Justiça: conceito em construção ou Justiça contemporânea
O conceito de justiça não foi pacífico, mas a contemporaneidade acendeu ainda mais a pira epistemológica em face das incertezas constantes.
A justiça diante de tantas incertezas da sociedade contemporânea, onde vige um tempo de aceleradas mudanças, quando a emergência dos poderes não institucionais produz um discurso e uma prática de deslegitimação progressiva de qualquer forma de autoridade.
A Justiça e as instituições são, paradoxalmente, reposicionadas no centro, como sendo último refúgio de valores individuais, como derradeiro resgate de cidadania ou dignidade humana[1].
Precisamos reconhecer que o papel do juiz contemporâneo é complexo e multifacetado dotado simultaneamente de técnica e filosofia. Não basta a literalidade da lei, nem a extrema sensibilidade do intérprete.
O modelo axiológico do Iluminismo[2] que guiou as criações institucionais e simbólicas da modernidade fez, enfim, sedimentar valores e referências comuns que se pensaram intemporais e, que hoje parece ceder à urgência e à dinâmica de modelos mutantes, voláteis e de diferentes lógicas, presentes em diferentes sistemas jurídicos. Há, realmente, a pluralidade de várias racionalidades interpostas e superpostas.
A sociedade multifragmentada gera constantemente novos conflitos de interesses, assim, o indivíduo segregado e atomizado pode desmoronar a qualquer momento nas redes de segurança e, no resguardo que bem caracteriza os modelos recentes, encontra-se a justiça restaurativa.
Afinal, a justiça tradicional já não consegue mais responder à grande inflação de demandas. Mesmo com a duração razoável do processo e o advento do processo eletrônico, juizados especiais, não consegue competir com a litigiosidade massiva e dinâmica.
Cumpre advertir que em nada adianta, debelar a consequência, sem ir diretamente até a causa do conflito de interesses. Não basta a judicização[3] do social, do cultural ou do político.
Afinal, o direito é bem mais que o mero instrumento da ação judicial. É o apelo crescente ao judicial e a intervenção frequente do juiz e a forte desconfiança da política perturba muito a estrutura social contemporânea.
Não se pode admitir que a função judicial se torne subalterna, nem que a função de aplicar a lei seja reconduzida pelo juiz que a segunda na expressão de Montesquieu “a boca que pronuncia as palavras da lei”.
Enfim, a Justiça atomizou-se progressivamente, particularmente na década de oitenta do século XX assumindo-se como poder moderador da democracia. Absorvendo a transferência da democracia para a dimensão da decisão judicial. Por essa razão, prioriza-se o plenário que se opõe naturalmente a decisão monocrática do relator.
O juiz tornou-se malgré lui (apesar dele), sendo um ator político central e verdadeiro garantidor de liberdades fundamentais, sendo forte referencial da consciência moral da vida social, política e econômica, ou com desejar alguns, o guardador de promessas republicanas (na expressão de Antoine Garapon).
Dentro do paradigma federalista em se conceber os três poderes como modelos racionais ou tipos-ideais, na linguagem weberiana. Portanto, é possível perceber que os modelos estatais, aliados às concepções de Constituição caminham em consonância com a predominância de um ou outro daqueles poderes constituídos, sendo que a ascensão do Judiciário na qualidade de guardião das promessas não cumpridas fora um resultados desta conjuntura de falha os descrédito nos dois outros poderes.
Também a globalização modificou a dogmática do direito, pois há uma nova ordem socioeconômica de jaez poliédrico e multicêntrico, o que acarreta alterações na compreensão da realidade e na capacidade da ordem jurídica para dar resposta às exigências do tempo que se precipita em permanente futuro.
Há complexas redes normativas que se interpenetram e mutuamente se influenciam, há novos valores, novas dimensões e diversos conceitos. Houve as redescobertas dos princípios fundamentais doravante dotados de dimensão operativa e que moldam a interpretação.
