Ensaio: Que caminho deve seguir o Direito Penal em uma gestação anencefálica?

Carlos Henrique Pereira de Medeiros, Bacharel em Direito. Graduando em Filosofia. Pós-graduando em Direito Penal. E-mail: medeiros153@itelefonica.com.br.

Fonte: Carlos H. P. Medeiros

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Carlos Henrique Pereira de Medeiros ( * )

A prática do abortamento é algo que transpõe os tempos, acompanha a humanidade desde seus primórdios. Admite-se que o abortamento tenha se registrado na vida dos povos, mas não sempre como objeto de incriminação. Mas houve tempo, inclusive, em que, de regra, não se puniria o aborto se o ato não acarretasse dano ou morte à gestante. Entre os hebreus, por exemplo, somente se considerou como ilícito o aborto tempos após a Lei mosaica que proibiu a gestante de praticar em si mesma a interrupção da gravidez.

Na Grécia antiga praticava-se constantemente a provocação do aborto que, segundo Aristóteles, seria algo que se fazia necessário para garantir o equilíbrio entre a população e os meios de subsistência, desde que o feto não houvesse adquirido alma. E em Roma, tanto as XII Tábuas como as Leis da República não o trataram, pois se considerava o produto da concepção como parte do corpo da gestante, e não como um ser autônomo, de forma tal que poderia ela dele dispor assim como o poderia de seu corpo. Posteriormente, o aborto passou a ser considerado um atentado ao direito do marido sobre a prole.

Mas é com o cristianismo que se consolida a reprovação social ao abortamento. Os antigos imperadores consideravam-no como prática similar ao homicídio. E na Idade média, os teólogos dispunham sobre sua incriminação, quando então se chegou, inclusive, a puni-lo com a pena de morte.

Contemporaneamente generalizou-se entre os povos civilizados a incriminação do abortamento provocado (independentemente de sua fase gestacional), excetuando-se o crime em determinadas hipóteses. Costuma-se chamar estes modelos de sistemas legislativos restritivos. O Brasil adota este modelo.

Não obstante, há que ser observado que o abortamento há muito passou a ser um problema de saúde pública e não simplesmente da "lei penal". Com efeito, a clandestinidade abortiva é grave realidade no Brasil e inclusive entre todos os países da América Latina. E neste contexto, melhor sairão mulheres que disponham dos meios sócio-econômicos para gearem filhos, mas que, no entanto, não os querem. Mas são elas, entretanto, uma apequena parcela da sociedade. Em verdade, em sua grande maioria, as gestantes brasileiras são desprovidas de recursos e sofrem múltiplas carências que as conduzem a uma real e dúplice dificuldade: a imposição social de se manter uma gravidez ameaçadora, de um lado, e as precárias provocações abortivas, arriscadas, que se mostram na maioria das vezes causadoras de perturbações físicas e psíquicas, lesivas ou fatais, de outro. Assim, certamente, haverão de se perguntar: o que fazer? E aqui, exatamente aqui, cabe a questão central: quem pode a elas dar uma resposta senão que elas mesmas?

Atualmente, como se sabe, o Código Penal Brasileiro autoriza o abortamento necessário, ou seja, caso que se sacrifica o produto gestacional não havendo outro meio que não esta para salvar a vida da gestante. Mas, de regra, tem-se o abortamento como criminoso, sendo tal hipótese uma exceção. Destarte ocorre que a exceção legal abrange apenas casos em que a vida da gestante encontra-se em eminente risco e, deste modo, deixa de lado as situações em que em risco esteja situado na saúde da gestante. Há, em efeito, uma lacuna a ser observado. Mas este não é objeto desta argumentação. De qualquer forma, fica clara a existência de um ponto a ser abordado e desenvolvido dogmaticamente.

Não são recentes as abordagens ao problema das gestações marcadas por anomalias fetais graves. Anomalias que efetivamente comprometem seriamente a saúde da gestante. No entanto, não há como negar que essas anomalias, em sua grande maioria, não encontram no ordenamento legal o devido respaldo para a prática abortiva. E isto, em sistemas penais restritivos, como o brasileiro, causa inúmeros problemas de ordem pública, precisamente no campo da saúde pública.

Dentre um sem fim de anomalias gestacionais, destaca-se uma pela elevada gravidade patológica em que se apresenta, sem, contudo, receber o devido tratamento jurídico, pelo que se faz objeto do presente estudo. Trata-se da anencefalia. A anencefalia é uma anomalia gestacional, onde o feto apresenta deformidade gravíssima determinada pela ausência dos hemisférios cerebrais e do córtex, camada de substância cinzenta que reveste toda a superfície dos hemisférios cerebrais. O córtex comanda praticamente todas as funções do organismo. Nesta anomalia não se manifestam funções como: consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. Segundo o Prf. Dr. Diaulas Costa Ribeiro, em 65% dos casos aproximados os fetos sofrem de morte intra-uterina, e os que sobrevivem, morrem logo após o parto(1). E essa causa patológica independe de idade gestacional. Produz a morte do feto durante a gestação, durante o parto ou logo após este, sendo desconhecido pela medicina métodos cirúrgicos ou medicamentosos de reversão desse quadro, seja intra-uterina, seja extra-uterina.

