A instituição do júri.

A Constituição Federal de 1988 manteve como uma de suas cláusulas pétreas a instituição do júri, assegurando a plenitude de defesa (para os réus), o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Fonte: José Fernando Marreiros Sarabando

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A Constituição Federal de 1988 manteve como uma de suas cláusulas pétreas a instituição do júri, assegurando a plenitude de defesa (para os réus), o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (tentados ou consumados).

Assim, a ação penal - tratando-se de lesão ou tentativa de lesão ao bem jurídico mais importante, a vida -, sendo regulada pelos artigos 406 e seguintes do Código de Processo Penal, será o direito do Estado-Administração de provocar o Estado-Juiz com vistas à aplicação do direito penal objetivo, no caso, a punição pelo crime intencional de homicídio, infanticídio, participação em suicídio e o aborto, tentados ou consumados (exceto o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, que não possui admite a tentativa).

Os delitos conexos àqueles da competência jurisdicional do conselho de sentença, por ele são também julgados, em conjunto.

Historicamente é comum apontar-se a origem do júri na Inglaterra, sendo vestígios seus encontrados muito antes e em variadas regiões do globo, como na Grécia (os heliastas, tribunais constituídos de cidadãos que se reuniam ao ar livre, ao nascer do sol) e em Roma (os judices jurati, ou tribunais populares). Sua origem vem sendo aceita, no formato aproximado do que é hoje, como na Idade Média, mediante a reunião de doze cidadãos de prestígio, tal qual os doze apóstolos de Cristo, momento em que, acreditava-se profundamente, comparecia o Espírito Santo, fazendo-se a justiça divina por intermédio daqueles homens, os quais preliminarmente sempre invocavam a presença de Deus. O termo deriva, contudo, do inglês mesmo - jury -, com origem etmológica no latim - jurare -, significando juramento, numa alusão ao compromisso de decidir conforme a consciência, livre e limpa.

O estudo da evolução do constitucionalismo, no mundo inteiro, traz interessantes revelações a respeito da instituição do júri, aparecendo na Magna Carta do Rei João-Sem-Terra, em 1215, na Guerra de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776, na Revolução Francesa, em 1789, nas Revoluções Liberais, de 1848, na Constituição Mexicana de 1917, na de Weimar, em 1919, e assim indefinidamente, tendo cada nação adotado peculiaridades próprias.

Poucos países não o adotam, entre os quais a Holanda e a Dinamarca.

No Brasil foi criado em 1822, para julgamento de crimes de imprensa; instituída na Constituição do Império, de 1824, para questões criminais e civis, nesta parte havendo fracassado, ante à complexidade da matéria, que normalmente já à época demandava noções profundas de direito. Em 1832, no Código de Processo Criminal do Império, foi ampliada a instituição, sofrendo diversas modificações em 1850 e 1871, nesta última data quando voltou a tratar de crimes de moeda falsa, roubo, falência etc.. A Constituição de 1891 manteve o júri, e, quanto à de 1934, idem, enquanto a Carta de 1937 nenhuma referência fez à instituição.

A partir da Constituição de 1946, inclusive, o júri é expressamente previsto, até os dias atuais.

Conclui-se por remontar a instituição, no Brasil, ao período da Regência, há mais de cento e setenta e cinco anos, portanto.

FREDERICO MARQUES e CARRARA abominam o júri, ao argumento de que não se compreende a sobrevivência de um tribunal de leigos, em que a escolha nem sequer é feita de maneira democrática, e, sim, através de sorteio ("e onde há o sorteio desaparece a democracia").

O Juiz ROGÉRIO FERNAL diz que "os jurados escamoteiam as provas existentes, fazem ouvidos surdos ao interrogatório e às inquirições procedidas em plenário, ao relatório circunstanciado feito pelo Juiz-Presidente, quase sempre com a leitura de todas as peças de importância do processo, e relevam pontos esclarecedores dos debates, proferindo decisões contrárias ao direito expresso, de cunho sentimental e casuísta (...) desmoralizante (...), já que sofrem pressões e pedidos de toda sorte...".