Enfim, a Justiça foi convocada a ocupar o locus central no funcionamento das democracias nas sociedades abertas e plurais. Procura-se a justiça que seja transversal à sociedade e à solicitação vêm dos indivíduos em busca de direitos de refúgio da dispersão e atomização do individualismo em confronto com o totalitarismo suave das maiorias, como do próprio Estado[4] que criou mecanismos defensivos tanto que se tornou um notável consumidor da justiça.
Observamos a juridização e a judicialização em várias dimensões das relações sociais e, assim, tem-se a maior intervenção do Estado sobre a vida individual e coletiva.
A judicialização significa que algumas questões de expressiva repercussão política ou social estão sendo resolvidas pelo Poder Judiciário e, não pelas instâncias políticas tradicionais tais como o Congresso Nacional e o Poder Executivo. A judicialização no cenário brasileiro é decorrente do modelo constitucional que se adotou e, não de um exercício deliberado de vontade política.
Novamente, repriso que o Poder Judiciário[5] é devidamente provocado a se manifestar e o faz dentro dos limites dos pedidos formulados. Portanto, aos tribunais não há outra alternativa senão conhecer ou não das ações propostas e se pronunciar ou não sobre o mérito, toda vez que preenchidos dos requisitos de cabimento. Conclui-se que o Judiciário atua além de suas competências, mas lastreado em lei[6].
Basta enfocarmos para o exemplo que é a Justiça Constitucional[7] com o julgamento da própria lei, ou ainda, o modo de gestão administrativa, o que normalmente, afeta a diversidade das sociedades democráticas.
A perturbação crítica sobre os limites da intervenção judicial decorre por vezes, na linguagem menos rigorosa utilizada em alguns momentos discursivos do uso desviante de meios processuais disponíveis e dos instrumentos legais como modo de ação ou de confronto político; o uso alternativo do direito penal no confronto político (ou o deslocamento do confronto para o processo penal) o que introduz ruído e obstáculo na dinâmica funcional dessas instituições.
A legalidade e imposição de critérios de legalidade, controle de meios para fins alternativos constituem instrumentos que permitirão recolocar o problema em sua verdadeira dimensão e desconstruir os equívocos que por vezes acompanham a imputação crítica do ativismo judicial.
Lembremos que a Justiça representada pelo Judiciário não se pronuncia se não for solicitada, tendo, ainda, que responder de forma fundamentada (em fatos e fundamentos jurídicos) sempre que for decidir oficialmente.
Assim, a Justiça ficou mais exposta à visibilidade mediática com os risos de destemporalização do imediato, sem explicação da sobreposição de papéis.
Enfim, o lugar da Justiça enquanto valor e instituição e, também, a função do juiz ficou, pois, central nas democracias, porque é chamada a intervir nas suas várias dimensões, seja nas relações entre os cidadãos, ou associações, empresas e o Estado, seja por atuar como instituição formal de regulação política, porque traz o reequilíbrio dos problemas e soluções para a acidade.
A Justiça assume centralidade e o consequente poder de intervenção, mas, o poder da Justiça inquieta produz afinal o anátema do contra-poder.
O problema da justiça é eminentemente filosófico e a ciência do direito nunca lhe deu a devida atenção. Mas, no século XX se deu a possibilidade de haver um conceito racional de justiça, conforme fez Hans Kelsen.
Nas democracias décadas se multiplicaram os estudos jurídicos sobre o problema da justiça, procurando dar-lhe um tratamento científico e metodológico.
Investigam-se como concretizar o conceito de justiça através de normas jurídicas gerais e abstratas e das decisões judiciais sobretudo, analisando os valores envolvidos em cada caso concreto e, ainda, permite a ponderação à luz da proporcionalidade.
O conflito existente entre o Direito natural e o Direito positivo veio encontrar a solução no século XX, sem que se precise escolher entre um destes, excluindo o outro, mas sim, se procurar colocar uma síntese dialética que contemple ambos os direitos.