Mas, devido ao sistema penal restritivo, as gestações gravadas por essa letal anomalia não podem ser interrompidas, ou seja, devem (no teor literal da lei) ser levadas a termo, sob pena de responsabilidade criminal, tanto da gestante como do profissional da saúde que nela intervenha para eliminar o produto gestacional "inviável". Há aqui, exatamente aqui, um paradoxo: como se há de falar em manter a vida do feto marcado por deformação letal. E isto se resume em uma contradição: o Direito de fato obrigaria alguém a expor sua saúde, quiçá sua vida, para manter uma gestação desprovida da real perspectiva de vida, seu verdadeiro objeto de proteção. Em outras palavras, o Direito abriria mão de um bem jurídico (vida da gestante) para manter a proteção a outro bem (expectativa de vida extra-uterina do produto gestacional) mesmo com a certeza de que este já se esvaziou? É possível resumir estas reflexões a uma única frase: de que vale arriscar uma vida para manter uma vida sem vida?

E aqui é que reside o enfoque racional do problema: deve o Direito Penal intervir na problemática da interrupção de uma gestação anencefálica? Deve ser punida uma gestante que, ao saber que seu produto esta marcado por tal anomalia congênita, opte pela interrupção? E, a guisa, o profissional da medicina? A resposta não é tão simples como "a favor" ou "contra". Com efeito, cada caso merece uma abordagem específica, apoiada em dados empíricos e norteada pelos fins político-criminais que informam as categorias do Direito Penal. Só assim, e somente assim, é que se poderá obter uma resposta satisfatória desde o ponto de vista sistemático e totalmente em observância à realidade fática. Mas como chegar a isto? Aqui sim uma resposta simples, ou melhor, não uma resposta exatamente, mas a indicação de um caminho, e se pode encontrar este caminho no funcionalismo teleológico-racional de Claus Roxin. Mas este é um assunto para outra abordagem. Aqui, por agora, há que se limitar a uma aproximação reflexiva da questão anencefálica.

Ao tipificar o aborto, buscou o legislador tutelar a vítima de uma conduta que frustrasse o seu surgimento como pessoa ou que impedisse o desenvolvimento regular de seu processo de formação, ou seja, buscou proteger a capacidade do feto em ser pessoa. Dessa premissa podem surgir duas conclusões: a antecipação cirúrgica de parto em produto gestacional anencefálico não poderia ser considera aborto, pois o produto não falece em virtude da interrupção e sim, precisamente, de seu nascimento; ou a inviabilidade extra-uterina absoluta poderia impedir a qualificação do ser anencefálico como objeto de proteção da tutela penal no tipo aborto. Estas soluções são defendidas por boa parte da doutrina. E há, ainda, quem defenda ainda que a "vida" é um bem jurídico constitucionalmente tutelado e, portanto, deve ser preservado incondicionalmente. Ou seja, seria, assim, inconcebível qualquer ato endente a interromper a gestação anencefálica. Cabe questionar: quem tem razão? Múltiplas podem ser as respostas e, inclusive, convincentes de certo modo. Não discorrerei sobre elas. Apenas limitarei a afirmar que se pode discordar de todas.

O objetivo do presente escrito é tão somente conduzir a uma reflexão, pois sem a qual não haverá razão para se tratar de um assunto complexo como o aqui abordado. E, como convite à reflexão (termo mais apropriado ao presente escrito) que é, intentar-se-á agora não o concluir, senão que apenas o delinear como uma chave que abrirá as portas de futuras discussões sobre o tema. Assim, ficam já alguns questionamentos (sem respostas, obviamente): a norma proibitiva é capaz de sensibilizar a sociedade de modo a não aceitar o aborto, e, assim, evitar que gestantes busquem o aborto na clandestinidade? Será justo "jogar" na ilegalidade o aborto em caso de anencefalia, o que poderia seriamente comprometer a saúde e a vida de gestantes? Com quais fundamentos, se vivemos num "Estado Social de Direito"? Permitir a liberação do aborto em caso de anencéfalos seria retroceder na promoção da espécie humana, de modo a se admitir a eugenia? A solução para a questão da saúde pública acerca das internações hospitalares e mortes, provenientes de abortamentos clandestinos frustrados resolveria com a descriminalização do delito de aborto? E nas demais anomalias gestacionais, qual o caminho a seguir?

Estas perguntas possuem, com efeito, as devidas respostas. Mas encontrá-las não é uma tarefa assim tão fácil, muito pelo contrário, isso somente ocorrerá através de estudos e discussões pormenorizados, de cunho exclusivamente racional. De qualquer forma o convite está disposto.



Notas:

* Carlos Henrique Pereira de Medeiros, Bacharel em Direito. Graduando em Filosofia. Pós-graduando em Direito Penal. E-mail: medeiros153@itelefonica.com.br. [ Voltar ]

1 - DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto Por Anomalia Fetal. Brasília: Letras livres, 2004, p 102. [Voltar]

Palavras-chave: anencefálica

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1 Comentários

Denys Santana Acadêmico de Direito24/02/2007 13:03 Responder

Excelente artigo !! Observamos que o nosso ordenamento jurídico, no que diz respeito a prática de aborto, é um tanto quanto lacunoso. Vejamos, é garantia constitucional o direito a vida, bem como, tutelado juridicamente pelo Estado. Como então não agredirmos os dispositivos legais inerentes ao aborto, quando nos deparamos com uma situação dessas (gestão anencefálica)? neste ponto, chegamos ao marco da tutela jurisdicional. O que é certo afirmarmos ser mais importante, desde que não comprometa os limites impostos pelo Estado, a VIDA da gestante ou a do FETO marcado pela deformação letal ?

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