação é, fundamentalmente, um ato de partilha, o que insinua, no mínimo, bilateralidade. Situado que a comunicação não é ato de um apenas, mas de todos os elementos dela participantes, constata-se que a realização do ato comunicatório apenas se efetivará, em sua plenitude, quando todos os seus componentes funcionarem adequadamente.


No atual cenário brasileiro, percebe-se tal segmentação deixando evidente que o falar jurídico exclui uma grande parte da sociedade e tornando necessária a aproximação desse discurso jurídico das camadas sociais ditas leigas no assunto.


Sendo assim, persistirá a necessidade de abordagem, discussão, aprofundamento e maior compreensão desse tema, que busca incessantemente erradicar todo e qualquer método que seja caro, moroso e inalcançável para a população.


Referências


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Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Discurso jurídico STF metáforas ideologia análise crítica

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