Magistrado esvazia via liminar o clássico Fla x Flu e atesta incapacidade do estado para prestar segurança

Parecer do constitucionalista Leonardo Sarmento.

Fonte: Leonardo Sarmento

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O Fla x Flu que decide o título da Taça Guanabara, marcada para o próximo domingo (05/02), às 16h (de Brasília), no Nilton Santos, contará apenas com a torcida tricolor. Em audiência realizada nesta quinta-feira no Fórum do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o magistrado Guilherme Schilling, do Juizado Especial do Torcedor e dos Grandes Eventos, manteve a liminar que determina torcida única em jogos no estado do Rio de Janeiro.


Uma liminar absolutamente sem fundamento de um magistrado que se apresenta despreparado para efetivar a melhor tutela. Ao manter a decisão de jogo com uma só torcida pune o espetáculo, pune o torcedor que tem direito fundamental ao lazer ignorando os sujeitos ativos dos problemas, os marginais, os desviados infiltrados no espetáculo.


O direito ao lazer está contido no rol dos direitos fundamentais nos arts. 6º, , inciso IV; 217, § 3º, da Constituição da República de 1988. A tutela do direito ao lazer pode ser um instrumento de acesso à dignidade humana, através do desenvolvimento pessoal e social do indivíduo trabalhador. Pensando-se que a prática e a valorização do lazer consente a efetivação dos direitos fundamentais através do desenvolvimento das relações familiares e sociais, da igualdade e da cidadania, e de maneira mais específica, do desenvolvimento da criatividade, da liberdade e da personalidade humanas.


Com essa decisão liminar o magistrado declara a incompetência do Estado em garantir outro direito fundamental do cidadão, o direito à segurança.


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...)


Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.


Art. 144 A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:


I - polícia federal;


II - polícia rodoviária federal;


III - polícia ferroviária federal;


IV - polícias civis;


V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.


(...)


§ 5º às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.


Art. 217 É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:


I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;


(...)


§ 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.


A atividade jurisdicional deve ser voltada ao atendimento dos mandamentos constitucionais visando à sua máxima efetividade. A segurança deve ser encarada pelo judiciário como direito fundamental que é, de modo que deixe de ser um sonho constitucional e passe a ser uma realidade cotidiana. Se o poder executivo não cumpre de forma adequada o seu mister, o judiciário não pode se furtar da sua missão de concretizador supletivo da vontade constitucional.


Cabe ao Judiciário, sobretudo, observar o “princípio da realidade” e “reserva do possível”. No caso concreto punir torcidas e o espetáculo, não os agentes desviados (marginais), é impedir a concretização do direito fundamental ao lazer sem que se promova justa causa suficiente para punição, desviando-se dos reais fatores de produção do problema.


É função do Judiciário apenas intervir com o espeque de promover os mandamentos constitucionais, concretizá-los. Não é o objetivo restringi-los sem a presença de justa-causa de status constitucional com fundamento suficiente. Segurança pública e lazer são direitos fundamentais complementares que funcionam juntos. O papel do Judiciário quando provocado deve oferecer uma resposta jurisdicional que garanta na maior medida possível o gozo dos dois direitos fundamentais constitucionais, não tendo por objetivo restringir o gozo de um fundamentado na incapacidade de prestação do outro por parte do Estado sem a devida demonstração fática da ilustrada incapacidade.


Traduzindo a decisão do senhor magistrado, este veio a declarar a Segurança Pública do Estado como inconstitucional, incapaz de assegurar o cidadão do seu direito fundamental mais basilar e retributivo que é o direito fundamental ao curial lazer. Teria o magistrado poder para chamar à responsabilidade os órgão de Segurança Pública competentes e planejar a segurança de um evento absolutamente tradicional na cidade, a realização de uma simples partida de futebol em um local construído para o referido mister.


A nosso perceber, o magistrado optou por intervir punindo uma das agremiações e indiretamente a ambas e a própria federação. Além de negar a possibilidade de lazer aos torcedores de uma delas ferindo indiretamente o princípio da isonomia, no caso concreto negação dirigida aos torcedores do Clube de Regatas do Flamengo de assistirem ao espetáculo pela presença de uma só torcida, impõe ainda um prejuízo financeiro a todos os participantes que dividirão uma renda infinitamente menor em razão de o clássico restar disputado com torcida única, com setores do estádio absolutamente vazios, interditados. Punem-se assim o Flamengo, o Fluminense, a FERJ e até mesmo o Botafogo, que receberia retribuição por ceder o estádio.