Os seus defensores, porém, são muitos, associando a idéia do júri à própria essência da democracia, porquanto ali, naqueles momentos, quem julga de fato é o povo, limitando-se o magistrado à presidência da reunião e à dosimetria da pena, na hipótese de a decisão ser condenatória. Ademais, seria a aplicação máxima do princípio basilar do governo do povo, em que "todo poder emana do povo e em seu nome é exercido"...

Reconhece-se que, sobrevivendo às intempéries políticas e sociais do Brasil, ora vendo ampliada, ora reduzida, sua área de competência, remanesce o júri, incólume, como instituição forte e importante, mas certamente clamando por algum aperfeiçoamento, máxime quanto à complexidade dos quesitos que são submetidos aos jurados, os quais muitas vezes votam sem o pleno entendimento da questão que se lhes foi posta a exame.

A garantia constitucional da soberania dos veredictos proferidos pelo tribunal popular não significa, todavia, a irrecorribilidade de suas decisões, como já se pacificou na jurisprudência nacional; aliás, somente é possível a desconstituição de uma decisão do júri em casos especiais - nulidade absoluta e entendimento dos jurados manifestamente contrário à prova dos autos -, o que, entretanto, mesmo assim será objeto de novo julgamento pelo mesmo tribunal do júri, embora já agora composto por nova turma de juízes leigos, não se admitindo, se a questão for decisão manifestamente contrária à prova dos autos, segunda apelação pelo mesmo motivo.

Trata-se de recurso, em casos que tais, de caráter restrito, não se devolvendo à instância superior o conhecimento pleno da causa, eis que exige-se a menção, na petição do apelo ou no termo de recurso, em qual ou em quais das hipóteses do artigo 593, III, do C.P.P., se fundamenta o inconformismo, não podendo o juízo ad quem dar provimento à apelação por um fundamento, se ela é fundada em outro.

As nulidades ocorridas durante o julgamento (irregularidade na formulação dos quesitos, contradições etc.) podem ser impugnadas via apelação, desde, entretanto, que não hajam sido convalidadas pela preclusão, no caso de serem meras nulidades relativas. Nessa qualidade, se não alegadas logo depois de ocorridas, no momento adequado do julgamento, certamente estarão preclusas. Quanto às nulidades absolutas, porém, a falta de alegação oportuna não as convalida.

Cuidando-se de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, importa desde logo registrar que não basta ser contrária, havendo de ser flagrantemente dissonante do panorama probatório, justificando a ênfase exatamente na soberania dos veredictos, princípio que não comporta interpretação restritiva, de modo que, para sujeitar a causa a nova apreciação pelo júri, terá a decisão proferida de ser integralmente dissociada do quadro de provas e indícios, não encontrando o entendimento dos jurados apoio algum nesse quadro. Não se admite, portanto, decisão arbitrária, flagrante injustiça dos jurados, em frontal incompatibilidade com o que se logrou obter da instrução criminal.

Anulada a decisão para que outra seja proferida, não mais se admite apelação pelo mesmo fundamento, ou seja, apenas poderá a nova decisão dos jurados ser desconstituída em face de nulidade absoluta, estando esgotada a possibilidade de cassação por decisão manifestamente contrária à prova dos autos.

A ação penal por crimes da competência do júri divide-se em duas fases distintas, a judicium accusationis (se inicia com o recebimento da denúncia e termina com o trânsito em julgado da sentença de pronúncia) e a judicium causae (começa com o libelo e se encerra com a sentença do Juiz Presidente).

Os crimes dolosos contra a vida em regra são apenados com reclusão, mas mesmo aqueles apenados com detenção - infanticídio, auto-aborto e o aborto consentido pela gestante -, seguem um só rito próprio, não havendo distinção.

