Garantismo penal versus realidade brasileira

No confronto entre garantistas e punitivistas resta a realidade brasileira e, ainda, um Judiciário entrevado de tantas demandas. O mero garantismo penal, no fundo, pode ser positivismo camaleônico.

Fonte: Gisele Leite

Comentários: (0)




O saudoso Heleno Cláudio Fragoso em priscas eras já mencionava que se encontrava definitivamente ultrapassada a fase das declarações de direitos e liberdades fundamentais e, sendo atualmente a preocupação universal a criação de um sistema jurídico que assegure a observância de tais direitos e a garantia de tais liberdades. Afinal, de nada vale a declaração e o reconhecimento de direitos, sem os instrumentos processuais capazes de os assegurem.

Os princípios universais do Estado Democrático de Direito[1] que são garantidores dos direitos fundamentais dos indivíduos, assumiram tamanha relevância no mundo contemporâneo, que passaram a ser incluído nos textos constitucionais de diversos países, inclusive a brasileira de 1988.  Em nossa Carta Magna, o Estado Democrático de Direito é postulado estruturante, conforme se verifica logo em seu preâmbulo e, representa os alicerces da República.

Cumpre, ainda, atentar que explicitamente a Constituição definiu o país como Estado Democrático de Direito, de caráter pluralista e que se fundamenta na dignidade da pessoa humana, comprometendo-se a respeitar os direitos humanos nas relações internacionais e internas.

No vigente contexto constitucional os direitos fundamentais um significado especial, colocada em evidência. Afora o preâmbulo e dos artigos 1 e 4, a Lex Magna dedicou o seu Título II, inteiramente, aos Direitos e Garantias fundamentais, onde se destaca o Capítulo I, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos.

Os direitos individuais estão relacionados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade e, aparecem no artigo 5º, onde destacam-se, a saber:

a) Princípio da igualdade expresso em "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

b) Princípio da legalidade[2] expresso em: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

c) Proibição da tortura, de tratamento desumano ou degradante e, de penas perpétuas;

d) Liberdade de pensamento, consciência, crença e de locomoção.

e) Princípio da inafastabilidade da jurisdição expresso em: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

f) Proibição de tribunais de exceção;

g) Princípio da anterioridade da lei penal expresso: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

h) Proibição e, consequente, punição a qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

i) Princípio da intranscendência, pois nenhuma pena passará da pessoa do condenado;

j) Princípio da individualização da pena;[3]

l) Princípio do juiz natural que afirma que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

m) Princípio do devido processo legal que informa que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

n) Princípio do contraditório e da ampla defesa que informa que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

o) Princípio da presunção da inocência[4] que afirma que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A Constituição Federal brasileira de 1988 foi a primeira dentro da história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais.

Acenou assim o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativa de toda a ordem constitucional.

A preocupação expressiva do legislador pátrio em assegurar os direitos e garantias individuais que o os reconheceu como elementos essenciais à Constituição, transformando-os em cláusulas pétreas, proibindo-se alterações tendentes à abolição de suas normas, por meio de emenda.

A Constituição procura garantir certos direitos contra as interferências ilegítimas do Poder Público tendentes a aboli-los bem como contra qualquer abuso de terceiros.

A Constituição brasileira e considerada uma norma rígida, em razão da dificuldade para modificá-la. Dessa rigidez decorre a supremacia do texto constitucional que significa que as normas infraconstitucionais só serão válidas se estiverem em consonância com as normas da Carta Magna.

Em face da rigidez das normas constitucionais, as leis infraconstitucionais em vigor para serem recepcionadas pela Constituição Federal devem estar de acordo com seus fundamentos, bem como, as demais leis que vierem a ingressar no ordenamento jurídico.

Afirma solenemente que o Brasil é Estado de Direito posto que seja submetido a lei e, igualmente um Estado Democrático porque se dedica a garantir o respeito aos Direitos Fundamentais de seus habitantes.

Foram construídos os ideais defendidos pelos Estados Democráticos de Direito, quais sejam, a igualdade, fraternidade, dignidade e liberdade, considerando-os de efetividade plena, isto é, normas de aplicação imediata, direta e integral, independente de legislação infraconstitucional para sua inteira operatividade.

