Dimensões da Crise do Capitalismo Contemporâneo

O capitalismo contemporâneo é resultante de muitas transformações e também do processo dialético da legislação e da função do Estado no mundo globalizado. O capitalismo atual está associado à reestruturação produtiva, à globalização financeira e ao novo papel dos Estados.

Fonte: Gisele Leite

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Estabelecer uma reflexão sobre o significado da atual crise do capitalismo nos remete, primeiramente, a alguns aspectos teóricos da crise embasados em Marx[1]. Outro aspecto é o presente processo de globalização hegemônica e, ainda, analisar os elementos da particularidade brasileira.

Experimentamos atualmente a quarta onda de globalização[2]. Porém, a globalização não é processo unívoco, há a presença de dois processos de globalização simultâneos, a saber: o processo de globalização hegemônico e o processo de globalização contra-hegemônico.

O hegemônico relaciona-se à busca de hegemonia por parte do poder das corporações internacionais, dos países hegemônicos, principalmente, os EUA e seu pensamento neoliberal, com sua crença no mercado plenipotenciário e no indivíduo como ente fundamental da sociedade humana.

Já o processo contra-hegemônico busca alternativas ao poder hegemônico, criando debate e movimento internacional em prol da diversidade cultural, da defesa da ecologia, dos direitos humanos e garantias sociais, da democracia radical, dos direitos das mulheres e alguns chegam a desejar a transição para outra sociabilidade, como é o caso do movimento eco-socialista e de tantas outras organizações e coletivos de esquerda.

Afinal, a virada do milênio significa um momento de expressivas transformações composto da queda do Muro de Berlim[3], com a volta de Macau para China, e a imersão em um universo de transformações estruturais cujas origens remontam aos anos setenta.

Há, ainda, a “Crise do sistema” de Bretton Woods[4], do padrão de financiamento da acumulação de capital, da forma do capitalismo do pós-guerra. Eis que a crise da matriz produtiva baseada na segunda revolução industrial[5] e introdução de novas formas de produção da nova acumulação molecular digital.

A microeletrônica e a informática que trouxeram transformações tecnológicas, posto que incidem sobre o âmbito econômico e, progressivamente sobre o âmbito social. O que pode ganhar status de revolução tecnológica.

A crise atual do capital é a base do ideal neoliberal, quanto da busca de lucratividade pelos capitais globais. Os ideais neoliberais galgam a dimensão do ideal de globalização, na medida em que os capitais globais necessitam de flexibilidade, desregulamentação e destruição das amarras impostas pelos trabalhadores e seus sindicatos, a imposição de limites ao livre fluxo de capitais, a precarização[6] e superexposição e super exploração do trabalho humano.

A crise geral[7] como resultante da luta de classes e da  concorrência entre os capitalistas, acaba por impor novos padrões tecnológicos e novas formas de exploração que reinventam a tecnologia e as formas de produzir.

A busca inesperada por mais valia relativa e absoluta reinventa a geografia mundial e colocam a China como grande fábrica do mundo[8].  Enfim, o deslocamento da força de trabalho necessária ao capital, faz a Europa se enxergar envolta de rotunda crise estrutural.

O velho capital necessita preferencialmente de força de trabalho superexplorável, isto é, não lhe convém o Estado do Bem-Estar Social[9] incapaz de lhe garantir expressivos níveis de exploração.

Assim, o capital reinventa a geografia econômica ao deslocar-se prioritariamente para China dotada de monumental contingência populacional apta à superexploração e, a outros países do mundo, que apesar de secularmente engajados na acumulação de capitais, pelo menos desde o período mercantilista, são agora chamados pelos disciplinados economistas das agências de fomento e regulação pelos emergentes.

Por globalização entende-se pela reordenação capitalista que fora desenvolvida com medidas de política econômica como sendo reposta à crise estrutural capitalista da década de setenta.  A partir de 1978, a burguesia mundial conduzida pelos EUA e Reino Unido empreendeu em proveito próprio, com maiores e menores graus de sucesso, a modificação internacional, e a partir daí, no quadro de todos os países, das relações políticas entre as classes sociais. Deu-se o desmantelamento das instituições e estatutos que concretizavam o estado anterior das relações.