Encerrada a instrução criminal, em posse das alegações derradeiras pode o magistrado pronunciar (artigo 408, caput e §§ 1º e 2º, C.P.P.), impronunciar (artigo 409, C.P.P.), desclassificar o crime (artigo 408, § 4º, C.P.P.) ou absolver sumariamente (artigo 411, C.P.P.).

Para a pronúncia bastam a certeza do crime (materialidade) e indícios razoáveis de quem o cometeu ou tentou cometê-lo (autoria), resolvendo-se as eventuais dúvidas, principalmente sobre aspectos subjetivos, em prol da sociedade (vigora, aqui, o princípio do in dubio pro societate). As incertezas, portanto, exceto se forem acerca da própria materialidade, não devem servir para a supressão do juiz natural, que, em casos que tais, é o tribunal do júri da comarca foro do delito (a não que tenha ocorrido o desaforamento, hipótese em que o conselho de sentença é formado por jurados de comarca diversa, em face de fundadas suspeitas de parcialidade do corpo de jurados, de riscos à segurança pessoal do réu, ou de interesse da ordem pública).

Sobre o desaforamento, vale relembrar que é decidido pelo Tribunal de Justiça, não se admitem vagas suspeitas, e, além disso, deve recair sobre comarca próxima, e a eventual exclusão de outras de maior proximidade com a comarca original deve ser motivada; ademais, é inadmissível o reaforamento.

Quanto à absolvição sumária, deve ser dito que não vingou a tese da extinção do recurso ex officio, interposto pelo próprio juiz sentenciante, embasado o antigo entendimento na privatividade do ofertamento da ação penal pelo Ministério Público, porquanto o instituto - recurso oficial - seria uma forma de iniciativa de ação penal. Entendeu-se, e a questão já se vê pacificada, que os denominados "recursos necessários" não são, exatamente, recursos, mas, sim, atos de impulso processual, perpetrados cogentemente pelo juiz, com o fim de alcançar o provimento jurisdicional de mérito definitivo, naquelas hipóteses em que o legislador entendeu tratar-se de matéria relevante, especialmente delicada, dada a presença de interesses socialmente elevados na escala axiológica.

Quanto ao fato de que o homicídio praticado por um prefeito municipal, um juiz de direito, um promotor de justiça, entre outras autoridades, seja da competência não do tribunal do júri, mas do Tribunal de Justiça, bem como o homicídio praticado por militar em serviço, contra militar, seja da competência da Justiça Castrense, Estadual ou Federal, dependendo do caso, é de se ressaltar que tal circunstância não importa em inconstitucionalidade, pois, como já decidiu diversas vezes o Pretório Excelso, intérprete máximo da Carta Federal, a norma que mantém a instituição do júri no país não incide nessas hipóteses, prevalecendo as regras especiais que se extraem da própria Constituição (artigos 29, X, e 125, § 4º, respectivamente).

A competência jurisdicional ex ratione personae e ex ratione materiae encontram-se no mesmo patamar de importância, no texto constitucional, não sendo adequado se falar, então, de violação aos princípios do juiz natural (artigo 5º, inciso LIII, C.F.) e da proibição de juízo ou tribunal de exceção (inciso XXXVII), visto que a interpretação da lei deve ser lógico-sistemática, e, em exegese constitucional, há que se realizar sempre análise globalizada, procurando-se a harmonia entre os diversos preceitos ali contidos.

DA INEXIGIBILIDADE DE OUTRA CONDUTA NO JÚRI


Uma tese nova, e muito atraente, não obstante complexa e de consequências ainda imprevisíveis para a realidade fática, máxime quando se tem consciência de que os jurados são eminentemente leigos, é a da inexigibilidade de conduta diversa, causa supralegal de exclusão de culpabilidade, surgida na Alemanha do início do século e que, acolhida por Aníbal Bruno, Basileu Garcia, Alberto Silva Franco, Damásio de Jesus, José Henrique Pierangelli, Magalhães Noronha, Celso Delmanto e muitos outros, no Brasil seria fruto da adoção, pela Reforma Penal de 84, do denominado "direito penal liberal", o qual encontra sua base no conceito da culpabilidade, constituindo-se, aliás, em princípio geral de Direito Penal, sendo condição imprescindível para imposição de qualquer pena a presença da circunstância da exigibilidade de outra conduta.