De sorte que segundo o texto constitucional brasileiro vigente, os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo.

Naturalmente que a proteção dos direitos civis realiza-se através da incorporação desses direitos à legislação interna e através de um sistema de medidas processuais eficazes, que os assegurem.

Em relação ao Código Penal brasileiro, a Constituição atua concretamente como redutor e duas são as limitações, a saber: as de natureza material, que impedem que da lei penal constem disposições contrárias aos princípios ou garantias delineadas no texto máximo e as limitações de natureza formal que se consubstanciam no impedição de edição de normas em desacordo com as regras fixadas pela Constituição Federal para elaboração de lei penal.

Conclui-se que as limitações materiais se referem, principalmente, as disposições relativas aos direitos e garantis fundamentais, de forma a estabelecer que o Código penal deve estar em consonância com determinados princípios fundamentais.

As limitações materiais são relativas aos direitos e garantias fundamentais, de forma a estabelecer que o Código Penal deve estar de acordo com determinados princípios fundamentais.

O diploma legal penal brasileiro por compreender o conjunto de normas jurídicas que preveem os crimes e lhes cominam sanções, bem como disciplinam a incidência e validade de tais normas, a estrutura do crime e, a aplicação das sanções, o que inexoravelmente envolve o dilema da privação da liberdade humana.

De sorte que o ordenamento jurídico penal fica sendo também o mais limitado pelas exigências constitucionais. Em verdade, o direito penal da Constituição se expressa através do direito penal mínimo, que corresponde através do espaço residual que se reserva para a intervenção punitiva dentro dos limites impostos pelos dispositivos constitucionais nos marcos de uma política de proteção dos direitos humanos.

O direito penal encontra-se limitado pelas garantias fundamentais de liberdade humana. Através o Direito penal define ao Estado o ius puniendi quando o agente cometer um fato típico, ilícito e culpável. Portanto deve observar certos princípios diretores ao atuar, sejam os explícitos e os implícitos, que são igualmente importantes.

Lembremos que o Direito Penal se distingue dos demais ramos jurídicos pelo princípio da legalidade estrita, revelado por "não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".

Esse princípio assegura que ninguém poderá ser punido por uma conduta que não se amolde às descritas na lei penal. Ainda estabelece que esse comportamento tem que ser previamente definido na lei como crime (princípio da anterioridade), não se admitindo punir delitos anteriores a essa definição.

O princípio da legalidade também se desdobra no princípio da taxatividade da norma penal incriminadora, que significa que a lei deve ser clara e precisa quanto aos seus conteúdos, de forma a proporcionar clareza de interpretação.

O princípio da taxatividade igualmente restringe a elaboração de tipos penais abertos que poderiam acarretar insegurança jurídica. Em razão dessa restrição, a lei penal incriminadora não admite interpretação através dos costumes ou analogia.

Quanto aos demais princípios norteadores no Direito Penal, estes podem ser relacionados: 1) com a missão fundamental do Direito (princípio da aplicação da lei mais favorável); 2) com o fato delituoso (princípio da proteção dos bens jurídicos fundamentais); 3) com o agente (princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da culpabilidade e princípio da igualdade) ou, 4) com a pena (princípio da proporcionalidade; princípio da individualização da pena e princípio da personalidade).

O princípio da aplicação da lei mais favorável assevera que “ninguém pode ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória, “e também, que “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Este ainda “pressupõe a existência de dois outros princípios que são lhes são indissociáveis: a) a irretroatividade da lei mais grave; b) a retroatividade da lei mais favorável”.

O princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, pode ser considerado alicerce de todo e qualquer Estado que se proclama como Democrático de Direito e como tal não poderia estar ausente do Direito Penal.

O princípio da culpabilidade encontra-se presente no artigo 19 do Código Penal que dispõe que “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.”

Neste sentido, ele estabelece que somente os imputáveis (capazes de culpa) podem ser responsabilizados penalmente, pois “um sistema jurídico próprio de um Estado Democrático de Direito rejeita a periculosidade como fundamento ou limite da pena”.