O termo “crise estrutural”[10], tal como usado por Smith, indica uma fraqueza na acumulação de capital devido à ação, agora decisiva, da lei tendencial da taxa de lucro decrescente.

 Segundo Murray Smith apud Prado, o capitalismo está evoluindo agora de uma forma precária em relação ao seu passado, mais bem sucedido. Afirma que esse modo de produção globalizado – e assim, os trabalhadores e os capitalistas em geral – sofrem das consequências de uma crise estrutural que tem três dimensões relacionadas entre si.

Há um aprofundamento da contradição entre o capital acumulado no passado e a sua lucratividade no presente; a produção de “mais-valor”, ou seja, a substância social que dá origem aos lucros, é insuficiente para remunerar de modo “satisfatório” o capital industrial e o capital financeiro, que se avolumaram sem cessar após a Segunda Guerra Mundial;

Persiste uma crise grave das relações internacionais entre as nações capitalistas: se, de um lado, as forças produtivas romperam os limites dos Estados nacionais; se se formaram cadeias de produção que agora englobam muitos países, por outro lado, a capacidade de solução dos problemas se concentra ainda nas próprias nações.

Há uma evidente “crise ecológica” que, decorre da contradição entre a civilização humana e as “condições naturais de produção”, isto é, entre o seu modo de apropriação da natureza e os fundamentos ecológicos da sustentabilidade das sociedades.

As políticas de liberalização, de desregulamentação e privatização[11] que o Estados capitalistas adotaram um após ao outro, desde o advento do governo Thatcher em 1979 e Reagan em 1980, o que devolveu ao capital a liberdade perdida desde 1914, para mover-se à vontade dentro do plano internacional, quer entre países e continentes.

A produção atual está subsumida à lógica do capital financeiro que conseguiu liberdade ampla de movimento global e trafega à velocidade da luz pelos chamados mercados. Mas, não reside aí o centro da mudança.

O capitalismo contemporâneo se pauta por um capital de imagens que torna sua marca principal comandada por uma digitalização e molecularização o que mudou radicalmente a linguagem e as referências do próprio cotidiano e, ainda permite uma forma de capital que atua como virtual, ou seja, capaz de extrair mais-valia no momento do uso da força do trabalho, sem os constrangimentos típicos da era industrial, que criaram a virtualidade da classe que, requer sempre sua própria autoinvenção. É a forma suprema do trabalho abstrato, afinal, lograda pelo sistema capitalista reinante.

De fato, o capital virtual, a mercadoria virtual, assim como também o próprio ambiente de trabalho, isto é, pode ser um serviço, um efeito útil, uma marca, uma imagem, cuja produção é simultânea à realização. É assim que o capital virtual renuncia à fábrica para a produção de valor.

Para Zygmunt Bauman uma das consequências da globalização é o surgimento de uma nova classe superior, rica e com mobilidade física e virtual. Os turistas que tanto viajam a trabalho como para mero desfrute e consumo de cultura; e de outro lado, o vagabundo que representa o pobre, que se desloca, mas é sempre indesejado. Tal fato ocorre impulsionado por mudanças nas tecnologias de informação e, suas consequências nas novas formas de ser do capital.

A localização forçada preserva a seletividade natural dos efeitos globalizantes. Amplamente notada e cada vez mais preocupante, a polarização do mundo e de sua população não  é  interferência  externa,  estranha,  perturbadora  aos  processos  de  globalização – é, portanto, efeito dele. Já  para  o  pensamento  social  crítico  de  Istvan  Mészáros,  o  atual processo de globalização capitalista aprofunda também as contradições próprias à relação social “capital”.

De acordo com Mészáros o capital necessita expandir-se apesar e em detrimento das condições necessárias para a vida humana, levando aos desastres ecológicos e ao desemprego crônico, isto é, à destruição das condições básicas para a reprodução do metabolismo social. [...] Um sistema de reprodução não  pode  se  autocondenar  mais  enfaticamente  do  que  quando  atinge  o  ponto  em  que  as  pessoas  se  tornam  supérfluas  ao  seu  modo  de  funcionamento.

A alienação dos meios de produção e do produzir é, simultaneamente, igualmente perversa metamorfose de tais meios de produção em capital. E, neste sentido, toda a maquinaria do atual estágio do capitalismo necessariamente serve mais aos propósitos destrutivos do que propriamente aos objetivos produtivos.

