A Constituição pede socorro

Emmanuelle Garrido é advogada formada pela PUC-Campinas, foi Diretora do Departamento Consultivo da Prefeitura de Osasco e Assessora da Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de Campinas e atualmente, assim como desde o seu nascimento, é cega. E-mail: manu78@uol.com.br

Fonte: Emmanuelle Garrido

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Emmanuelle Garrido ( * )

Há exatos 20 dias da comemoração da "maioridade" da Constituição federal, foi produzida, pela 23a. Vara Cível de São Paulo, uma norma que, utilizando-se de interpretação isolada de traços da personalidade da nossa aniversariante, autorizou as instituições de ensino particulares a não receberem em suas classes alunos deficientes.

No pleno dispontar da juventude, no alcance de sua "maioridade" a Constituição serviu de base para tal autorização que prefiro, aqui não adjetivar.

De agora em diante, toda e qualquer instituição privada de ensino poderá, sumariamente, recusar receber em seus quadros alunos que apresentem qualquer desvio da "normalidade", isto porque "Qualquer norma infraconstitucional - editada pelo legislador ou pelos órgãos deliberativos dos sistemas de ensino da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios - , que imponha à iniciativa privada o dever de acolher de maneira incondicional pessoas portadoras de deficiência em classe de rede regular de ensino é manifestamente inconstitucional, dada a clareza do artigo 208, inciso III, da Constituição Federal."*

Segue, o mm. juiz, explicitando e detalhando sua conclusão: "o atendimento aos educandos com as necessidades especiais, dentro dos sistemas de ensino, é dever do Estado, não da iniciativa privada, a ser prestado preferencialmente na rede regular de ensino. De todo modo, não é mais destacar também que o parágrafo 2o do artigo 58 da Lei 9.394/96 prescreve que o atendimento educacional será feito em classes, classes escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições especificas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. Ou seja, a integração nas classes comuns de ensino regular não prescinde de uma definição da exata condição dos educandos com necessidades especiais, o que reforça as conclusões precedentes." * (grifos nossos)

Diante desta norma de efeitos concretos, cabe-nos tão somente "enfileirar os deficientes e, dentre eles, escolher quem é o mais aceitável, o mais "normalzinho" o mais adaptado, o que choca menos nossos olhos, o que nos causa menos asco para que, então, possamos tolerar alguns deles em nossas escolas particulares, os outros - se é que devamos considerar sua existência - deixemo-los nos depósitos públicos, longe de nossas vistas, longe de nosso convívio, afinal já pagamos impostos exatamente para que a existência desses, portadores de necessidades especiais não nos encomode.

Ao aceitarmos, espontaneamente alguns em nossos espaços de convívio - claro os mais bonitinhos, com deficiências mínimas - poderemos demonstrar que estamos numa sociedade pluralista e inclusiva, porque não obstante não estarmos obrigados a aceitá-los em nossas escolas, nós, prontamente, abrimo-lhes oportunidades magníficas."

Ressalvado o exagero próprio das construções literárias que provavelmente tenha incidido no parágrafo anterior, não vejo outra forma de interpretação da norma de efeito concreto emanada da sala do MM. Juiz da 23ª. Vara Cível de São Paulo.

E então, há apenas 20 dias de seu aniversário, nossa jovem que deveria estar se preparando para ovestibular, escolhendo sua carreira, sonhando.. idealizando um mundo melhor, mais justo, mais igual, mais plúrimo, é, repentina e brutalmente arrancada de seus devaneios.

Dizem-na que seus ideais jamais se concretizarão, que seus sonhos estão em desconformidade com o mundo que a cerca, que todos devem e querem ser iguais e, principalmente, que ela deve dexistir de ingressar na faculdade X porque seu padrão de beleza, inteligência, independência, relacionamento interpessoal, não está dentro dos mínimos aceitáveis.

A jovem ainda atônita, reflete um minuto para contra-argumentar que havia obtida notas máximas nos exames admissionais, sendo aprovada por unanimidade. Além disso, em 1993 quando ficou em recuperação, novamente obteve grande êxito na avaliação final e, até hoje quando alguém lhe aponta alguma fália, aceita as Emendas e as corrige, por um número incansável de vezes, estando aberta a quaisquer outras avaliações que seus professores julguem necessárias.

Insiste, ainda, seu interlocutor que ela não é aceitável para os padrões normais, exatamente porque sofreu emendas durante as avaliações e por ter ficado de recuperação somente cinco anos depois de seu nascimento. A decisão já está peremptoriamente tomada. Ninguém é obrigada a aceitá-la abaixo dos padrões mínimos de clareza, sistematização, coincidência com a realidade´, previsibilidade integral, entre outros.