A certeza, ainda que não absoluta, a que aspira um sistema penal de tipo garantista não é no sentido de que resultem exatamente comprovados e punidos todos os fatos previstos pela lei como delitos, mas, que sejam punidos somente aqueles nos quais se tenha comprovado a culpabilidade por sua comissão. (FERRAJOLI)

Já o princípio da igualdade, garante aos indivíduos a equidade perante a lei (artigo 5º, caput e inciso I). Tal dispositivo garante que todos são iguais perante a lei, em direitos e obrigações, ainda que subjetivamente desiguais.

O princípio da humanidade das sanções encontra-se expresso na Constituição Federal de 1988 e se revela na forma de proibição das penas de morte (salvo em caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e quaisquer outras de natureza cruel (art. 5°, inciso XLVII), e “assegura aos presos o respeito à integridade física e moral”.

O princípio da proporcionalidade da pena possui uma dupla finalidade: reprovar o crime, satisfazendo, assim a sociedade, e, ao mesmo tempo, assegurar ao apenado os seus direitos fundamentais, garantindo que sua punição não excederá o limite do mal por ele causado, bem como fornecendo a este um tratamento digno durante o período em que estiver cumprindo pena.

O princípio da individualização da pena aparece em diversos dispositivos, tais como no artigo 5°, inciso XLVI da CF/88, e no artigo 59 e seguintes do Código Penal. Em termos penais, este princípio determina que as penas devem ser individualizadas, respeitando as características próprias do delito cometido e de seu agente.

Por fim, intimamente relacionado com o princípio da individualização, encontra-se o princípio da personalidade da pena que estabelece que esta somente poderá ser executada contra o autor ou partícipe do delito, ou seja, que “ nenhuma pena passará da pessoa do condenado” (artigo 5°, inciso XLV da CF/88).

De acordo com os nobres postulados defendidos pelo garantismo penal[5], a proteção dos direitos humanos civis e políticos, faz-se, basicamente, através da incorporação desses direitos à legislação interna e através de um sistema de medidas processuais eficazes, que os assegurem.

Todavia, tal modelo, na prática, vem sendo alargamento desatendido, pois o Código Penal brasileiro não assegurou a plenitude dos postulados garantistas dos direitos fundamentais, uma vez que a incerteza estrutural dos juízos de validade jurídica, e ainda o dever dos juízes de aplicar a lei, o papel crítico mais do que dogmático da ciência jurídica em relação aos textos normativos.

Diante da realidade brasileira, há os parâmetros de justiça, racionalidade e legitimidade, são negligenciados, especialmente no que diz respeito à aplicação da pena. Aliás, através do cálculo da pena que o Estado-juiz, exercita o seu ius puniendi, isto é, direciona o seu poder de reprovação ao indivíduo que agiu de forma contrária ao direito, ao praticar fato típico, ilícito e culpável.

A transformação da pena de reparação em medida adequada de defesa social e de reeducação dos indivíduos socialmente perigosos exige a solução de enorme tarefa de organização.

A par disso, a legislação penal brasileira adotou, em seu artigo 68, o sistema trifásico concebido por Nelson Hungria, que estabelece que a pena será calculada observando-se três fases distintas e sucessivas.

Primeiramente, o julgador deverá encontrar, a partir de análise das oito circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 CP, a chamada pena-base. A pena inicial fixada em concreto, dentro dos limites estabelecidos a priori na lei penal, para que, sobre esta, incidam, por cascata, as diminuições e os aumentos decorrentes de agravantes, atenuantes, majorantes ou minorantes.

E, cada uma das oito circunstâncias judiciais deve ser analisada e valorada individualmente, não podendo o juiz simplesmente se referir a estas de forma genérica.

Em resumo, o julgador deverá analisar, separadamente, a culpabilidade (grau de reprovabilidade do ato praticado pelo réu); os antecedentes (vida pregressa do agente); a conduta social; a personalidade do agente, os motivos; as circunstâncias; as consequências e, por fim, o comportamento da vítima.

