O consentimento do ofendido na teoria geral do delito: Uma abordagem a luz da teoria da imputação objetiva

Thiago Oliveira Moreira, Bel. em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Advogado Criminalista. Ex-Professor do Curso de Direito da UERN. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia no Curso de Direito da UFRN/CERES/Caicó. Pós-graduando em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar. Pesquisador. Texto elaborado em 14 de julho de 2007.

Fonte: Thiago Oliveira Moreira

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Thiago Oliveira Moreira ( * )

Resumo: O presente artigo científico busca abordar basicamente a natureza jurídica do consentimento do ofendido na teoria geral do delito. Analisando aspectos teóricos e legais acerca do tema, visa-se investigar as hipóteses em que o consentimento do ofendido figurará como excludente de tipicidade ou de antijuridicidade, bem como do efeito do citado consentimento a luz da imputação objetiva.

Palavras Chaves: Direito Penal - Teoria Geral do Delito - Consentimento do Ofendido - Tipicidade - Antijuridicidade - Imputação Objetiva.

1. Aspectos Teóricos do Consentimento do Ofendido

Do consentimento deriva a concordância das partes ou uniformidade de opinião. No antigo Direito Penal, aos idos de Ulpiano, utilizava-se o consentimento para fundamentar a não punibilidade do indivíduo que praticasse um delito, mas que estivesse açambarcado pelo consentimento da vítima. Em a vítima consentindo não haveria crime. Esta era a regra na antiguidade para os crimes de natureza privada. Corroborando com este entendimento, leciona BRANDÃO (2007, pg. 127) que:

No Direito Romano vigia o princípio nulla injuria est quae in violentem fiat, através do qual se reconhecia a plena eficácia do consentimento do ofendido para excluir-se o crime, mesmo quando os bens jurídicos protegidos fossem a vida e a integridade física.

Mesmo com toda evolução da ciência jurídica, mais especificamente no que tange ao direito penal, o tema consentimento do ofendido ainda não resta regulamentado de forma adequada em nosso ordenamento jurídico. Ao contrário, alguns países, até mesmo com desenvolvimento jurídico, tanto no plano científico como no legislativo, inferiores ao nosso, já apresentam regulamentação legal para o consentimento do ofendido, v.g a legislação uruguaia, costarriquenha, mexicana e portuguesa.

O consentimento do ofendido ou do interessado, ou seja, a permissão da vítima, é tema de calorosos debates em relação à teoria geral do delito.

Muitos desses debates pautam-se no conflito entre a absoluta liberdade individual de disposição dos bens jurídicos e a mitigação desta pelo Estado com fundamento na ordem pública. Dessa forma, os efeitos do consentimento variam conforme a disponibilidade ou não dos bens jurídicos e do nível de atuação do Estado perante a proteção e a disposição de tais bens.

Diante de tais argumentos, resta-nos, mesmo sem a pretensão de esgotar o tema, tentar investigar o consentimento do ofendido na teoria geral do delito, estabelecer qual a natureza jurídica e avalia-lo aos moldes da teoria da imputação objetiva.

2. Considerações Gerais

CAPEZ (2003, pg. 128) nos ensina que "consentimento é a manifestação de vontade do ofendido no sentido de submeter a risco ou sacrifício um bem jurídico de que é titular".

O consentimento pode ser expresso ou tácito. Como o expresso não necessita de maiores esclarecimentos, passemos a analisar o segundo. Será tácito o consentimento quando o consenciente praticar atos compatíveis e indubitáveis com a vontade de consentir, ou seja, de aceitar a ação do agente.

O consentimento deve ser anterior ou até mesmo concomitante a prática do ato. Atenção para não confundir consentimento com renúncia ou perdão.

Consenciente deve está livre e desimpedido para manifestar de forma inequívoca o seu consentimento. Dessa forma, não há que se falar em validade de consentimento que esteja eivado de vício seja ele dolo, fraude, coação, erro, etc.

Nosso Código Penal, por não conter dispositivo que trate do consentimento do ofendido, não deixa claro qual a idade em que o consentimento do ofendido será válido. Países como Índia e Kwait fixam tal faixa etária aos 18 (dezoito) anos, no entanto, Portugal estabelece a capacidade para consentir penalmente aos 14 (quatorze) anos. A doutrina italiana, avançada nesse ponto, vez que seu Código Penal de 1930 trata expressamente do consentimento do ofendido, se debate para fixar a idade limite para que o consentimento seja admitido. Em suma, prevalecem na Itália duas correntes. A primeira afirma que a idade de validade do consentimento somente será aos 18 (dezoito) anos, vez que a capacidade para consentir penalmente advém da capacidade para celebrar negócio jurídico. A segunda, aplicada na atualidade, preceitua que o magistrado deve valorar caso a caso a idade para consentir penalmente, abolindo a idade limite pré-fixada.

