O novel instituto da biopirataria dentro do ordenamento jurídico pátrio

Roger Spode Brutti, Delegado de Polícia Civil no RS, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especializando em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA), Professor de Processo Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS).

Fonte: Roger Spode Brutti

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Roger Spode Brutti ( * )

"Uma coisa essencial à justiça que se deve aos outros é fazê-la prontamente e sem adiamentos; demorá-la é injustiça". (La Bruyère)

INTRODUÇÃO

A biopirataria, além do aspecto de contrabando de diversas formas de vida da flora e da fauna, abarca a apropriação e a monopolização de conhecimentos das populações tradicionais no que diz respeito à utilização dos mais diversos recursos naturais existentes em nosso meio ambiente. Dessa forma, referidas comunidades acabam perdendo o domínio sobre os mais diversos recursos essenciais à sua sobrevivência cuja soberania sempre coube ao coletivo.

Como se tem observado da literatura jurídico-nacional, a biopirataria ainda é tema por demais novel. A problemática que exsurge deste assunto, pois, exige, excitada pela imensa proliferação e facilitação de mecanismos tais como o registro de marcas(1) e de patentes(2) no âmbito internacional, bem como da facilidade que há concernente aos acordos internacionais sobre propriedade intelectual como ocorre, v.g., com o TRIPs(3), uma imediata e célere atuação estatal em torno da imprescindível repressão relativa a quaisquer usurpações à roda desta matéria.

Assim, pois, neste modesto escrito, far-se-á um apanhado geral concernente a breves noções atinentes ao instituto aventado, bem como, ao longo do texto, referências a respeito dos principais pontos jurídicos que norteiam o assunto.

CONCEPÇÕES ATINENTES À BIOPIRATARIA

O vocábulo "biopirataria" foi trazido à baila em 1993 pela ONG RAFI(4) (hoje ETC-Group),(5) a fim de servir como alerta acerca da realidade consubstanciada no fato de que recursos biológicos bem como a ciência indígena encontravam-se em plena subtração e patenteamento pelas mais diversas empresas multinacionais e instituições cientificas imagináveis, ocasião em que aquelas comunidades originárias e naturais as quais, durante séculos, utilizavam-se de referidos recursos e geravam conhecimentos não estavam participando de qualquer lucratividade a respeito.

A biopirataria, pois, dentro de uma concepção geral, diz respeito à apropriação de conhecimento e de recursos genéticos de comunidades de agricultores e de indígenas levada a efeito por indivíduos ou instituições que aspiram ao domínio exclusivo do monopólio acerca destes conhecimentos e recursos.

Conforme a conceituação de biopirataria advinda do Instituto Brasileiro de Direito do Comércio Internacional, da Tecnologia da Informação e Desenvolvimento - CIITED - , temos:

Biopirataria consiste no ato de aceder a ou transferir recurso genético (animal ou vegetal) e/ou conhecimento tradicional associado à biodiversidade, sem a expressa autorização do Estado de onde fora extraído o recurso ou da comunidade tradicional que desenvolveu e manteve determinado conhecimento ao longo dos tempos (prática esta que infringe as disposições vinculantes da Convenção das Organizações das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica). A biopirataria envolve, ainda, a não-repartição justa e eqüitativa - entre Estados, corporações e comunidades tradicionais - dos recursos advindos da exploração comercial ou não dos recursos e conhecimentos transferidos.

Como se vê, o conhecimento específico de que se trata neste escrito é coletivo, não se permitindo que seja concebido como mera mercadoria passível de comercialização como meros objetos outros.

Importante aspecto, outrossim, relativo ao assunto, diz respeito ao fato de que a biodiversidade é um recurso atinente ao coletivo, mas isso não deve ser concebido em um sentido absolutamente lato. Com efeito, há, de um lado, o mundo industrializado e, de outro, um mundo concernente aos menos favorecidos economicamente (o designado Terceiro Mundo), ocasião em que estes últimos dependem, efetiva e diretamente, do acervo de recursos biológicos à sua disposição, para a imediata e indispensável manutenção dos seus mecanismos de vida. Já para os países desenvolvidos, por suas vezes, serve a biodiversidade, mormente e tão-só, como matéria prima, conjuntura que nos faz concluir ser a biodiversidade uma realidade existente em determinadas e específicas regiões, ocasião em que deve ser tratada e utilizada sustentavelmente por específicas e particulares comunidades.

A conceituação, por outro lado, em torno da utilização dos recursos nos sistemas de propriedade privada e comum diferem em largos níveis. Com efeito, o sistema de propriedade social identifica a valoração intrínseca da biodiversidade, ao passo que nos sistemas de direitos de propriedade intelectual a avaliação ocorre por meio da exploração comercial. É preciso conceber, então, que a produção humana é vista como uma co-produção diante da natureza e da sua criatividade. Todavia, os regimes de propriedade intelectual negam a criatividade da natureza, o que denota um verdadeiro disparate.

