O MENOR SOB GUARDA E A PREVIDÊNCIA DO SERVIDOR

Uma das questões de grande polêmica no âmbito dos Regimes Próprios de Previdência Social consiste na possibilidade ou não de concessão do benefício de pensão por morte aos menores que se encontravam sob a guarda do servidor no momento de seu óbito

Fonte: Bruno Sá Freire Martins

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Uma das questões de grande polêmica no âmbito dos Regimes Próprios de Previdência Social consiste na possibilidade ou não de concessão do benefício de pensão por morte aos menores que se encontravam sob a guarda do servidor no momento de seu óbito.


Historicamente os menores sob guarda sempre foram considerados equiparados a filho para efeitos de concessão do benefício, estando, inclusive, essa previsão contida na legislação específica de cada Ente Federado.


A guarda consiste em instituto jurídico segundo o qual o menor que não recebe proteção suficiente de seus Pais para garantir sua educação e sustento financeiro, são acolhidos por terceiros, parentes ou não, que assumem o encargo de protegê-los sem que os Pais biológicos percam sua autoridade sobre os filhos.


E nessa condição é que a legislação do Regime Próprio, com o intuito de proteger a todos aqueles que dependiam economicamente do servidor falecido, garantiu a equiparação deles aos filhos.


Situação que perdurou até o advento da Lei n.º 9.717/98 que, em seu artigo 5º, vedou aos Regimes Próprios a concessão de benefícios distintos daqueles pagos pelo INSS a seus segurados.


O teor do dispositivo ensejou o equivocado entendimento administrativo de que, além de benefícios, os Regimes Próprios não poderiam definir requisitos, para a sua concessão, diversos das previsões contidas no Regime Geral.


Nunca é demais lembrar que os benefícios são as prestações destinadas à cobertura das necessidades decorrentes da contingência eleita pela Lei como passível de cobertura pelo sistema previdenciário.


Enquanto que os requisitos para a concessão de um benefício consistem nas exigências estabelecidas em Lei que devem ser observadas pelos segurados e/ou seus dependentes para que possam usufruir dos mesmos.


Ainda, assim, o Ministério da Previdência, no exercício de seu papel orientativo, no artigo 51 da Orientação Normativa n.º 02/09 estabeleceu que:


Art. 51. Salvo disposição em contrário da Constituição Federal, da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, e da Emenda Constitucional nº 47, de 06 de julho de 2005, o regime próprio não poderá conceder benefício distinto dos previstos pelo RGPS, ficando restrito aos seguintes:


 ...


§ 2º Os regimes próprios deverão observar também a limitação de concessão de benefício apenas aos dependentes constantes do rol definido para o RGPS, que compreende o cônjuge,o companheiro, a companheira, os filhos, os pais e os irmãos, devendo estabelecer, em norma local, as condições necessárias para enquadramento e qualificação dos dependentes.


Em sede de Corte de Contas o TCU, também se posiciona no sentido de que a Lei federal teria revogado a legislação dos Regimes Próprios:


...


20. Expressamente aprovada pelo Congresso Nacional, já é plena a identificação dos regimes quanto às categorias de beneficiários, razão pela qual a pensão civil a pessoa designada deixou de ser devida desde o advento do art. 5º da Lei nº 9.717/1998, que derrogou, do regime próprio de previdência social dos servidores públicos da União, as categorias de pensão civil estatutária, destinadas a pessoa designada, maior de 60 anos ou portadora de deficiência, a filho emancipado e não inválido, a irmão emancipado e não inválido, a menor sob guarda e à pessoa designada, até 21 anos, previstas no art. 217, inciso I, alínea “e”, e inciso II, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do art. 217 da Lei nº 8.112/1990, respectivamente.

... 


Sendo acompanhado por parte da doutrina previdenciária, senão vejamos:


A Lei n.º 9.717/98 dispõe em seu art. 5º que os regimes próprios de previdência não poderão conceder benefícios distintos dos previstos no RGPS, disciplinado na Lei n.º 8.213/91.


Tratando-se de norma geral, colocou-se desde então, para os entes federativos a necessidade de adaptar a legislação pertinente, especialmente no tocante ao rol de beneficiários das pensões.