Além das guerras, registra-se também aumento na velocidade de obsolescência das mercadorias produzidas de modo que temos uma taxa decrescente de uso de todos os bens produzidos nunca dantes verificada na história.

Portanto, é preciso considerar que o atual processo histórico de acumulação de capital tem por resultante o aumento colossal da velocidade de rotação do capital, ou seja, o tempo em que o capital se transforma em mercadoria e, ao completar o ciclo, retorna às mãos dos capitalistas e investidores.

Isto é, enfim, a causa e efeito do aumento da velocidade de inovações tecnológicas e, um dos perversos aspectos de tal movimento é o fato da necessidade cada vez menor de trabalhadores no processo produtivo em razão de adoção de máquinas e automação nos processos mais eficientes para enfrentar a permanente concorrência e a luta de classes, e vai, transformando a classe trabalhadora, progressivamente, em classe supérflua, seja pela mera e simples extinção de cargos ou funções, seja pelo corte de custos, com a eliminação de postos de trabalho..

Paradoxalmente, significativa parte da população trabalhadora se vê transformada em supérfluo em relação às engrenagens supermodernas de uma sociedade de alta tecnologia em que o capital se transformou em imagem.

Em paralelo, o aumento da produtividade do trabalho e da rotação do capital que o acompanha, ao reduzir a taxa de utilização das mercadorias produzidas, seja pelo lançamento de novos produtos ou similares, seja pela planejada obsolescência dos mesmos, transforma crescentemente as mercadorias em dejetos ou entulho, provocando    desmensurado  aumento  da  destruição  ambiental  (KEMPF,  2009). 

Assim,  naturalmente  os  seres  humanos  são  vistos  como  “recursos  humanos”  ou  mão-de-obra,  e  a  natureza  como  “recursos  naturais”  inesgotáveis para um processo irracional de produção de massas crescentes de lucros para os acionistas das corporações.

Com natural desdobramento, as populações mais carentes e pobres são as mais afetadas, pois simultaneamente sofrem o impacto do aumento do desemprego estrutural e da devastação ambiental, com a proliferação de doenças, a favelização urbana, a falta d'água e de saneamento básico, além de crescimento das desigualdades sociais que atingem o mundo todo.

É possível inferir o surgimento de nova pobreza e a devastação ambiental são duas faces  da mesma moeda que representa o processo de produção destrutiva da nova fase do capitalismo globalizado e refletem um momento histórico de crise[12] civilizacional.

O Estado passa a ser pressuposto da acumulação de capital. E, o Estado neoliberal[13], diferentemente da retórica de seus seguidores, não é alijado do processo de acumulação do capital, ao revés, desempenha a função precípua como agente articulador entre o âmbito econômico sob seu domínio e o capital financeiro internacionalizado.

Atua como engrenagem na unificação transnacional dos esquemas de valorização financeira, ligando as frações do capital global internacionalizado ao capital local que garante sua base de sustentação política para garantir a reprodução ampliada.

Assim, convergem os interesses dos blocos de capital privado local[14], internacional e estatal, sempre garantidos pela notável capacidade mediadora do Estado.

O contemporâneo momento de crise do capitalismo deve ser compreendido dentro de sua dialética cíclica. Afinal, tais ciclos refletem a história da exploração do proletariado  e, utlimamente há o surgimento de bolhas. É o caso da bolha pelas empresas pontocom e, também há a bolha das hipotecas.

Cumpre ainda, perceber o caráter anárquico da produção capitalista, pois ao promover uma série de modifcações no setor produtivo, seja, introduzindo máquinas mais modernas e promovendo maior racionalização dos procedimentos, o capitalista emprega menos força de trabalho e, por consequência, extrai menos mais-valia, reduzindo seu lucro por unidade produzida. A redução do lucro por unidade é compensada pela elevação de quantidade de unidades produzidas que, ao final, pela elevação do volume de vendas, aumentando progressivamente o lucro total do investidor.

Infelizmente, o neoliberalismo não se monstra eficiente para resolver a atual crise do capitalismo. O neoliberalismo não passa do velho liberalismo revivido Friedman, confessadamente, reformulou as proposições clássicas para incorporar os conceitos macroeconômicos de inspiração keynesiana e os instrumentos econométricos que permitem rejeitar hipóteses improváveis.