Tal dirimente, para os seus adeptos, deve ser indagada dos jurados, pois, se diante do caso concreto não era lícito exigir-se do réu comportamento diferente daquele ocorrido, e ora sob julgamento, não constitui o fato um crime, por consequência lógica.

Segundo Lydio Machado Bandeira de Mello, "a sociedade não tem o direito de exigir deste ou daquele cidadão uma conduta superior às forças ordinárias e à moralidade normal dos homens".

Francisco de Assis Toledo vai ainda mais além, afirmando que "a inexigibilidade de outra conduta é a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui um verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito".

Ocorre que, como visto e percebido, nem todas as hipóteses possíveis de excludentes de culpabilidade estão legalmente previstas, como o erro de proibição inevitável e a inimputabilidade, havendo então, para os adeptos da tese, que se buscar nos princípios gerais do Direito as chamadas "causas gerais e supralegais de exclusão de culpabilidade". A coação moral irresistível (artigo 22, 1ª parte, Código Penal) e a obediência hierárquica (idem, 2ª parte) também são causas legais de inexigibilidade de conduta diversa; idem o estado de necessidade exculpante.

Quanto ao primeiro exemplo, vale recordar que é irresistível a coação quando não pode ser superada senão com uma energia extraordinária, e, por isso mesmo, juridicamente inexigível.

No segundo exemplo, é isento de pena aquele que comete o fato em estrita observância a uma ordem não manifestamente ilegal, havendo tal expressão de ser entendida segundo as circunstâncias concretas da ocasião e as condições de inteligência e cultura do subordinado. É a capacidade real de entendimento do subordinado que deve ser levada em conta, não sendo lícito dele exigir-se extraordinária percepção quanto à ilegalidade velada da ordem.

O estado de necessidade exculpante, por seu turno, refere-se ao sacrifício de um bem que, sendo próprio ou alheio, naquelas especiais circunstâncias (fato humano, fato animal, acidente ou forças da natureza) não era razoável exigir-se o resguardo. Dessarte, na lição de Damásio Evangelista de Jesus, "se há dois bens em perigo de lesão, o Estado permite que seja sacrificado um deles, pois diante do caso concreto a tutela penal não pode salvaguardar a ambos". Embora naturalmente seja uma excludente de antijuridicidade, ou justificativa ou descriminante, transforma-se em excludente de culpabilidade quando trata-se do sacrifício de um bem de maior valor, em nome da salvação de outro de valor menor (assim pensam Heleno Cláudio Fragoso e Francisco de Assis Toledo).

No Código Penal um exemplo claro de inexigibilidade de conduta diversa está por conta do artigo 348, § 2º (escusa absolutória no delito de favorecimento pessoal); quem poderá exigir, em sã consciência, que alguém se negue a ocultar e a proteger um filho, um pai, uma esposa ou um irmão, mesmo que criminosas tais pessoas? Não é exigida legalmente, pois, outra conduta que não a protetora, isentando de pena quem assim age.

Assim, se os requisitos do crime são a tipicidade (adequação do fato concreto à norma penal) e a ilicitude, ou antijuridicidade (contrariedade da conduta em face da ordem jurídica), é de se ver que o último pode ser excluído em determinadas circunstâncias especiais (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito), sendo que os excessos eventualmente cometidos serão puníveis a título de dolo ou culpa. Para ensejar a punição do agente, contudo, não bastam tais pressupostos, sendo imprescindíveis sua imputabilidade (não pode ser menor de dezoito anos de idade, não pode ser louco ou inciente do caráter criminoso de sua conduta, bem como incapaz de determinar-se de acordo com esse discernimento), a potencial consciência da ilicitude, e, diante das circunstâncias fáticas e emocionais, ser-lhe exigido comportamento diverso.