Atualmente se reconhece a possibilidade de se ter uma conceituação racional e objetiva da justiça, deixando de ser questão puramente metafísica, para se tornar uma preocupação prática e cotidiana de magistrados, advogados e demais operadores de direito.
Enfim, é preciso de espírito crítico laborando para obter os acertos e os erros de cada concepção de justiça em particular. A justiça, não é, conforme imaginava o positivismo, o elemento irracional do Direito, mas sim, o justo oposto, por ser precisamente o fator que lhe confere racionalidade e cientificidade e, que não constitui a razão de ser de toda e qualquer norma jurídica, sem a qual o Direito não passaria de mero arbítrio e força, sendo insuscetível, pois, de qualquer estudo científico sistemático.
Entende-se o conceito de justiça social está relacionado às desigualdades sociais e às ações voltados para a resolução desse problema. A justiça social consiste no compromisso do Estado e instituições governantes em buscar mecanismo para compensação de desigualdades sociais geradas pelo mercado e pelas diferenças sociais.
O prensador que melhor delineou a justiça social foi John Rawls que estabeleceu três pontos para se alcançar o princípio da equidade, a saber: 1. Garantia das liberdades fundamentais para todos; 2. Igualdade de oportunidades; 3. Manutenção de desigualdades apenas para favorecer os mais desfavorecidos. Portanto, a justiça social pretender promover o crescimento de um país para além das questões econômicas.
No ordenamento jurídico pátrio não está prevista nos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (Dec.-Lei 4.657/1942) e, hoje acertadamente denominada Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro.
Há dificuldade centrada em conceber a equidade sob as formas em que pode se revestir, visto ser possível assumir a forma integrativa e, também, a forma valorativa.
A equidade[8] não é apenas o abrandamento da norma em um caso concreto, como também sentimento que brota no âmago do julgador, conforme sintetiza Sílvio Venosa.
O Ministro Luiz Fux, ao tratar a equidade como valor, menciona que essa deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum. Assim, a equidade integrativa corresponde a uma ideia de justiça da consciência média que está presente nas comunidades. É uma justiça do caso concreto. Aquilo que o próprio legislador diria se tivesse presente, o que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso concreto.
Já a equidade corretiva se refere à Ética a Nicômaco[9], aquela que o juiz vai aplicar quando tiver a necessidade de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei. É o caso do artigo 944, parágrafo único do Código Civil brasileiro que afirma que o juiz poderá quando o grau de culpa for pequeno e a extensão do dano for muito grande, fazer uma correção para não aplicar a regra que diz que a indenização há de corresponder à extensão do dano.
No direito contemporâneo há a equidade substitutiva, integrativa e interpretativa que possuem três funções, a saber: na função substitutiva, a equidade constitui um instrumento posto caso a caso pela lei à disposição do juiz para especificação em concreto dos elementos que a norma de direito não pode resolver em abstrato. Finalmente, em sua função interpretativa que busca estabelecer um sentido adequado para regras ou cláusulas contratuais em conformidade com os critérios de igualdade e proporcionalidade.
No direito processual civil brasileiro desde o CPC de 1973 a equidade substitutiva deixou de existir. Pois o artigo 127 do CPC/1973 traduz a ideia de equidade integrativa. Porém, raramente vigorante e, a maioria das hipóteses previstas no Código Civil de 2002, onde o legislador fez uso da equidade integrativa.
Com precisão cirúrgica, Caio Mário da Silva Pereira advertiu sobre a equidade, in litteris:
“É, porém, arma de dois gumes. Se, por um
lado, permite ao juiz a aplicação da lei de forma a realizar o seu verdadeiro
conteúdo espiritual, por outro lado, pode servir de instrumento às tendências
legisferantes do julgador que, pondo de lado o seu dever de aplicar o direito
positivo, com ela acoberta em desconformidade com a lei.