Em decorrência, as normas previdenciárias locais que continham relação de beneficiários em desconformidade com a legislação federal perderam seu fundamento de validade, tais como as que concediam pensão aos filhos maiores de 21 anos universitários, às filhas solteiras, aos netos e contribuintes facultativos. 


Preliminarmente merece destaque o fato de que tanto o dispositivo legal quanto o ato administrativo normativo, encontram-se revestidos de inconstitucionalidade, a medida que a Carta Magna definiu que a competência para legislar sobre previdência é concorrente entre a União e os Estados.


A Constituição Federal prevê, além de competências privativas, um condomínio legislativo, de que resultarão normas gerais a serem editadas pela União e normas específicas, a serem editadas pelos Estados-membros. 


Assim, cabe a ela a edição de Leis de caráter geral e aos demais a confecção de diplomas legais que complementem a norma federal e que disponham sobre assuntos de interesse local, pertinentes à sua autonomia administrativa.


E não se pode perder de vista o fato de que os benefícios previdenciários, bem como os requisitos para a sua concessão, constituem-se em assuntos englobados pelo poder de auto-gestão dos Entes Federados.


Não se admitindo, por conseguinte, que texto normativo infraconstitucional o limite.


Além disso, a simples leitura do teor da Lei federal permite a conclusão de que em momento algum modificou-se ou mesmo limitou-se o rol de dependentes ou qualquer outro critério alusivo aos benefícios previdenciários.


Ainda assim, a interpretação foi no sentido de que teria ocorrido a revogação tácita das legislações locais, ante a seu caráter de norma geral.


A revogação tácita consiste na retirada de vigência do texto da Lei, pela edição de um novo diploma legal que regula completamente a matéria e é incompatível com o que até então se encontrava vigente.


Esse entendimento, aliado ao pensamento equivocado quanto ao alcance da vedação de criação de benefícios distintos prevista na Lei n.º 9.717/98, faz com que diversos pedidos de concessão de pensão por morte ao menor sob guarda sejam negados administrativamente, mesmo havendo previsão legal expressa nas normas estaduais e municipais quanto à sua equiparação ao filho.


Mas recentemente o Supremo Tribunal Federal manifestou-se no sentido de reconhecer a inexistência de revogação tácita da legislação previdenciária própria, afirmando que:


EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. MENOR SOB GUARDA DE SERVIDOR PÚBLICO. FALECIMENTO: PENSÃO TEMPORÁRIA. ART. 217, INC. II, AL. B, DA LEI N. 8.112/1990. NEGATIVA DE REGISTRO. LEI N. 9.717/1998, ART. 5º. PRETENSO EFEITO DERROGATÓRIO NOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL: INOCORRÊNCIA. MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. 


Assim, os indeferimentos administrativos tendem a cair por terra, prevalecendo o texto legal do Regime Próprio, onde estiver contido que o menor sob guarda é equiparado a filho e nessa condição faz jus à concessão da pensão pela morte do servidor.


Entretanto essa decisão levará a nova onda de revogações, exemplo disso, é que a própria União retirou, por intermédio da Lei n.º 13.135/15, da Lei n.º 8.112/90 a condição de dependente do menor sob guarda.


E diga-se nova onda, pelo fato de que vários Regimes Próprios, diante do entendimento errôneo antes mencionado, optaram por excluir os menores sob guarda do rol de beneficiários, promovendo a revogação expressa das Leis estaduais e municipais que assim o previam.


Nesses casos a situação ficou pior ainda, em razão da grande controvérsia jurisprudencial gerada.


Já que os primeiros entendimentos que surgiram após as modificações legislativas foram no sentido de que apesar da ausência de previsão de normativa no Regime Próprio, a concessão do benefício encontrava autorizo no disposto no artigo 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente.


Algum tempo depois, esse entendimento foi modificado, sob o argumento de que o princípio da especialidade da legislação previdenciária reguladora dos Regimes Próprios afastava a possibilidade de concessão da pensão por morte ao menor sob guarda.


Até que mais recentemente o Superior Tribunal de Justiça entendeu que:


PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA.PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA JUDICIAL. APLICABILIDADE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - ECA. INTERPRETAÇÃO COMPATÍVEL COM A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E COM O PRINCÍPIO DE PROTEÇÃO INTEGRAL DO MENOR.