Em todas as hipóteses de excludente de antijuridicidade não é do agente legalmente exigível conduta diferente ("inexigibilidade de outra conduta" do tipo implícita); na defesa própria ou de terceiro, por exemplo, só há legitimidade se o revide for, além de imediato, moderado ("o que se exige é apenas a moderação do revide, o exercício da defesa no limite razoável da necessidade" - Exposição de Motivos do Código Penal). Daí porque a melhor doutrina e a mais abalizada jurisprudência, em matéria de quesitação de excesso culposo ou doloso, afirmam em uníssono que, negado o quesito da necessidade dos meios empregados pelo agente, ainda assim deve ser questionado o fator moderação, além do elemento subjetivo - dolo ou culpa -, sob pena de, suprimindo-se tais quesitos, vir a ser anulado o julgamento.

Isso porque mesmo lançando mão o agente de meios desnecessários, poderá ter no caso concreto deles feito uso moderado, como se lhe era exigido, legalmente, naquele exato momento (ao invés de um pedaço de pau, o agente prefere sacar de sua arma e disparar para o alto, porque piamente acredita que assim logrará, com mais eficiência, conter o avanço do agressor).

Mesmo Heleno Fragoso e Nelson Hungria, que não aceitam a inexigibilidade de outra conduta funcionando como causa geral e supralegal a excluir a culpabilidade, admitem que "as causas de inexigibilidade previstas na lei, no entanto, permitem aplicação analógica"...

Já se decidiu, em crime de homicídio à traição cometido dentro de uma cela do chamado "Inferno da Lagoinha", que as sérias e comprovadas ameaças de um preso contra a vida de outro acabaram por justificar o assassínio daquele por este, que, por não dispor de outro meio de se defender, ou matava seu agressor, ou morria, ou, ainda, ensandecia à espera do ataque que lhe poderia ceifar a vida...

Tecnicamente não se poderia falar, em princípio, em legítima defesa, face à inadequação da "legítima defesa de ataque futuro"; ninguém ousa duvidar, todavia, da humana razoabilidade daquele crime, ou, em outras palavras, de ser aquele agente desmerecedor de punição legal, não sendo justo declará-lo culpado pelo que foi levado a fazer ...

A jurisprudência ainda não vem aceitando facilmente a questão, pois, como há não muito tempo decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, "tão descabida é a tese, que subverte todo o sistema brasileiro, afirmando a legalidade da morte como sanção, pois a tanto corresponde afirmar a "inexigibilidade de conduta diversa", vale dizer, nas circunstâncias, só cabia matar! Isto é, não cabia apelar para o aparelhamento policial ou judicial existentes".

Isso porque o artigo 484, III, do C.P.P., dispõe que se for nos debates alegado qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou ainda o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes.

Recentemente, porém, o Superior Tribunal de Justiça começou a pacificar a questão, afirmando que trata-se de uma defesa alternativa cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada, porque "seria enorme contra-senso admitir-se a aplicação da pena criminal em hipótese de inexigibilidade de outra conduta, isto é, quando o agente, segundo critérios objetivos do julgador, que avalia a situação histórica na qual o sujeito age, fez a única coisa que lhe era humanamente possível", mas com a restrição de que sejam ao júri apresentados quesitos sobre fatos e circunstâncias, não sobre mero conceito jurídico.

Na abalizada opinião de Pierangelli, essa é uma posição inatacável, a qual entrementes não deixaria de ser preocupante, dada à possibilidade de "vir a desencadear uma impunidade generalizada"...

O festejado doutrinador não vê no citado dispositivo do Código de Processo Penal um óbice intransponível, porquanto o que se visa é a apuração da verdade real e a subsequente aplicação do Direito Penal, servindo os procedimentos exclusivamente para tais misteres, não sendo o processo, de forma alguma, um fim em si mesmo.