O juiz não pode reformar o direito sob pretexto de julgar por equidade, em lhe é dado negar-lhe vigência sob fundamento de que contraria o ideal de justiça. A observância da equidade, em si, não é um mal, porém sua utilização abusiva é de todo inconveniente seu emprego há de ser moderado, como temperamento do rigor excessivo ou amenização da crueza da lei.”. (In: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume I, 5º edição. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 57).
Apesar da dogmática[10] inerente à equidade, enquanto valor, ser muito clara e bem sedimentada, a equidade enquanto instrumento hábil provoca verdadeira confusão, em todos os planos, principalmente no foro em geral.
Em rápida pesquisa aos arrestos civis, a utilização da equidade, sob diversos ângulos, objetivando apresentar justiça do caso concreto, à revelia, de toda à dogmática aplicada na equidade enquanto instrumento para suprir lacunas, excepcional e extraordinária ao comando legal previsto no artigo 4º LRNB.
Atualmente, o comando contido no artigo 5º da LRNB da Lei 12.376/2010 para legitimar a ampla e irrestrita aplicação de equidade a várias situações concretas, ora seu comando é confundido com o teor de um princípio geral do direito para legitimar sua aplicação com base no artigo 4º do mesmo diploma legal. Em ambas as situações ocorre o erro do exegeta.
O Direito Português em postura de franca vanguarda optou por estabelecer limites à equidade in verbis: “Valor da Equidade. Os Tribunais só podem resolver segundo a equidade: a) Quando haja disposição legal que o permita; b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível; c) Quando as partes tenham, previamente, convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória (In: Código Civil Português, Decreto- Lei 47.344, de 25.11.1966, artigo 4º).
A Justiça em Arendt aparece em sentido equitativo e , abordou o tema a partir das experiências do totalitarismo no regime nacional-socialista alemão (1933-1945)[11] que utilizou o esvaziamento normativo.
Por equidade se entende a adequação do direito (em sentido amplo, abrangendo a Lei, a Constituição, a Jurisprudência e os atos praticados pela administração pública) ao caso concreto.
Lembremos que a esfera pública é o local da igualdade na pluralidade. O social para Arendt é uma distorção. O político vira um trabalho, uma espécie de profissão. O público passa ter a preocupação privada e o público acaba desaparecendo.
A discussão da justiça distributiva em saúde no Brasil tem se limitado parcialmente em interpretar o preceito de equidade e como este deve fundamentar a orientação dada às políticas públicas de saúde, principalmente no âmbito do SUS.
Longe de haver consenso até mesmo dentro do debate internacional, posto que visa a progressiva redução das desigualdades entre os cidadãos de uma sociedade democrática. O princípio da justiça distributiva da equidade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.
Alguns dos filósofos contemporâneos preocupados com a ideia de justiça são unânimes ao afirmarem que muitas das teorias são indissociáveis ao que Rawls postulou na bíblia chamada “A theory of justice”[12] (1971). E, uma das maiores preocupações de Rawls é postular princípios justos para pessoas livres, racionais e razoáveis.