Dessarte, por meio de uma interpretação nociva, a biodiversidade passa de um bem comum local para uma propriedade privada e fechada. O cercado dos bens comuns é, sem dúvida, o objetivo dos direitos de propriedade intelectual e encontra-se universalizado por meio dos tratados acerca dos Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelecutal relacionados com o Comércio, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e de certas interpretações da Convenção sobre Biodiversidade. Além disso, também é o mecanismo subjacente dos contratos de bioprospecção.(6)

MECANISMOS DE OPOSIÇÃO À BIOPIRATARIA

Já existem, não obstante à problemática levantada nesta pequena dissertação, esforços no sentido de reverter-se o quadro relatado.

Com efeito, em 1992, durante o evento ECO-92, no Rio de Janeiro, foi assinada a Convenção da Diversidade Biológica a qual visa, dentre outros objetivos, a regulamentação do acesso aos recursos biológicos e a devida repartição dos benefícios oriundos da comercialização desses recursos para aquelas comunidades que a isso fazem jus.

Nesse diapasão, no ano de 2001, Pajés de diversas comunidades indígenas do Brasil formularam a carta de São Luis do Maranhão, importante documento para OMPI (Organização Mundial de Propriedade Intelectual da ONU), questionando frontalmente toda forma de patenteamento cuja gênese fosse o acesso a conhecimentos tradicionais. Ainda, no ano de 2002, dez anos após a ECO 92, houve, em Rio Branco - Acre, o workshop "Cultivando Diversidade". O acontecimento foi realizado pela ONG internacional GRAIN (Ação Internacional pelos Recursos Genéticos), em parceria com o GTA-Acre.(7) Dele, participaram mais de 100 representantes de pescadores, agricultores, extrativistas, povos indígenas, artesãos e ONGs(8) de 32 países da África, Ásia e América Latina, ocasião em que foi formulado o "Compromisso de Rio Branco", atentando acerca da ameaça da biopirataria e pleiteando, dentre outros fins, o banimento de qualquer patenteamento de seres vivos e de qualquer forma de propriedade intelectual(9) sobre a biodiversidade e sobre o conhecimento tradicional.

No âmbito nacional, saliente-se, a Constituição Federal, como expressão máxima dos princípios e valores que norteiam a conjuntura jurídica nacional, garante que o meio ambiente é bem de uso comum do povo.(10) Nessa linha, apropriadamente, a Convenção da Biodiversidade(11) ratifica, em seu art. 3º, a soberania da Nação sobre os seus recursos naturais.

Por outro lado, não obstante a Carta Magna exigir, desde 1988, que o Poder Publico fiscalizasse as entidades de pesquisa e manipulação de material genético,(12) bem como que a Convenção da Biodiversidade, em 1992, propusesse, em seu art. 1º, às partes, que controlassem o seu patrimônio natural, com o fim de uma utilização sustentável, o Governo brasileiro só veio a regular a matéria em 2001, por meio de medida provisória.(13) Assim, ratificada pelo Decreto n° 3.945/01,(14) a Medida Provisória criou, no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (Poder Executivo Federal), o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o qual possui caráter deliberativo e normativo, composto por representantes dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, necessariamente presidido pelo representante do Ministério do Meio Ambiente.

A IMPRESCINDIBILIDADE DE RESGUARDO DA CIÊNCIA COLETIVA

Os povos indígenas, tão-somente, vêm reivindicando o justo reconhecimento de seus direitos intelectuais coletivos. Referida conjuntura confronta-se com a supremacia que a sociedade oficial outorga ao conhecimento lógico e científico perante a existência real e efetiva que outras formas de aproximação do conhecimento ostentam. Obviedade a respeito da imprestabilidade de pretensa supremacia é o conjunto de saberes e conhecimentos que por séculos estes povos tem mantido e desenvolvido dentro do contexto das suas próprias comunidades.

Odiernamente, e digno de ser lamentado, é o fato de que testemunhamos um acelerado processo de apropriação tanto da biodiversidade, que é elemento material da riqueza intangível dos povos originários, bem como de seus conhecimentos primitivos. Como exemplo contrário à referida tendência, aliás, serve a Constituição do Equador a qual reconhece e protege o conhecimento ancestral coletivo, assim como o direito de povos indígenas, à propriedade intelectual coletiva dos seus legítimos conhecimentos tradicionais.

O reconhecimento dos direitos intelectuais coletivos e, de maneira particular, dos direitos da "propriedade" intelectual coletiva, na Constituição do Equador, a propósito, estabelece um desafio à legislação brasileira. O desafio ainda se torna maior, quando se estabelece que os direitos podem ser distintos e podem apresentar-se em contradição no que diz respeito aos seus fins e aos seus objetivos.

Ponto importante, além disso, diz respeito ao fato de que a produção intelectual é identificada pelos regimes de propriedade intelectual tanto no Brasil quanto no Equador como sendo um fato eminentemente individual ou individualizado, a não ser quando não se refira às pessoas jurídicas. O âmbito de proteção da propriedade intelectual é, pois, o mesmo que regula os institutos da propriedade industrial, que tradicionalmente segue rito próprio de identificação e de especificação do objeto de proteção, conjuntura que pode tornar-se um entrave à necessária abrangência da proteção aguardada para a biodiversidade, tão reivindicada que é pelas comunidades tradicionais.