Aliás, de se notar que o Código de Processo Penal em vigor, de 1941, foi elaborado para servir ao Código Penal de 1940, tendo a Reforma de 84 imposto uma nova ordem evolutiva, a qual reclama, como consectário lógico, um sistema de ritos à altura, para que a novidade seja plenamente exequível.

É que, com efeito, os princípios liberais norteadores da Reforma Penal de 1984, fundado no dogma da culpabilidade - nullum crimen sine culpa -, têm de ser invocados sempre que se pretender a interpretação do Código Penal, não sendo coerente interpor como obstáculo o código de ritos que instrumentalizava a versão anterior do Estatuto Criminal. Seria absurdo do tamanho de afirmar-se que o Código Penal é o meio, e o Processual Penal o fim...

De fato, adotado o princípio da culpabilidade sem restrição, como ocorre desde 1984 no Direito Criminal pátrio, não é possível a censura de alguém pelo injusto praticado se não estão presentes os conceitos informativos da culpabilidade. Interpretação contrária resultaria em contradição entre o direito penal cientificamente considerado e a lei que o materializa.

A exigibilidade razoável de um comportamento cria o juízo de reprovação e dá corpo à culpabilidade, um dos requisitos que o crime deve preencher.

No júri a dimensão da reprovabilidade é única, posto que são pessoas comuns, médicos, professores, engenheiros, comerciários etc., que analisam tudo o que foi narrado pela Acusação e pela Defesa, e, a partir de princípios legais básicos, bem como dos apelos de sua consciência, esta formada pela noção comum de moralidade, ao final lançam o seu veredicto, condenando ou absolvendo o réu.

A conclusão dos jurados, pois, exceto se contrária à razão e à lógica, selará o destino do acusado. Mesmo nas hipóteses do estapafúrdio, uma segunda decisão, após provido o recurso da parte por decisão manifestamente contrária à prova dos autos, será então definitiva.

É a consagração, pela lei, da vontade popular nos delitos dolosos contra a vida.

Daí dizer, segundo o experiente João Mendes Campos, procurador de justiça aposentado que durante dez anos atuou como promotor de júri em Minas Gerais, que o princípio da excludente em questão existe arraigado na consciência do homem, de tal sorte que são comuns as chamadas "absolvições absurdas", as quais nada mais seriam do que o reconhecimento, pelo corpo de jurados, de que o réu simplesmente agiu, no momento dos fatos em julgamento, como lhe era facultado, não lhe sendo exigível, naquele instante, comportar-se de maneira diversa.

O absurdo ficar, então, e como bem constatam aqueles que militam com frequência no júri, por conta das teses abraçadas pelos juízes leigos, legítima defesa, quase sempre; ocorre que essa seria uma forma intuitiva de inocentar o acusado, posto que o juiz, ao orientar os jurados, no momento da votação do quesito da legítima defesa expressamente avisa que a resposta "sim" àquele quesito significa absolver o réu...

O conselho de sentença, então, movido por um desejo íntimo de absolvição do acusado, não enxergando na conduta do mesmo um crime verdadeiro (sob o aspecto moral da idéia), quando da votação do quesito da legítima defesa, onde o juiz alertara para o caminho da absolvição, mediante resposta "sim" ao quesito, aí vê a saída para inocentar o réu, pura e simplesmente. Por isso é que, não raro, encerrado o julgamento alguns jurados se aproximam do promotor de justiça e dizem que acharam equivocada a absolvição por "legítima defesa", já que, na verdade, aquele acusado não "se defendeu legitimamente" (a conclusão é lógica: votaram pela absolvição, na realidade, não pela legítima defesa...).

Essa discussão contém em si uma polêmica deveras antiga: a de que ao júri somente deveria ser indagado sobre ser o réu "culpado" ou "inocente" (do tradicional júri inglês, "guilty" ou "not guilty"). Dessa forma, dizem os adeptos da corrente, poderiam os debatedores se ater mais às questões legais e morais da imputação, reduzindo ou mesmo eliminando o "espetáculo circense" em que os julgamentos pelo tribunal do júri são muitas vezes transformados.