E a jovem, agora sem sucesso, pois que fecharam-he a porta, continua gritando:

Eu quero "instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos;"! Quero assegurar, ainda, "a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade"!

Quero que a educação seja encaraa como "direito de todos e dever do Estado e da família" e que seja "promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."!

Quero, por fim que sejam efetivamente observados, para a ministraçaõ do ensino, os seguintes princípios: "igualdade de condições para o acesso e permanência na escola pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino e liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;"!

Ah, e já desanimada, a jovem lembra-se que nenhum desses seus ideais foi emendado apesar de todas as 52avaliações pela qual passara.

E em pensar que dali a somente 20 dias completaria dezoito anos e poderia fazer tanto!....

* Sentença extraída do Processo Nº 583.00.2005.055918-2 - 23ª Vara Cível de São Paulo/SP

Notas:

* Emmanuelle Garrido é advogada formada pela PUC-Campinas, foi Diretora do Departamento Consultivo da Prefeitura de Osasco e Assessora da Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura de Campinas e atualmente, assim como desde o seu nascimento, é cega. E-mail: manu78@uol.com.br [ Voltar ]

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3 Comentários

Luiz Otávio Rosário advogado03/11/2006 21:37 Responder

Dra. Emanuelle, meu apoio irrestrito a seu texto. Como advogado previdenciarista, encontro com juizes que afrontam os ideais constitucionais. O engraçado que tais cidadãos, que são iguais a nós, bacharéis em Direito, estudaram Direito Constitucional. Acho que estavam comendo merenda nessas aulas...

JOSE RICARDO GUIMARAES bancario/economiário05/11/2006 1:28 Responder

Dra Emmanuelle, infelizmente ainda existem juízes preconceituosos e que buscam julgar baseados nestes preconceitos. Contra estes poderi]íamos opor várias partes da nossa constituição como por exemplo, no art 3º o inciso I - construir uma sociedade livre, justa e solidária (onde se encontra nesta sentença a solidariedade e a justiça?), no inciso III - (...) reduzir as desigualdades(...), no inciso IV - promover o bem de todos sem preconceitos(...) e quaisquer outras formas de discriminação. No art 5º encontramos que todos são iguais perante a lei(...)garantindo-se(...)a inviolabilidade do direito à vida(>>>) á igualdade(...). No art 205 - lemos : a educação é direito de todos(...) será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania. Portanto, a discriminação é crime e esta decisão deveria ser reformada por inconstitucional e imoral.

TORQUATO servidor publico07/11/2006 15:04 Responder

A verdade é que o povo brasileiro ainda não tem uma idéia do que seja o Poder de uma Constituição Federal e não sabe como cobrar seus direitos de cidadania. A juventude não estuda nas escolas a Constituição Federal somente quando tem concurso para cargos públicos e isto somente com macetes para aprender, passar no concurso e pronto! Não há realmente um trabalho de conscientização nas escolas, busca-se agora a idéia do Jovem Eleitor, mas não se busca o Jovem Cidadão com pleno conhecimento da Constituição. Não se pode pensar em dezoito de inatividade sem pensar na atividade da cidadania durante este tempo. Agora é que todos trazem a idéia de que Eleitor é patrão mas até onde vai isto? Deve-se lembrar que se alguns legisladores não agem de acordo com suas promessas e discursos então eles não se vinculam ao povo mas ao partido e alguns até a empresas privadas. Se fizerem algo errado é culpa de quem votou? Não. É culpa de quem não assumiu a responsabilidade de ser cidadão do Povo, eleito pelo Povo. E isto é o que nem sempre se reflete. A CF/88 pode ser melhor se realmente fosse aplicado o rigor e a fiscalização na aplicação constitucional mas alguns pendentes necessitam de leis por isto temos as divisões das normas constitucionais. Mas o que se leva em conta é que o texto abriu espaço a uma busca pela nossa Constituição Federal como Constituição Cidadã que deve ser. Temos mais 500 anos para amadurecer a idéia, quem sabe aconteça antes com a força da juventude esclarecida e cidadã além dos textos acadêmicos que se despontam nas cadeiras constitucionais e alguns se tornando doutrina de novos livros para novas idéias! O exercício do voto é um instrumento de cidadania! A educação também é um caminho para a consciência cidadã por meio do esclarecimento nas escolas sobre o papel e a importância da CF/88 neste III Milênio da Era Brasileira!

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