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Notas:
[1] A palavra "dignidade" possui múltiplos usos, mesmo quando em referência aos seres humanos. Há, basicamente, três sentidos diferentes, a saber: a dignidade como status superior de certas pessoas, pela sua posição social ou pela função que exercem; dignidade como virtude de alguns indivíduos, que agem e se portam de maneira altiva; e dignidade como valor intrínseco, atribuído a cada pessoa humana. pessoa humana e seus direitos, ocorridas desde o Iluminismo, a ideia da dignidade como status tem ainda hoje projeções relevantes, conscientes ou não, na cultura social, política e jurídica de muitas sociedades contemporâneas, especialmente nas que mantêm fortes traços desigualitários, como a brasileira. Ela se mantém, por exemplo, em nossa linguagem comum, em que a dignidade é por vezes associada ao exercício de funções tidas como nobres. É nesse sentido que se alude à dignidade de certos cargos públicos. Outro significado corrente da dignidade se liga à “conduta digna”. Cogita-se em dignidade quando se considera louvável e altivo o comportamento de uma pessoa diante de circunstâncias em geral adversas. A dignidade, nesse sentido, consiste numa espécie de virtude, que pode ser associada a certas pessoas não pelo seu status social, mas pelas suas ações e postura. No Direito contemporâneo, a palavra “dignidade” tem sido usada em um terceiro sentido, geralmente associado aos direitos humanos. A dignidade é empregada como qualidade intrínseca de todos os seres humanos, independentemente do seu status e da sua conduta. A dignidade é ontológica, e não contingente. Em outras palavras, todos os indivíduos que pertencem à espécie humana possuem dignidade apenas por serem pessoas. Não se admitem restrições relativas a fatores como gênero, idade, cor, orientação sexual, nacionalidade, deficiência, capacidade intelectual ou qualquer outro. E ninguém se despe da dignidade humana, ainda que cometa crimes gravíssimos, que pratique os atos mais abomináveis.
[2]
O Iluminismo fora movimento de ideias originado no século XVII na Holanda. Mas,
somente no século posterior que houve o desenvolvimento e expansão dos ideais
iluministas pelo norte da Europa e pela América. Seu principal objetivo era
utilizar a razão humana para compreender os fenômenos e romper com a
mentalidade ora vigente, ou seja, opor-se ao Ancien Régime. Em linhas gerais,
se caracterizou por ser um sistema de governo em que o governante se investia
de poderes absolutos, sem limites, exercendo de fato e de direito os atributos
da soberania. Segundo Bobbio, o Iluminismo não foi um movimento homogêneo. Pelo
contrário, fora uma mentalidade desenvolvida no decorrer do século XVIII por
parte de um grupo da sociedade, grupo este composto basicamente por
intelectuais, burgueses e alguns reinantes. Houve várias divergências no que
diz respeito ao Iluminismo existente em países como a Alemanha, a Espanha,
Itália, Áustria e países da Europa Oriental.
[3]
É definida como ação ou efeito de juridicizar, de atribuir caráter jurídico a;
atribuição de caráter jurídico a algo ou resolução de um assunto sob o ponto de
vista jurídico. Observa-se que a
efetivação do direito à saúde, por exemplo, envolve a preservação da
continuidade das políticas públicas por meio do diálogo. Deste modo, os
conflitos políticos sofrem muito mais uma juridicização (conflitos são
discutidos sob o ponto de vista jurídico) do que uma judicialização (ao máximo,
se evita levá-los ao Judiciário), pois a intenção consiste em evitar a via
judicial e adotar múltiplas estratégias e pactuações extrajudiciais. A possibilidade
de atuar de forma independente permite o destaque político do MP como mediador
na saúde.
[4]
Dados do Relatório Justiça em Números 2018 revelam que dos 80 milhões de
processos que tramitavam no Judiciário brasileiro no ano de 2017, 94% estão
concentrados no primeiro grau. Nesta instância estão, também, 85% dos processos
ingressados no último triênio (2015-2017); 84% dos servidores lotados na área
judiciária, 69% do quantitativo de cargos em comissão, 61% em valores pagos aos
cargos em comissão, 75% do número de funções comissionadas e 66% dos valores
pagos pelo exercício das funções de confiança. O Relatório Justiça em Números
2020 apresenta também os gargalos da Justiça brasileira. A litigiosidade no
Brasil permanece alta e a cultura da conciliação, incentivada mediante política
permanente do CNJ desde 2006, ainda apresenta lenta evolução. Em 2019, apenas