A vantagem realmente atraentre da proposta é que o júri iria reencontrar a sua filosofia basilar, ou seja, serviria para julgar o homem num tribunal composto por semelhantes seus, cujo comprometimento seria limitado unicamente às questões da consciência. Assim, aquela conduta legalmente tipificada como crime contra a vida poderia ser tolerada ou castigada pelo conselho de sentença, haja vista as peculiaridades de cada caso.

E assim já não ocorre atualmente? A resposta é negativa, porquanto o atual sistema legal impõe ao júri um grande número de perguntas, os "quesitos", cuja formulação, além de difícil e complexa para o juiz e para as partes, é comum escapar por completo da capacidade de interpretação dos jurados, estes quase sempre pessoas estranhas ao mundo das letras jurídicas, que, entretanto, às vezes tímidos demais para erguer a voz e pedir orientação, acabam não raro votando temerariamente, escolhendo o "sim" ou o "não" tão-somente para se verem livres daquele dever angustiante...

Bastando ter em mente que as decisões do júri são tomadas por maioria de votos, não importando o resultado qualitativo, mas o quantitativo, tal afirmação já é suficiente para se fazer uma boa idéia de quão desvirtuado vê-se o instituto, que foi erigido sobre a certeza irredutível acerca da importância do bem maior, a vida, que, quando intencionalmente lesado, de modo irremediável ou não, deve ensejar o julgamento do infrator por seus semelhantes, respeitada apenas a consciência dos jurados, que evidentemente trarão para o caso as peculiaridades de cada região, de cada sociedade, com sua variável noção de justo e de injusto.

Sendo a Justiça, aliás, um conceito subjetivo, mutante no tempo e no espaço, parece que será alcançada com mais facilidade se forem retirados do júri os obstáculos do preciosismo legal, libertando os jurados, no dizer de João Mendes Campos, do tecnicismo jurídico ao qual deve ficar agrilhoado apenas o juiz singular.

A soberania do júri, quanto aos seus veredictos, fica então bem melhor preservada, pois, já existindo a regra de que suas decisões somente podem ser cassadas quando "manifestamente contrárias à prova dos autos" (artigo 593, III, "d", Código de Processo Penal), sendo ainda que em casos assim dá-se novo julgamento pelo júri, embora agora composto por outros jurados, eis que o índice de decisões fiéis à convicção do conselho de sentença tende a muito provavelmente aumentar, livres os seus membros da confusão e da complexidade dos quesitos, os quais quase que só atrapalham a aplicação da Justiça.

O paradoxo da mencionada tese da causa supralegal de exclusão de culpabilidade, a inexigibilidade de outra conduta, é que ela demanda formulação de quesitos autônomos, geralmente longos e nada simples, justamente porque pretende ser implantada no sistema atual, que permite ir muito, mas muito além do "culpado" ou "inocente" do júri inglês...

Como já advertido há pouco, não vem a mais recente jurisprudência admitindo quesito único e direto, tal como:

"Ao réu fulano de tal, nas circunstâncias do 1º quesito (materialidade e autoria), poderia ser exigida outra conduta?".

Há que se indagar dos jurados acerca de fatos ou de circunstâncias fáticas, em homenagem à recepção do artigo 484, III, do C.P.P., em série de quesitos que permitam ao juiz-presidente extrair das respostas dadas a opção pelo acatamento ou pela rejeição da tese sustentada pela Defesa.

Eis um exemplo prático:

"1º quesito) O réu fulano de tal, no dia tal, às tantas horas, no interior de cela do Departamento de Investigações, agrediu a vítima beltrano de tal, seu companheiro de cela, com golpes de barra de ferro, produzindo-lhe as lesões descritas no auto de corpo de delito de fls. ?

2º quesito) Tais lesões, por sua natureza e sede, foram a causa da morte da vítima?

3º quesito) É certo que o réu vinha sendo frequentemente ameaçado de violências sexuais, de morte e de agressões físicas diversas pela vítima?