A discricionariedade proporcionada ao magistrado para trabalhar com os vetores previstos no artigo 59 do Código Penal preocupa os garantistas -, notadamente, porque certas circunstâncias judiciais possuem natureza subjetiva (culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente), fato que pode gerar decisões equivocadas, quando não inconstitucionais.

O argumento utilizado pelos garantistas é de que é tênue o limite que separa a consideração dessas circunstâncias sob uma perspectiva constitucional, daquela que “coloca a defesa social acima dos direitos e garantias individuais”.

Outra questão polêmica presente na cominação da pena é a reincidência, instituto que o julgador sempre deverá observar e que funciona não só como uma circunstância agravante da pena, mas também como fator impeditivo para uma série de benefícios legais.

A reincidência, conforme se demonstrará a seguir, da forma com que é empregada hoje no Brasil, é considerada, pelos garantistas, inconstitucional.

Tanto que o garantismo penal propõe, portanto, uma nova avaliação quanto a esse instituto, de forma a apontar as suas falhas e torná-lo mais eficientes, e, verdadeiramente, adequado a um Estado Democrático de Direito.

Entretanto, no âmbito criminal no afã de buscar a proteção máxima dos direitos fundamentais, o garantismo penal foi tomando rumos para proteger somente um lado da relação jurídica: o acusado. Por vezes, a vítima sequer é considerada pelo aparato estatal. E, assim, não recebe as mesmas garantias constitucionais que o acusado do crime recebe.

Sendo certo que a vítima não faça parte do processo penal, na relação jurídica estatuída entre o Estado-acusado. Assim, o artigo 201 do CPP[6] que prevê o ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, á designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem.

A proteção legal em relação ao ofendido é mínima, sem qualquer previsão de alocação de recursos públicos para elaboração de políticas públicas sérias e efetivas para atender a essa demanda ou para garantir de fato a sua segurança.

A ideia de garantismo do doutrinador Luigi Ferrajoli em sua obra intitulada “Direito e Razão”, nasceu como fundamento válido de proteção aos direitos fundamentais em um período de Estado totalitário na Itália e emprega a definição in litteris:

“Garantismo designa uma filosofia política que requer do direito e do estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre o direito e a moral, entre a validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o ‘ser’ e o ‘dever ser’ do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda de legitimação ético-política do direito e do estado, do ponto de vista exclusivamente externo” (FERRAJOLI).

A tese do garantismo penal, sobretudo, se propõe a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a defesa social acima dos direitos e garantias individuais.

Assim, o modelo garantista permite a criação de instrumental prático- teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.  Desta forma, os direitos fundamentais adquirem, portanto, status de intangibilidade estabelecendo o que Diaz e Ferrajoli chamaram de esfera do não decidível.

Seria uma esfera inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do bem comum. Os direitos fundamentais seriam os direitos humanos constitucionalizados, operando a função de fixar o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas.

Surgiu então o significado do garantismo geral vinculado ao dever do próprio Estado em assegurar o devido processo legal, além dos direitos fundamentais das partes em decorrência dos princípios e postulados que estão na Constituição de um país.

Tudo isso vinculado à observância do garantismo penal,[7] com o fim de que o processo judicial decorrente de fato criminoso seja substancialmente devido e equilibrado, justo e formal, assegurando os interesses dos vulneráveis.

Percebe-se que a intenção do jurista italiano Ferrajoli não foi garantir os direitos que fundam o Estado Democrático de Direito apenas ao acusado de fatos criminosos, mas, sim, a todo sistema de Justiça criminal, visando proteção constitucional integral.

Contemporaneamente, o Direito não pode ser apenas definido por normas jurídicas. A Constituição Federal passou a ter valor supremo com a dignidade da pessoa humana, um atributo de todo ser humano. O princípio foram todos realinhados e, em decorrência disso, o próprio Direito foi galgando outro significado. Daí a significância dos direitos humanos sob um só prisma e vetor, o que não é admitido no mundo todo, mas apenas do Brasil.

Apesar de serem admissíveis as críticas formuladas às prisões provisórias em geral, particularmente, a preventiva, devendo tais serem evitadas ao máximo no processo e reservadas como recursos extremos de ultima ratio. É realmente lamentável que seja por vezes necessária a custódia provisória de forma que esta nunca irá superar a condição do famoso mal necessário.