Em nossa doutrina, parece-se que prevalecerá o critério para validade do consentimento do ofendido com parâmetro na imputabilidade penal, ou seja, se aos 18 (dezoito) anos o agente pode ser punido penalmente, o consenciente terá como válida sua manifestação também na mesma idade, vez que não há possibilidade de se estabelecer duas idades para capacidades penais, uma para prática do fato e outra para consentir. Em caso de incapacidade penal para consentir, deve o magistrado declarar a invalidade do consentimento, bem como a inexistência de efeitos jurídicos. Importa destacar o caso do menor de 18 (dezoito) anos, que por óbvio não alcançou a maioridade penal, mas já fora civilmente emancipado. Neste caso, deve o juiz examinar caso a caso a capacidade para consentir e os efeitos desse consentimento.

3. Natureza Jurídica do Consentimento do ofendido

Agora estamos diante de um novo conflito, não mais acerca da relevância da disponibilidade do bem jurídico, mas sim da natureza jurídica do consentimento do ofendido, que, segundo consta, necessita de sucedâneo na teoria do bem jurídico para se alicerçar.

A problemática é antiga, tendo despertado interesse em autores que entraram para história do Direito Penal. É a conclusão que se chega da lição de BRANDÃO (2007, pg. 127):

A partir do século XIX, por influência do jusnaturalismo racionalista, Feuerbach apregoou a limitação da eficácia do consentimento do ofendido para a exclusão do crime aos casos em que o bem jurídico protegido fosse um direito subjetivo inalienável, como, por exemplo, a vida.

Renomados cientistas criminais, nacionais e estrangeiros, reuniram-se para elaboração de um Código Penal Tipo para o continente latino-americano. Dentre eles podemos destacar Nélson Hungria, Heleno Cláudio Fragoso, Paulo José da Costa Júnior, Luis Jimenez de Asúa, Sebastian Soler, dentre outros. Em determinado momento a inevitável polêmica acerca da natureza jurídica do consentimento surgiu arduamente. Alguns afirmaram que o consentimento do ofendido exclui a tipicidade, enquanto que outros entendiam pela exclusão da antijuridicidade. Analisando os momentos históricos que antecederam a elaboração do citado Código, CAPEZ (2003, PG. 13) nos ensina que:

Dado que a discussão foi-se alongando, sem perspectiva de convergência de opiniões, procedeu-se a uma votação quanto à conveniência de se elaborar fórmula geral expressa para o tratamento do assunto, criando-se um dispositivo específico que evitasse futuros debates doutrinários. Pela contagem de dez a um, o consentimento ficou sem tratamento legal expresso e específico.

Vê-se o alto grau de complexidade em relação a estabelecer a natureza jurídica do consentimento do ofendido. Fruto da dificuldade e de inúmeros debates, o que nos resta afirmar é que nosso ordenamento jurídico ainda não trata claramente do consentimento do ofendido, seja em relação à exclusão de tipicidade seja em relação à exclusão de antijuridicidade.

Para esclarecer o tema sob análise, mister se faz buscarmos a anteriormente citada noção de disponibilidade ou indisponibilidade do bem jurídico a ser tutelado pela norma penal.

DAMÁSIO (2000, disponível em www.damasio.com.br), nos traz importante balizamento para solução desta problemática. Vejamos:

Quando a figura típica contém a falta de consentimento da vítima como elemento da definição legal do crime (1a hipótese), o consenso funciona como causa de exclusão de tipicidade. Assim, no delito de violação de domicílio (CP, art 150), o dissenso do sujeito passivo funciona como elementar do tipo. De modo que a presença de seu consentimento torna atípico o fato. Esses casos recebem o nome de 'acordo'.

Nas figuras em que o dissentimento do ofendido não se encontra descrito como elementar (2a hipótese), o consenso funciona como causa supralegal de exclusão de ilicitude, havendo o que a doutrina denomina 'consentimento' em sentido estrito.