O programa neoliberal se assemelha ao keynesiano, mas com evidente caráter antioperário e com muito maior alcance. O aumento do desemprego, que para o keynesiano é uma necessidade desagradável e, que por isso, deve ser tolerado apenas enquanto estritamente indispensável, torna-se para o neoliberal um objetivo estrutural.

Conforme leciona Paul Singer in litteris:

    “Por tudo isso, não tem sentido falar em uma “etapa neoliberal do capitalismo”. Na realidade, o neoliberalismo não passa de uma reação da classe capitalista ao impasse da estagflação. Esta resultou do descompasso entre o poder adquirido pela classe trabalhadora de impor aumentos de salários e a não responsabilidade dos trabalhadores pela condução das empresas e da economia. O pleno emprego dos anos dourados deu ao operariado poder de pressão por ganhos pecuniários, mas não lhe deu informações confiáveis sobre o real estado da economia e sobre a capacidade das empresas de absorver os custos decorrentes dos aumentos reivindicados”.

Referências

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Notas:

[1] Estas três formas históricas de organizar a produção de mercadorias, as quais subsistiram e evolveram no interior do modo de produção capitalista, foram caracterizadas pelo próprio Marx como formas historicamente determinadas por meio das quais se deu e, assim, se concretizou, o que ele mesmo denominou de subsunção do trabalho ao capital. Nessa perspectiva, para distingui-las, em O capital, ele associou à manufatura e à grande indústria, respectivamente, a materialização da subsunção meramente formal e da subsunção formal e real do trabalho ao capital. Com base em textos dos Grundrisse, é possível distinguir, então, duas formas algo distintas de subsunção real: uma primeira, material, que se consolidou na grande indústria propriamente dita e uma segunda, intelectual, que se concretizou na pós-grande indústria.

[2] Aquilo que é atualmente chamado de globalização vem de longe na história da era moderna. Como se sabe, trata-se de um processo que se iniciou por meio das “grandes navegações”, no século XV d.C. A globalização é um processo complexo cuja descrição cabal exige um escrito de centenas de páginas. Entretanto, pode-se apresentar o seu desenvolvimento mais recente sumariamente – ou seja, considerando apenas o último século e meio – por meio de um indicador da evolução do comércio internacional em nível mundial. Dispondo então da razão entre o volume de comércio internacional e o PIB global, ano a ano, para tal período secular, pode-se apresentar graficamente o movimento secular da globalização em suas altas e baixas em torno de uma tendência que parece ser sempre de crescimento.

Palley caracteriza essas três ondas, pela ordem, como vitoriana, keynesiana e neoliberal. As duas primeiras, segundo ele, devem ser vistas sob a lente tradicional da expansão do comércio mundial, mas a terceira, diferentemente, deve ser enxergada pela “lente da reconfiguração global da organização da produção”. Ora, como aqui se crê que mudanças históricas na produção capitalista de mercadorias encontram-se na base das três ondas assinaladas – e não apenas na última –, considera-se que a sua maneira de qualificar essas três vagas pode ser enganadora. É patente que, durante todo o período considerado, ocorreram sucessivas mudanças na própria “organização da produção” em nível nacional e global e que essas mudanças (a serem apresentadas) acabaram se refletindo de alguma maneira na superfície mais visível da economia como um todo, ou seja, no comércio mundial.