Não se pode delirar e acreditar num processo penal sem prisão preventiva. Afinal, o Direito Penal, não foi feito para santos ou heróis, o Processo Penal também não é feito para entidades sagradas ou homens perfeitos. Até mesmo no inferno também desejarão impor alguma ordem ou paz.

Portanto, lembram Zaffaroni e Batista que o sistema deve respeitar o mundo real necessitando admitir que o legislador se refere a certo dado do mundo, não podendo inventá-lo, mas sim, deve respeitar elementarmente sua onticidade.  Enfim, o respeito às estruturas reais e concretas é condição de qualquer direito que pretenda ter alguma eficácia.

O garantismo[8] exagerado e monocular traz para apenas a uma das partes os direitos e garantias fundamentais, de forma excessiva e desproporcional, não revela uma justa e equânime proteção à sociedade e, muito menos traduz a veraz essência do Estado Democrático de Direito. Revelando-se ser um positivismo camaleônico.

Referências:

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

CABETTE, Eduardo Luiz santos. O Delírio Garantista de um Processo Penal sem Prisão Preventiva. Disponível em: https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/162166756/o-delirio-garantista-de-um-processo-penal-sem-prisao-preventiva  Acesso em 15.10.2020.

DOS SANTOS, André Alves. Estado (Democrático) de Direito e Princípios Fundamentais do Estado Brasileiro: Utopia ou Realidade. Disponível em: http://intertemas.toledoprudente.edu.br/index.php/ETIC/article/download/2064/2265   Acesso em 16.10.2020.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

GALVÃO, Fernando da Rocha. Política Criminal. Belo Horizonte: Editora Mandamentus, 2002.

GOMES, Luiz Flávio; DE MOLINA, Antonio García-Pablos; BIANCHINI, Alice - DIREITO PENAL. Introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. 1º volume.

ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo jurídico e controle de constitucionalidade material. Florianópolis: Habitus, 2002.

STRECK, Lenio Luiz. Da Utilidade de uma Análise Garantista para o Direito brasileiro. Disponível em: www.femargs.com.br/revista02_streck.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

Notas:

[1] O Estado Democrático de Direito tão bem reverenciado por Inocêncio M. Coelho, nada mais se traduz em ser criação linguística de origem alemã e francesa, não obstante as divergências existentes entre os dois países, e que surgiram nesses dois locais, em razão de dadas circunstâncias ocorridas em toda a Europa. O que justificou o anseio pela existência de Estado Liberal em face do Estado absolutista vivenciado nesta época. Esse modelo de Estado democrático de Direito se mantém gerenciado através de normas, que tanto podem ser regras como princípios, os quais são divididos dentro do texto Constitucional em quatro ordens: a) princípios da ordem política; b)princípios da ordem tributária e orçamentária; c) princípios da ordem econômica e financeira e d) princípios da ordem social. Contudo, em virtude do assunto em tela, apenas comentarei, a primeira ordem de princípios (art. 1° a5° da CF/88), tendo em vista que o tema se refere aos princípios fundamentais do Estado brasileiro.

[2] Por legalidade formal se entende a obediência aos trâmites procedimentais previstas pela Constituição Federal para que certo diploma legal possa vir a fazer parte de nosso ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, no que diz respeito à lei ordinária, para que se constate a sua legalidade formal, dever-se-á, após a iniciativa e discussão do projeto em plenário por ambas as casas do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), obter a maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros, conforme determina o art. 47 da Constituição Federal. Já o projeto de lei complementar, para que possa ser aprovado, necessita dos votos da maioria absoluta dos membros de cada casa do Congresso Nacional. Assim, por exemplo, se uma lei complementar viesse a ser aprovada com o voto da maioria simples, e não absoluta, conforme determina o art. 69 da Constituição Federal, ela padeceria do vício da inconstitucionalidade formal (ou nomodinâmica), visto não ter atendido às exigências procedimentais determinadas pelo texto constitucional. Haveria, portanto, uma ilegalidade formal