12,5% de processos foram solucionados via conciliação. Em relação a 2018, houve
aumento de apenas 6,3% no número de sentenças homologatórias de acordos, em que
pese a disposição do novo Código de Processo Civil (CPC), que, em vigor desde
2016, tornou obrigatória a realização de audiência prévia de conciliação e
mediação. Conforme registrado no presente Relatório, aproximadamente 31,5% de
todos os processos que tramitaram no Poder Judiciário foram solucionados. (In:
Justiça em Números 2020: ano-base 2019/ Conselho Nacional de Justiça: CNJ:
2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf
Acesso em 9.11.2020)
[5]
Apenas a título de exemplificação, traz-se os casos concretos reais de judicialização
ocorridos recentemente no Brasil. Casos de judicialização da política, a saber:
o rito do processamento do impeachment
da ex-presidente Dilma Rousseff que fora analisado pelo STF; a definição
do afastamento do então Presidente da Câmara dos Deputados, também realizados
pelo STF. Casos de judicialização da vida, a saber: o reconhecimento da
possibilidade de união estável entre pessoas do mesmo sexo, assim decidida pelo
STF, no ano de 2011, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e Ação
de Descumprimento de Preceito Fundamental 132; STJ após decisão do STF acima,
entendeu pela possibilidade da conversão da união estável homoafetiva em
casamento; Definição, tratamento e facilitação do casamento entre pessoais do
mesmo sexo, sob determinação do Conselho Nacional de Justiça em Resolução
editada em 2013, com o fim proporcionar efetivação ao entendimento do STF e do
STJ supramencionados.
[6]
Infelizmente, a judicialização da saúde não resolve o problema de acesso aos
tratamentos no SUS. Nem para o governo essa também não é alternativa ideal,
pois a União ou o Estado gastam bastante na compra de medicamentos individuais
para obedecer a decisões do Poder Judiciário do que se os medicamentos fossem
adquiridos em quantidade, com valores negociados para todos que dele
necessitam. Como não é possível prever o montante do orçamento que será
destinado ao atendimento de ações judiciais, os gestores públicos enfrentem
maiores desafios em manter um serviço de saúde funcional e eficiente para a
produção, já que alguns recursos precisam ser realocados. Os gastos do governo
para cumprir determinações judiciais estão batendo recordes: estima-se que em
2016 o Governo Federal tenha gasto com medicamentos o montante de R$ 1,6 bilhão
com pacientes que buscaram a judicialização. Esse número foi de R$ 800 milhões
em 2014 e de R$ 1,2 bilhão em 2015. Todo ano, essa despesa atingem novo recorde
e esse valor equivale a 10% do montante que o governo investiu em 2015 na
compra de medicamentos previstos na rede pública para atender toda a população
brasileira.
[7]
A verificação de que a Justiça Constitucional desenvolve tarefas para além do
sempre referido e propagado controle da constitucionalidade das leis acaba
promovendo certo impacto na (forma de) análise e aproximação de assuntos e
preocupações também centrais à própria Justiça Constitucional. Assim é que os
elementos do denominado processo constitucional objetivo e o tema, tão caro à
teoria clássica, da legitimidade de um Tribunal Constitucional (envolvendo
questões como o recrutamento de seus integrantes e o tempo máximo de exercício
desse cargo) devem ser avaliados não apenas em função daquela tarefa de
controle de leis, mas sim em contemplação a toda a gama de extensas funções
exercidas (ou exercitáveis) pela instituição do Tribunal Constitucional, em
consonância com a contemporânea teoria da Constituição.
[8]
De Plácido e Silva, e m seu consagrado Vocabulário Jurídico, trata com mais
profundidade da equidade: “E Q U I D A D E. Derivado do latim aequitas,
de aequus (igual, equitativo), antigamente era tido em sentido análogo
ao de justiça, pelo que, por vezes se confundiam. E, assim, tanto um com o
outro se compreendiam como a disposição de ânimo, constante e eficaz, de tratar
qualquer pessoa, segundo sua própria natureza, ou tal como é, contribuindo em
tudo que se tem ao alcance, desde que não seja em prejuízo próprio, para
torná-la perfeita e feliz. E, ampliando este sentido, chegavam a equipará-la à
caridade, interpretando-a como a bondade cordial, e m virtude da qual não se
exige com rigor aquilo a que temos direito, porque nos pertence ou nos é
devido, chegando-se ao extremo de uma liberalidade desmedida, para relaxar,
voluntariamente, nossos próprios direitos, mesmo reais, e m proveito de outrem.