Conforme já firmamos, os direitos fundamentais devem a priori ser complementares, salvo hipóteses episódicas de contrariedades, quando devem ser ponderados, certo estamos que não vislumbramos ser este o caso, pois tratamos de normas-regras e não normas-princípios. No Rio de Janeiro temos o efetivo das polícias competentes para o espetáculo perto de 100% de sua totalidade, diversamente se o jogo ocorresse no Espírito Santo quando boa parcela do efetivo estava em greve (abusiva e portanto inconstitucional). Termos em que deveria o direito fundamental à segurança restar garantido, prestado ao cidadão pelo Estado, sem que se prosperasse qualquer restrição ao gozo do direito fundamental ao lazer sem justa-causa adequada, sem que a cláusula de restrição restasse suficientemente demonstrada.


Imaginemos que a torcida do Flamengo sentindo-se prejudicada resolva se deslocar em massa para o estádio para torcer do lado de fora, já que impedida de adentrar ao estádio. Tal acontecimento geraria uma situação de completa anormalidade e tensão que poderia desenrolar facilmente para o lamento fático da violência ao fim da partida, à depender do grau de insatisfação de uma delas com o resultado. Neste momento, a polícia deverá estar presente para atuar, ou não haverá polícia para esta situação absolutamente previsível? Apostamos que sim, que a polícia estará presente, e portanto se estará presente para evitar possível confronto, porque não estaria presente para garantir a segurança da partida com ambas as torcidas assistindo ao espetáculo? Lembramos que nas situações de anormalidades, quando uma das partes se sente prejudicada, injustiçada, pode acarretar o fomento de revoltas em maior proporção que em situações em de normalidade – com a presença no estádio das duas torcidas. Ousamos afirmar que jogo de torcida única (situação de anormalidade) pode representar maiores fatores de riscos que o espetáculo com a presença das duas torcidas (situação de normalidade).


Qual a inteligência de uma decisão em criar uma situação de anormalidade, gerando episódicas desigualdades, espalhando a fumaça do mau direito capaz de acirrar tensões e rixas, quando a situação de normalidade é sim passível de ser controlada?


Como fato corroborativo, lembremos que a liminar foi excepcionalmente suspensa para partida entre Flamengo e Vasco, quando o espetáculo ocorreu nos termos da normalidade e em paz. Estranhamente a liminar retornou à sua carga sem fundamento suficiente razoável para mudança de estratégia do juízo dada à inexistência de um mau experimento do jogo anteriormente realizado, Quid iuris?


Assim, que o nobre magistrado parece preferir declarar a incapacidade do estado para assegurar a realização de evento desportivo corriqueiro em seu formato tradicional, com a participação espetacular que é das duas torcidas como parte de um mesmo espetáculo. Prefere acirrar tensões homologando desigualdades e sentimentos de injustiça ao limar a possibilidade de lazer de uma delas, gerando prejuízos financeiros aos atores participantes e a sensação de anormalidade e insegurança no estado do Rio de Janeiro. E contra os fatores reais causadores da insegurança, os marginais e baderneiros infiltrados nas torcidas, que medidas preventivas foram tomadas? A culpa deve estar individualizada e não pulverizada entre parcela da coletividade.


As luzes dos holofotes não podem superar o solar melhor direito. O Judiciário tem o papel de promoção da paz social realizando o direito que se demonstra mais justo à luz do caso concreto. Decisões judiciais repercutem nas esferas individuais e por vezes coletivas e devem restar não apenas fundamentadas, mas qualificadas pelo atributos da efetividade, da justiça e da responsabilidade.


Ambos os clubes, Flamengo e Fluminense, prometem recorrer da liminar, e finalizamos lembrando que o clássico apenas não será disputado no Maracanã por incompetência e omissão do estado do Rio de Janeiro, que abandonou o estádio com os os milhões gastos de dinheiro público após os jogos olímpicos à destruição do tempo. Eis o Estado incompetente, desleixado e corrupto que nos abraçou em profunda crise e compartilhamento de indignidades.


Autor: Leonardo Sarmento é Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Processual Civil, Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV. Autor de 3 obras jurídicas e algumas centenas de artigos publicados. Nossa última obra (2015) de mais de 1000 páginas intitulada "Controle de Constitucionalidades e Temáticas Afins", Lumen Juris.

Palavras-chave: CF Liminar Clássico Fla x Flu Incapacidade Estado Segurança

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