1. Caso em que se discute a possibilidade de assegurar benefício de pensão por morte a menor sob guarda judicial, em face da prevalência do disposto no artigo 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, sobre norma previdenciária de natureza específica.


2. Os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm seu campo de incidência amparado pelo status de prioridade absoluta, requerendo, assim, uma hermenêutica própria comprometida com as regras protetivas estabelecidas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.


3. A Lei 8.069/90 representa política pública de proteção à criança e ao adolescente, verdadeiro cumprimento da ordem constitucional, haja vista o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 dispor que é dever do Estado assegurar com absoluta prioridade à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá- los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.


4. Não é dado ao intérprete atribuir à norma jurídica conteúdo que atente contra a dignidade da pessoa humana e, consequentemente, contra o princípio de proteção integral e preferencial a crianças e adolescentes, já que esses postulados são a base do Estado Democrático de Direito e devem orientar a interpretação de todo o ordenamento jurídico.


5. Embora a lei complementar estadual previdenciária do Estado de Mato Grosso seja lei específica da previdência social, não menos certo é que a criança e adolescente tem norma específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente que confere ao menor sob guarda a condição de dependente para todos os efeitos, inclusive previdenciários (art. 33, § 3º, Lei n.º 8.069/90), norma que representa a política de proteção ao menor, embasada na Constituição Federal que estabelece o dever do poder público e da sociedade na proteção da criança e do adolescente (art. 227, caput, e § 3º, inciso II).


6. Havendo plano de proteção alocado em arcabouço sistêmico constitucional e, comprovada a guarda, deve ser garantido o benefício para quem dependa economicamente do instituidor.


7. Recurso ordinário provido. 


Novamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente surge como fundamento de validade para a concessão de pensão por morte ao menor sob guarda.


Contudo, dessa vez, como instrumento de regulamentação de um direito constitucionalmente estabelecido que consiste na obrigação de a família, o Estado e a Sociedade promoverem a proteção especial da criança, do adolescente e do jovem, no qual se inclui a garantia de direitos previdenciários.


Portanto, o Superior Tribunal de Justiça, passou a entender que a pensão por morte ao menor sob guarda se constitui em direito constitucionalmente estabelecido e regulado pela legislação federal ordinária.


Dessa forma, seja o argumento de revogação tácita, seja a ausência de previsão legal não tem força jurídica suficiente para afastar a previsão contida na Carta Magna, ensejando a conclusão de que os menores sob guarda fazem jus ao benefício independentemente do teor da Lei federal e da legislação local.



Bruno Sá Freire Martins

Bruno Sá Freire Martins

Servidor Público efetivo do Estado de Mato Grosso; advogado; pós-graduado em Direito Público e em Direito Previdenciário; professor da LacConcursos e de pós-graduação na Universidade Federal de Mato Grosso, no ICAP – Instituto de Capacitação e Pós-graduação (Mato Grosso), no Instituto Infoc - Instituto Nacional de Formação Continuada (São Paulo), no Complexo Educacional Damásio de Jesus - curso de Regime Próprio de Previdência Social (São Paulo); fundador do site Previdência do Servidor (www.previdenciadoservidor.com.br); Presidente da Comissão de Regime Próprio de Previdência Social do Instituto dos Advogados Previdenciários – Conselho Federal (IAPE); membro do Cômite Técnico da Revista SÍNTESE Administração de Pessoal e Previdência do Agente Público, publicação do Grupo IOB; escreve todas as terças-feiras para a Coluna Previdência do Servidor no Jornal Jurid Digital (ISSN 1980-4288) endereço www.jornaljurid.com.br/colunas/previdencia-do-servidor, autor dos livros DIREITO CONSTITUCIONAL PREVIDENCIÁRIO DO SERVIDOR PÚBLICO, A PENSÃO POR MORTE e REGIME PRÓPRIO – IMPACTOS DA MP n.º 664/14 ASPECTOS TEÓRICOS E PRÁTICOS, todos da editora LTr e do livro MANUAL PRÁTICO DAS APOSENTADORIAS DO SERVIDOR PÚBLICO da editora Rede Previdência/Clube dos Autores e de diversos artigos nas áreas de Direito Previdenciário e Direito Administrativo.


Palavras-chave: Menor Guarda Previdência Social Concessão de Benefício

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