Em casos semelhantes, tratando-se de crime material (de conduta e resultado), a doutrina clássica não encontrou meios de excluir a responsabilidade do autor no plano da tipicidade, tendo em vista a presença indisfarçável da conduta dolosa, resultado, nexo de causalidade material e adequação aos tipos penais incriminadores. Daí a solução clássica e majoritária da doutrina de ser considerado o consenso causa supralegal de exclusão de ilicitude, desde que presentes seguintes condições: 1a) permissão do ordenamento jurídico para disposição pessoal do interesse; 2a) capacidade pessoal do consenciente (capacidade natural de compreensão e discernimento); 3a) ausência de vício de vontade, como erro, coação, fraude etc; 4a) consentimento anterior à prática do fato; 5a) conhecimento do consenso por parte do autor.

Os ensinamentos do citado autor são esclarecedores acerca da natureza jurídica do consentimento do ofendido, sendo que esta deriva do consentimento do ofendido como elementar do delito e da disponibilidade do bem jurídico. No primeiro caso haverá exclusão da tipicidade, enquanto que no segundo haverá exclusão da antijuridicidade, sendo esta também a opinião de BRANDÃO (2007, pg. 127) no sentido de que "o consentimento do ofendido por vezes funciona como uma causa de exclusão da tipicidade, por vezes funciona como uma causa supralegal de exclusão de antijuridicidade".

3.1 - Eutanásia

Questão polêmica que envolve o tema em tela é a eutanásia, ou seja, o homicídio piedoso praticado com consentimento da vítima. Alguns ordenamentos jurídicos, v.g Holandês e Belga, preceituam que o consentimento da vítima no caso da eutanásia possui a natureza de excludente de tipicidade. Já em outros o citado consentimento figura-se como excludente de antijuridicidade, havendo efeito no campo da culpabilidade. Há ainda ordenamentos como o nosso em que o consentimento da vítima no caso da eutanásia é considerado causa especial de privilégio, gerando a diminuição da pena imposta ao agente. Para muitos o consentimento do ofendido no delito de homicídio é irrelevante, pois o que gera a causa especial de privilégio é o relevante valor moral que motiva a prática do homicídio.

Resta-nos acreditar na indisponibilidade do bem jurídico vida, protegido constitucionalmente e fundamental para o exercício de todos os outros, bem como no direito de disponibilidade sobre o exercício de uma vida digna, pautada no valor da dignidade da pessoa humana. Será que alguém é obrigado a ser manter vivo mesmo que indignamente? Este é um questionamento daqueles dialéticos, onde a resposta leva a outra pergunta e assim por diante. Sabe-se apenas que para tentar esclarecer o mistério dessa pergunta é mister analisarmos praticamente tudo que já fora construído acerca de ciência jurídica, desde o jusnaturalismo, o juspositivismo, as concepções filosóficas, a influência da religião e das ideologias dominantes até a metafísica quântica da existência humana.

4. Consentimento do Ofendido e a Teoria da Imputação Objetiva

Algumas digressões são necessárias antes de adentramos na interpretação do consentimento do ofendido a luz da Teoria da Imputação Objetiva.

Tal teoria surgiu em meados de 1930 a partir da obra de Richard Honig. Nela, o citado autor pôs em crise a teoria da equivalência dos antecedentes, adotada em nosso Código Penal, afirmando ser ela muito rigorosa em relação ao estabelecimento de nexo causal entre a conduta e o resultado. CAPEZ (2003, 154) nos ensina que "uma teoria que surgiu limitada ao campo do nexo causal nos crimes materiais, procurando unicamente reduzir o alcance da causalidade objetiva entre a conduta e o resultado naturalístico".

JAKOBS apud CAPEZ (2003, 154) nos ensina que:

A conditio sine que non, aplicada do ponto de vista objetivo, acabe por levar ao regressus ad infiniturm. O regresso causal de qualquer crime até Adão, Eva e a serpente do Paraíso (Gênese, Capítulo 3) existe no plano naturalístico, e a cadeia infinita antecedente de responsabilidades só consegue ser evitada pela ausência de nexo normativo (exclusão de dolo e culpa), imprescindível para a infração penal.

Diante de tal ensinamento, vê-se que o poder punitivo estatal limita-se a existência ou não do elemento subjetivo exigido no tipo penal. Nem sempre a análise somente do nexo de causalidade a luz da imputação subjetiva é necessária e suficiente para garantir à correta aplicação da norma penal. Um indivíduo pode agir com dolo em tapear a face do rosto de outro, sendo que este possui problemas cardíacos, desconhecidos pelo agente, e vem a óbito. Seria justo condenar o agente por homicídio? Será que esta fora sua intenção? Será que o meio utilizado era suficiente em condições normais para matar? Talvez não seja necessário responder a todas essas indagações, mas certamente, para grande parte da doutrina, o agente responderia por homicídio, vez que sua ação contribuiu para o resultado morte da vítima. Resta claro que a subsunção de um fato a enquadramento típico não depende somente do dolo ou da culpa.