[3] Nesse sentido é a orientação do Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai do seguinte julgado: “Ao individualizar a pena, o juiz sentenciante deverá obedecer e sopesar os critérios do art. 59, as circunstâncias agravantes e atenuantes e, por fim, as causas de aumento e diminuição de pena, para ao final impor ao condenado, de forma justa e fundamentada, a quantidade de pena que o fato está a merecer” (STJ, HC 48.122/SP; HC 2005/0156373-8, Rel.ª Min.ª Laurita Vaz, 5ª T., DJ 12/6/2006, p. 511). Finalizando, também ocorre a individualização na fase da execução penal, conforme determina o art. 5º da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), assim redigido: Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.

[4] Deve ser esclarecido que a primeira parte do inciso I do art. 118, segundo entendemos, não foi recepcionada pela nossa Constituição Federal. Isso porque o legislador constituinte, de forma expressa, consagrou em nosso Texto Maior o princípio da presunção de inocência, asseverando, em seu art. 5º, LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A título de exemplo, suponhamos que alguém esteja cumprindo sua pena em regime semiaberto e, durante a execução, venha a ser acusado de ter agredido um outro preso, causando-lhe lesões corporais. Segundo determina o inciso I do art. 118 da Lei de Execução Penal, tendo praticado, em tese, um fato definido como crime doloso, poderia, após a audiência de justificação prevista no § 2º do mesmo artigo, ver seu regime regredido, caso o juiz da execução não se convencesse de seus argumentos. Contudo, no caso de fato definido como crime, entendemos que a regressão ocorrerá somente quando houver uma decisão definitiva a respeito da infração penal levada a efeito pelo condenado. Nesse exemplo, embora tivesse ele realmente agredido outro preso, poderia tê-lo feito em legítima defesa, o que afastaria a ocorrência do crime.

[5] Uma das características mais gritantes do garantismo de Ferrajoli é a rigorosa separação entre o Direito (principalmente o Penal) e quais elementos éticos, morais e axiológicos. numa vã tentativa de produzir uma ciência pura ou purificada, o que torna a ciência normativa do Direito em algo indevidamente insípido, asséptico, incolor, inodoro e, principalmente inumano. Traduz-se em ser um positivismo maquiado, aplicando a letra da lei numa ortodoxia incompatível com o mundo contemporâneo.

[6] No processo comum, o ofendido é ouvido na audiência de instrução e julgamento. Segue com a inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nessa ordem, bem como com os esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado (artigo 400). No Plenário do Júri, prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.

No processo comum, quem faz as perguntas ao ofendido é o juiz. Acusação e defesa não fazem perguntas diretamente. Podem propô-las ao juiz, o qual, caso indeferir a formulação da pergunta, deverá fundamentar na ata. Chega-se a essa conclusão tendo em vista que, no processo comum, somente em relação às testemunhas há previsão expressa de que as partes façam perguntas diretamente (artigo 212). É analogia que se faz com o interrogatório, em que as perguntas das partes são propostas ao juiz (artigo 188), quem as formula, e porque esse dispositivo de número 201 não faz qualquer previsão sobre indagações das partes. Já no Plenário do Júri, as partes fazem as perguntas diretamente ao ofendido.

[7] O que chama de garantismo negativo, seria aquela que se preocupa somente com a restrição indevida da liberdade do cidadão. ... Não é garantismo defender um direito penal eficaz ou uma ação mais firme contra os delinquentes. Garantismo positivo nada tem a ver com garantismo propriamente dito.

[8] Convém citar os dez axiomas do garantismo penal desenvolvido por Ferrajoli, são estes: Nulla poena sine crimine; Nullum crimen sine lege; Nulla lex (poenalis) sine necessitate; nulla necssitas sine injuria; nulla actio sine culpa; nulla culpa sine judicio; nullum judicium sine accusatione;nulla accusatio sine probatione; nulla probatio sine defensione.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Positivismo Garantismo Penal Punitivismo Princípio do Devido Processo Legal CF CP CPP

Deixe o seu comentário. Participe!

colunas/gisele-leite/garantismo-penal-versus-realidade-brasileira

0 Comentários

Conheça os produtos da Jurid