A (in) constitucionalidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos: uma análise crítica do art. 1641, II, do Código Civil 2002

Renata Pereira Carvalho Costa, Acadêmica do 9° período de Direito da FDV. Data: 15/03/2007

Fonte: Renata Pereira Carvalho Costa

Comentários: (3)




Renata Pereira Carvalho Costa ( * )

Na perspectiva constitucional moderna, não basta que um Estado seja de Direito. É necessário que ele avance para uma estruturação de Estado Democrático de Direito, o que significa que além de estar submetido ao império do direito, tendo uma Constituição como vinculação jurídica do poder, possui ainda uma ordem de domínio legitimada pelo povo, pensada e estruturada na pessoa humana.

A nova ordem institucional brasileira, inaugurada com o advento da Constituição de 1988, trouxe expressamente, em seu art. 1°, o compromisso de que a República Federativa do Brasil constitui um Estado democrático de Direito e que possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

Na verdade, desde a Idade Média, em que São Tomás de Aquino identificou no homem um atributo metafísico que o separava dos demais seres, designando o mesmo de dignidade da pessoa humana, foi difundido pelo mundo que havia certa categoria de direitos considerados mínimos para manutenção de tal atributo.

Mesmo na Idade Moderna, em que a comprovação de determinado fenômeno carecia de demonstração empírica, a ser justificada pela razão, como sustentava Kant, a dignidade da pessoa humana permaneceu como um atributo universal, uma qualidade intrínseca, um valor imensurável a ser respeitado por todos, mormente, pelo Estado.

Pode se afirmar que a dignidade da pessoa humana, sobretudo, a partir do Século XIX, passou a ser fundamento de validade e de legitimidade de uma ordem institucional, um macroprincípio, de modo que um ordenamento jurídico que não garantisse, respeitasse e oferecesse meios para efetivação de uma vida digna para seus cidadãos, era tido por ilegítimo, ainda que presentes os requisitos de validade propugnados pelo positivismo. Essa concepção perdura ata os dias atuais.

Ora, se tal valor, consagrado no texto constitucional, é um vetor que deve orientar o legislador durante todo o processo de criação das normas, eventuais dispositivos legais que estejam em dissonância com tal princípio não deve ser tolerado em nosso sistema jurídico, sob pena de malferir o princípio da supremacia da constituição, segundo o qual as leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão subsistir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional.

Nesse diapasão, sustentar-se-á neste trabalho que o art. 1641, II, do Código Civil 2002 ao estabelecer que "é obrigatório o regime da separação de bens no casamento dos maiores de sessenta anos" atenta contra princípios de índole constitucional como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autonomia da vontade, da supremacia da Constituição, entre outros, restando clara a inconstitucionalidade da norma em apreço.

Como é cediço, o Direito Civil, do qual faz parte o Direito de Família, encontra-se, dentro da divisão binária clássica do Direito, inserido no contexto do Direito Privado, o que significa que não obstante possuir algumas normas cogentes é informado, sobretudo, pelo princípio da autonomia da vontade, em que dado à presunção de que as partes encontram-se em posições isonômicas em suas relações jurídicas, lhes é permitido determinar-se pela livre manifestação da vontade, isto é, podem realizar todo e qualquer negócio jurídico, tendo apenas por limitação de conteúdo a vedação legal e a preservação dos bons costumes.

É certo que a interferência do Estado no Direito de Família através da inserção de normas cogentes é perfeitamente justificada por seu objeto, haja vista a importância da instituição familiar no contexto social. Contudo, tal ingerência deve ocorrer somente em caráter excepcional, ou seja, sempre que o interesse público primário ou a indisponibilidade do direito reclamar, sob pena de afigurar-se inconstitucional.

Foi infeliz, portanto, o legislador civilista de 2002 ao inserir entre as situações que dariam ensejo à incidência do regime da separação obrigatória de bens, ter, algum dos nubentes, idade superior a sessenta anos, lhes imputando a incomunicabilidade dos seus bens, quer tenham sido adquiridos antes ou na constância do casamento, isto é, a superveniência do vínculo conjugal não afeta o patrimônio do casal.

Veja que inexiste critério, capaz de passar pelo crivo da lógica do razoável, que justifique a imposição de tal regime tomando por base simplesmente a idade (sessenta anos), de modo que sendo a relação jurídica puramente privada e estando o indivíduo em pleno gozo de suas faculdades mentais, não poderá o Estado lhe impor restrições a direitos fundamentais se o exercício da autonomia da vontade, neste caso, irá irradiar seus reflexos apenas na esfera patrimonial dos nubentes. Por este e pelos demais motivos retrocitados, a intervenção do Estado no domínio privado a fim de impor o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos resta ilegítima, e, portanto, inconstitucional.


Notas:

* Renata Pereira Carvalho Costa, Acadêmica do 9° período de Direito da FDV. Data: 15/03/2007 [ Voltar ]

Palavras-chave: regime

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3 Comentários

Felipe Leite Barros Advogado29/03/2007 11:44 Responder

O mais absurdo desta restrição a livre escolha no regime de bens é que a separação total é obrigatória até quando AMBOS os nubentes são maiores de 60 anos. Ora, se a justificativa para este artigo é proteger o idoso, evitando o "golpe do baú", como aceitá-la na situação supra narrada? Como bem observou a autora deste artigo, o Código Civil não prevê que o idoso torna-se incapaz para gerir seu patrimônio, apenas em função de ter atingido 60 anos, razão pela qual pode dispor de seus bens da forma que melhor entender, inclusive no casamento.

Marcela Gasparini de Miranda Assessora Jurídica13/04/2007 16:11 Responder

Gostaria de parabenizar a autora pela clareza e brilhantismo do artigo. Concordo com a autora que o artigo 1641, II do CC/02 é inconstitucional por afrontar vários principios basilares da Carta Magna. O legislador almejou proteger o maior de 60 anos, mas retirou a autonomia da vontade, inerente a pessoa humana.

Marcela Gasparini de Miranda Assessora Jurídica13/04/2007 16:17 Responder

Gostaria de parabenizar a autora pela clareza e brilhantismo do artigo. Concordo com a autora que o artigo 1641, II do CC/02 é inconstitucional por afrontar vários principios basilares da Carta Magna. O legislador almejou proteger o maior de 60 anos, mas retirou a autonomia da vontade, inerente a pessoa humana.

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