Nunca se deve olvidar que o Brasil é considerado um dos países detentores da denominada megadiversidade, ocasião em que abriga formações naturais como o cerrado, o pantanal, a caatinga, os campos e mais de 3,5 milhões de km² de florestas tropicais. Relacionada à sua rica biodiversiade, encontra-se o seu extenso patrimônio sociocultural. Trata-se, pois, de uma das populações mais diversificadas do globo. A boa notícia é que, no Brasil, tanto a bio quanto a sociodiversidade são protegidas constitucionalmente.(15)

A República Federativa do Brasil, por derradeiro, também é signatária da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB),(16) que entrou em vigência no país a partir de sua ratificação pelo Congresso Nacional, no mês de maio do ano de 1994, sendo considerado o principal instituto de direito internacional sustentado por meio de incessante discussão.

CONCLUSÃO

Como se viu, a biopirataria, tema ainda novel no cenário jurídico nacional, encontra ampla gama de pesquisa e conseqüente sucesso de debates, ante não só a sua importância como matéria atinente ao Direito Ambiental, tão crucial que é, mas também em decorrência das inúmeras ramificações hipotéticas e teóricas que do seu vasto âmago advêm.

Todavia, não obstante a incipiência teórica do assunto, cabe ao Estado reprimir sem demora as práticas ilícitas que circundam a biodiversidade, e, nesse diapasão, ao lado dos principais órgãos repressores à biopirataria, tais como o IBAMA e a Polícia Federal, a Polícia Judiciária dos estados também detém importante papel no cenário de repressão criminal, mormente por meio das tipificações consubstanciadas na Lei Federal nº9.605/98.(17)


Notas:

* Roger Spode Brutti, Delegado de Polícia Civil no RS, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especializando em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Franciscana do Brasil (UNIFRA), Professor de Processo Penal da Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul (ACADEPOL/RS). [ Voltar ]

1 - Marca é um conjunto de sinais utilizados para distinguir produtos ou serviços de empresas diferentes. Referidos sinais podem ser palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, formas tridimensionais, sons e até sinais olfativos ou sonoros. [Voltar]

2 - Patente é um título de propriedade temporário outorgado pelo Estado, por força de lei, ao inventor/autor ou pessoas cujos direitos derivem do mesmo, para que esta ou estas excluam terceiros, sem sua prévia autorização, de atos relativos à matéria protegida, tais como fabricação, comercialização, importação, uso, venda, etc. [Voltar]

3 - TRIPS significa Tratado Sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio Internacional. Este acordo da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 1995 possibilita, praticamente, a globalização de patentes. O TRIPS garante a empresas o direito de proteger suas patentes em todos os países membros do OMC -. [Voltar]

4 - Fundação Internacional para o Progresso Rural. [Voltar]

5 - Trata-se de um grupo de pesquisa sobre novas tecnologias e sobre as comunidades rurais. [Voltar]

6 - Bioprospecção é atividade exploratória que visa identificar componente do patrimônio genético e informação sobre conhecimento tradicional associado, com potencial de uso comercial. [Voltar]

7 - Grupo de Trabalho Amazônico. [Voltar]

8 - Sigla de organização não-governamental. [Voltar]

9 - A Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) define como sendo Propriedade Intelectual a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas instrumentistas, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico. [Voltar]

10 - CF, art. 225. [Voltar]

11 - A Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB - foi assinada por 156 países incluindo o Brasil durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ou Rio 92, e ratificada pelo Congresso Nacional em 1994. Além de preconizar a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável de seus componentes, a CDB ressalta a necessidade da repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados dos usos diversos dos recursos genéticos. [Voltar]

12 - CF, art. 225, §1°, inc. II. [Voltar]

13 - Medida Provisória nº 2.186-16, de 23.08.2001. Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição, os arts. 1º, 8º, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e a transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências. [Voltar]

14 - Decreto nº 3.945, de 28.09.2001. Define a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético e estabelece as normas para o seu funcionamento, mediante a regulamentação dos arts. 10, 11, 12, 14, 15, 16, 18 e 19 da Medida Provisória no 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização, e dá outras providências. [Voltar]

15 - O art. 225, § 1º, II, da CF, determina a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do país. O art. 215, § 1º, da CF, por sua vez, protege as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, bem como das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. O art. 216 da CF, por fim, protege o patrimônio cultural brasileiro, composto de bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. [Voltar]

16 - A Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou em 1993, após a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida em 1992, no Rio de Janeiro, a realização de um evento que discutisse a conservação da diversidade biológica e estabelecesse metas para que essa harmonia fosse mantida no mundo. A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) é o resultado disso. Tem ela por objetivo reunir representações oficiais, organizações acadêmicas, organizações não-governamentais, organizações empresariais, lideranças indígenas, movimentos sociais e a imprensa, para desenvolver o diálogo sobre a questão ambiental. [Voltar]

17 - LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. [Voltar]

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