E, assim, a equidade não é a justiça. C o m p õ e o conceito deu m a justiça
fundada na igualdade, na conformidade do próprio princípio jurídico e, em
respeito aos direitos alheios.
[9]
Ethica Nicomachea é a principal obra de Aristóteles sobre Ética. Nesta
se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista de racionalidade prática, sua
concepção da virtude como mediania e suas considerações acerca do papel do
hábito e da prudência. Em Aristóteles, toda racionalidade prática é
teleológica, quer dizer, orientada para um fim (ou um bem, como está no texto).
À Ética cabe determinar a finalidade suprema (o summum bonum), que
preside e justifica todas as demais, e qual a maneira de alcançá-la. Essa
finalidade suprema é a felicidade (eudaimonia), que não consiste nem nos
prazeres, nem nas riquezas, nem nas honras, mas numa vida virtuosa. A virtude,
por sua vez, se encontra no justo meio entre os extremos, e será encontrada por
aquele dotado de prudência (phronesis) e educado pelo hábito no seu
exercício. Vale destacar aqui que a ideia de virtude, na Grécia Antiga, não é
idêntica ao conceito atual, muito influenciado pelo cristianismo. Virtude tinha
o sentido da excelência de cada ação, ou seja, de fazer bem feito, na justa
medida, cada pequeno ato (além disso os valores da altura e local em que ele
escreveu tal obra eram bem diferentes dos leitores atuais; a palavra bem ou mal
por exemplo apresenta significados totalmente opostos).
[10]
A dogmática contemporânea do direito mais se parece um cemitério de ideias
mortas. Pois ali crescem, se reproduzem e morrem diariamente as distintas e
heterogêneas concepções sobre o que é, sobre o que deveria ser e sobre como
aplicar o direito. Aliás, cada um dos doutrinadores defende seu próprio
conceito de interpretação e aplicação do direito, de argumentação jurídica, de
racionalidade, de justiça. A dogmática persiste em oscilar entre um
pós-modernismo sem sentido e/ou um acusado formalismo que corresponde com uma
fase já prevista da cultura jurídica, senão que também persevera em formular
construções doutrinárias cuja principal característica e utilidade é a de
servir como mero mecanismo de legitimação posterior à decisão. Nas palavras de
Rüdiger Lautmann (1972): “As citações literárias nos escritos das sentenças
cumprem essencialmente, uma função de persuasão; ditas citações buscam outorgar
à sentença a aparência de correção e de dignidade científica”. In: FERNANDEZ,
Atahualpa; FERNANDEZ BISNETO, Atahualpa. Dogmática jurídica. Disponível em:
https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-75/dogmatica-juridica/ Acesso em
10.11.2020.
[11]
Volksgerichtshof (VGH), em alemão "tribunal do povo", foi uma
corte especial de justiça ou, mais precisamente, um tribunal político que
esteve ativo na Alemanha entre 1934 e 1945, tendo sido responsável pelo
julgamento de acusados de crimes de alta traição e atentado contra a segurança
do Estado, praticados pela resistência alemã durante o regime nazista. Foi
instituído por Adolf Hitler, após o episódio do incêndio do Reichstag,
em 27 de fevereiro de 1933, que havia sido provocado pelos nazistas para
justificar a supressão das liberdades individuais que se seguiu. O tribunal é
tristemente célebre pelo grande número de sentenças de morte (mais de 5000)
pronunciadas em seus poucos anos de existência, sobretudo entre 1942 e 1945, sob
a presidência do juiz Roland Freisler, cuja atuação é tida como exemplo de
desvio da lei (Rechtsbeugung) e submissão da justiça ao terror
organizado de Estado, sob o nazismo.