[3] A queda do Muro de Berlim foi um acontecimento marcante que ocorreu em novembro de 1989, deu início à reunificação da Alemanha e evidenciou o fracasso do bloco comunista. A queda do muro também foi parte do processo de queda do bloco comunista na Europa Oriental, que se iniciou a partir do final da década de 1980. O Muro de Berlim foi um produto da Guerra Fria e foi exatamente pelo enfraquecimento desse conflito político e ideológico que ele ruiu. Sua construção foi uma consequência da divisão da Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial. Derrotada, a Alemanha foi ocupada por tropas de quatro países: França, Reino Unidos, EUA e URSS. Essa ocupação foi determinante para o futuro alemão, uma vez que as zonas ocupadas por franceses, britânicos e norte-americanos ficaram sob influência capitalista e a parte ocupada pelos soviéticos ficou sob influência socialista. Isso fez com que a Alemanha fosse dividida em duas nações (o que também aconteceu com o Vietnã e a Coreia). A queda do Muro de Berlim relaciona-se com a desintegração do bloco de nações socialistas no leste europeu. A década de 1980 foi uma década de crise para o bloco socialista em geral e a situação não foi diferente para a Alemanha Oriental. O grande foco da crise era a economia ruim do país e a situação de vida dura da grande maioria da população. Na década de 1980, a situação econômica da Alemanha Oriental era muito ruim, mas para mascarar a situação, o governante do país, Erich Honecker, fornecia subsídios que mantinha aquecido o consumo da população. O quadro da Alemanha Oriental agravava-se com o fato de que o governo desse país recusava-se a realizar reformas estruturais que eram necessárias.

[4] O Acordo de Bretton Woods durou até 15 de agosto de 1971, quando os Estados Unidos, unilateralmente, acabaram com a convertibilidade do dólar em ouro, o que efetivamente levou o sistema de Bretton Woods ao colapso e tornou o dólar uma moeda fiduciária. Essa decisão, referida como choque Nixon (Nixon Shock), criou uma situação em que o dólar americano se tornou moeda de reserva, usada por muitos Estados. Ao mesmo tempo, outras moedas, que até então eram fixas (como a libra esterlina, por exemplo), passaram a ser flutuantes.

[5] A Segunda Revolução Industrial foi a continuação do processo de revolução na indústria, por meio da melhoria de técnicas, da criação de máquinas e de novos meios de produção. Sendo assim, não se pode considerar que houve rupturas ao longo da Revolução Industrial, mas sim o alcance de novos níveis de industrialização. A Segunda Revolução Industrial iniciou-se na segunda metade do século XIX (c. 1850 - 1870), e terminou durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), envolvendo uma série de desenvolvimentos dentro da indústria química, elétrica, de petróleo e de aço.

[6] No  âmbito  das  relações  e  dos  processos  de  trabalho,  ocorrem  mudanças substantivas – seja através da reedição de antigas formas de exploração, como o salário por  peça,  o  trabalho  em  domicílio  etc.,  transformando,  entre  outros,  os  espaços domésticos  não  mercantis  em  espaços  produtivos  por  força  das  terceirizações;  seja instituindo novos processos de trabalho que externalizam e desterritorializam parte do ciclo produtivo, instaurando novas formas de cooperação, onde se incluem e se ajustam, num  mesmo  processo  de  trabalho,  atividades  envolvendo  altas  tecnologias, superespecialização e precarização.

[7] Na realidade, há várias “crises” que se entrelaçam no interior daquela que está sendo considerada a mais grave crise da história moderna. Brie (2010)discorre sobre cinco crises: de sobre acumulação, de reprodução ecológica, de integração social, de legitimação do sistema político ou da democracia representativa e crise de segurança, com a crescente violência derivada das tensões intra e inter Estados nacionais, a nova espiral armamentista, a criminalização e a prisão dos trabalhadores e a “guerra contra o terror”, no caso dos EUA. Ao crack de 1929, o governo americano respondeu com o New Deal. Após1945, erigiu-se o Estado de Bem Estar Social, sob forte influência do paradigma keynesiano na formulação de políticas públicas anticíclicas, de modo a soerguer as economias capitalistas combalidas do pós-guerra. A partir dos anos 1980, prevaleceu o receituário neoliberal para o ajuste estrutural e a revitalização da economia capitalista em escala global. Osanos 1990/2000 assistiram a sucessivas crises financeiras: – a mexicana(1995), a asiática (1997), a russa (1998), a brasileira (1999), a argentina(2001) e a crise americana do subprime (2008). BRIE, M. (2010). Saídas para a crise do neoliberalismo. In: BRAND, ULRICH e SEKLER, N. (org.). Diante da crise global. Horizontes do pós-neoliberalismo. Riode Janeiro, EdUERJ.