Pela Teoria da Imputação Objetiva, mister se faz analisar se o agente deu causa objetivamente ao resultado, vez que o resultado pode não ter advindo de sua conduta. Se não foi o agente que deu causa ao evento, não há que se averiguar a existência de dolo ou culpa, pois serão irrelevantes para tipicidade penal.

Para existência do fato típico a luz da imputação objetiva alguns requisitos devem ser observados. O primeiro deles seria o de que a conduta do agente deve criar um risco para ocorrência do resultado, e tal risco deve ser proibido. O segundo estabelece que o resultado naturalístico deve estar dentro do âmbito do risco provocado pela conduta. Tais requisitos são fundamentais para aplicação da imputação objetiva, porém não a moderna doutrina não se contenta com o ora afirmado. Prevalece atualmente o entendimento de que a imputação objetiva, segundo CAPEZ (2003, pg. 177):

...não significa atribuir o resultado naturalístico à conduta, sob o prima objetivo. Vai muito além. Consiste em estabelecer os requisitos para unir o resultado jurídico, ou seja, a conduta. Com isso, pode ser empregada tanto nos crimes materiais quanto nos formais e de mera conduta, pois todas essas formas possuem resultado jurídico.

Em outras palavras, a conduta do agente só poderá ser enquadrada no fato típico, qualquer que seja o delito, se: a) o agente criar uma situação de risco proibido; b) a afetação, isto é, a lesão do bem jurídico tutelado pela norma penal estiver dentro do âmbito de risco provocado pela conduta.

A atribuição da conduta ao tipo, sob o aspecto objetivo (imputação objetiva), exige: subsunção formal + violação a todos os princípios do direito penal.

A luz da imputação objetiva pode-se afirmar que o consentimento do ofendido, em que pese opiniões em sentido contrário, quando houver disponibilidade do bem jurídico a ser tutelado, dada à adequação social e a autonomia de vontade do ofendido, acarretará a exclusão de tipicidade. O risco criado pela conduta do agente deixa de ser proibido e passa a ser permitido em virtude do consentimento do ofendido e da repulsa da sociedade a práticas de tais fatos geradores de risco. Exemplo de tal atipicidade ocorre nos esporte como boxe e até mesmo futebol, onde invariavelmente ocorrem lesões oriundas de riscos e ações permitidas pelos praticantes, desde que no exercício das práticas esportivas. CAPEZ (2003, pg. 197) preceitua que:

De acordo com a imputação objetiva, mesmo que haja risco de lesão de bens indisponíveis e ainda que tal risco seja elevado, recusa-se relevância típica ao evento quando for socialmente adequada a modalidade ou houver permissão ou tolerância do Poder Público e existir consentimento válido dos participantes.

Diante de todos os argumentos expostos, chega-se finalmente a inacabada conclusão de que a luz da imputação objetiva o consentimento da vítima exclui a tipicidade do fato consentido vez que aparado pela adequação social, não havendo que se falar em excludente de antijuridicidade supralegal no corrente caso. Porém, há tendência científica em afirmar que o consentimento do ofendido quando o bem jurídico tutelado for indisponível acarretará a supralegal excludente de ilicitude, nesse caso, o fato será típico, haverá o jus acusationes, mas não haverá condenação. Nossa ciência jurídica, sobretudo no campo penal, ainda tem que caminhar bastante para solucionar problemas como o aqui desenvolvido. Em razão de tal fato, resta-nos tentar contribuir ao menos de forma singela para construção ou desenvolvimento das respostas clamadas pela sociedade.

Referências Bibliográficas:

BRANDÃO, Cláudio. Teoria Jurídica do Crime. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

CAPEZ, Fernando. Consentimento do Ofendido e a Violência Desportiva (Reflexos à luz da teoria da imputação objetiva). São Paulo: Saraiva, 2003.

JESUS, Damásio E. Consentimento do ofendido em face da teoria da imputação objetiva. São Paulo: Complexo Jurídico Damásio de Jesus, abr. 2000. Disponível em: www.damasio.com.br.


Notas:

* Thiago Oliveira Moreira, Bel. em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Advogado Criminalista. Ex-Professor do Curso de Direito da UERN. Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia no Curso de Direito da UFRN/CERES/Caicó. Pós-graduando em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Potiguar. Pesquisador. Texto elaborado em 14 de julho de 2007. [ Voltar ]

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1 Comentários

osvaldo advogado17/08/2007 21:42 Responder

muito bem elaborado o artigo

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