4º quesito) Essas ameaças criaram uma situação anormal e insuportável para o réu?

5º quesito) Em face dessa situação anormal e insuportável, foi o réu compelido, por justo temor de ser violentado, morto ou agredido, sem dispor de outra opção, a agir como agiu?"

Convivendo com a por ora inevitável sistemática atual, então, devem a Acusação e a Defesa fornecer, em plenário, todos os elementos da conduta em julgamento, expondo aos jurados todas as circunstâncias fáticas e emocionais que acorreram para o evento em exame, de modo que possam os juízes leigos decidir se a dita conduta é digna de punição, porque era ao acusado, no momento, no local e sob as condições do fato, humanamente exigível comportar-se de outro modo (não realizar a conduta ou realizá-la de modo mais brando), ou se é tal conduta escusável, porque razoavelmente dentro do que o homem médio faria, sob a limitação de sua condição de humano (essa, aliás, é a chave da questão, havendo todos aqueles que militam no júri jamais se olvidar da importância da falibilidade humana, dentro de um contexto razoável, somada às suas responsabilidades de ser racional).

Daí a beleza e a transcendentalidade do júri: se por um lado incumbe ao Ministério Público, como "tribuno da sociedade", no genial linguajar de Edilson Mougenot Bonfim, jovem promotor do júri do Parquet de São Paulo, pedir a aplicação da Justiça para a conduta que considera criminosa e punível, em nome da defesa do bem mais caro, que é a vida, por outro lado incumbe ao advogado, defensor intransigente da liberdade, perscrutar naquele cidadão acusado, mesmo que desfigurado pela hediondez de seus crimes, a real motivação que o levou às barras daquele tribunal popular.

Não são poucas as vezes em que o réu, previamente desgraçado pela mídia, esta porta-voz de homens e mulheres nem sempre comprometidos com o verdadeiro ideal de Justiça, que têm gana instintiva pela vingança pura e simples, acaba tendo como única saída a vocação libertária de seu defensor, que, se se tratar de um profissional sério e compenetrado, tudo fará para exibir aos jurados a faceta humana daquele já tachado de "monstro", de "cruel" e de "desumano"...

Diante da rara possibilidade da mais completa ausência de qualidades e de atenuantes, porém, cuidando-se de acusado realmente merecedor da sanção legal, tratará o causídico não de mentir, deliberada e irresponsavelmente - pois o advogado também tem responsabilidades cívicas -, mas de em seu nome propugnar por uma decisão que, embora justa em face da violação, seja ao mesmo tempo a estritamente necessária à recuperação do indivíduo, o qual, mais cedo ou mais tarde, terá de ser reintegrado àquela sociedade que o puniu.

A ninguém é dado, nem pelas leis dos homens, nem pela Lei Divina, fazer do júri a ribalta de suas vaidades, sob pena de se assemelhar aos vermes, que do organismo extrai o seu sustento. Ao promotor que assim agir, aproximar-se-á do parasita que se alimenta do corpo vivo - este o réu -, ferindo-o e mesmo podendo matá-lo, sem a menor dose da sagrada compaixão. Ao advogado, por seu turno, assemelhar-se-á ao verme que se nutre do cadáver - este a vítima -, vilipendiando-o e injuriando-o, tudo fazendo para acrescentar aquela vitória, a qualquer custo e a todo o preço, ao seu execrável rol de necrofagia.

Ambos vermes, de valor nenhum!

Buscar o equilíbrio entre o justo e o legal, o indispensável e o correto, será sempre a árdua missão de todos aqueles que, por dever de ofício ou por amor à Justiça e ao Direito, têm de atuar no complexo mister do julgamento de quem atentou, dolosamente, contra a Vida.

Aos promotores, aos juízes, aos advogados e aos jurados, que sejam iluminados, não bastando a sabedoria, contudo, que nada é sem a ponderação do bom senso!



Palavras-chave: júri

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