[8] "China é o quarto maior cliente do Brasil". É esta manchete do jornal Gazeta Mercantil, do dia 14 de março deste ano, chamou a atenção dos empresários brasileiros. Em dois anos, a China saltou da 15a. posição para a 4a. entre os principais parceiros comerciais do Brasil. Em 2002, o total das exportações brasileiras para o "grande dragão" somou US$ 2,5 bilhões e, somente em janeiro deste ano, as vendas cresceram 100% em relação ao mesmo mês do ano passado. Entre os principais itens exportados à China estão: a soja (representando um faturamento anual de US$ 830 milhões), minério de ferro (US$ 600 milhões), produtos siderúrgicos (US$ 130 milhões), celulose (US$ 115 milhões) e carros (que registraram aumento de 121% no mês de janeiro de 2003 sobre o mesmo período de 2002, gerando receita de US$ 3,4 milhões). Novos itens prometem entrar na pauta das importações brasileiras para a China como a carne de frango, a carne suína e a carne bovina. Para isso, um grupo de 14 frigoríficos nacionais deverá realizar o primeiro embarque direto àquele país. O negócio, estimado em US$ 1 milhão, será a primeira investida das carnes brasileiras num mercado de 1,3 bilhão de consumidores.

[9] O Estado do Bem-estar também é conhecido por sua denominação em inglês, Welfare State. Os termos servem basicamente para designar o Estado assistencial que garante padrões mínimos de educação, saúde, habitação, renda e seguridade social a todos os cidadãos. O Estado de bem-estar social começou a ser implementado no Brasil durante a Era Vargas(1930-1945), com a criação da Consolidação das Leis Trabalhistas, a estatização do refino de petróleo e investimentos em obras públicas. Após isso, durante as décadas de 70 e 80 houveram mais investimentos na área social, além da promulgação da Constituição Federal de 1988, que foi construída com a ajuda da população e assegurou todas as políticas assistenciais criadas. A década de 90 foi um marco para a história da saúde pública no Brasil, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, foram criados outros benefícios, como o Bolsa Escola e o auxílio-gás. O Estado de bem-estar social é considerado o oposto do Estado Liberal.  Isto porque, enquanto no bem-estar social o Estado é ativo e fornece bens e serviços gratuitamente à população, legislando sobre as relações de trabalho, no Estado liberal ela se isenta das relações entre mercado e consumidor, não oferecendo serviços, nem legislando sobre as relações patrão-empregado.

[10] Por exemplo, Istvan Mészáros, em A crise estrutural do capital (Boitempo, 2011), usa esse termo para anunciar a vinda de um período catastrófico na história: “A crise estrutural do sistema do capital como um todo – a qual estamos experimentando (…) – está destinada a piorar consideravelmente. Vai se tornar a certa altura muito mais profunda; ela vai invadir não apenas o mundo das finanças globais (…), mas também todos os domínios da vida social, econômica e cultural” (op. cit., p. 17). Como se sabe, o termo “crise” designa um evento que gera uma situação instável e perigosa no curso da vida de um indivíduo, grupo, comunidade ou de uma sociedade como um todo. As crises constituem-se em geral de mudanças abruptas que interrompem, contrariam e mudam o andamento normal dos acontecimentos num dado momento histórico.

[11] A privatização do público consiste, em efeito, uma ideologia ou uma “experiência subjetiva de desnecessidade, aparente, do público”. No Brasil, essa ideologia propaga-se, como vimos ao longo do desenvolvimento deste texto, sobretudo por meio da crise do Estado e do mecanismo da dívida pública interna. Frente a esses processos de crises, os apologistas neoliberais difundiram a acepção de que o Estado se constitui uma gente subordinado aos monopólios empresariais, apenas podendo ser compreendido como uma extensão do privado. Ou seja, divulgaram a falsa ideia da superioridade do privado em relação ao público, desqualificando, assim, o imprescindível papel assumido pelo Estado no processo de desenvolvimento socioeconômico. OLIVEIRA, Francisco. Neoliberalismo à brasileira. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo(Orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 24-28.______. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política. In: OLIVEIRA, F.& PAOLI, Mª Célia (Orgs.) Os sentidos da democracia: políticas de dissenso e hegemonia global. 2ª ed. Petrópolis; RJ: Vozes, Brasília: NEDIC, 1999, p. 55-81.______. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

[12] No âmbito do sistema capitalista e da sua economia‐mundo, instala‐se muito mais do que uma crise econômica: estão postas as condições de uma crise orgânica, marcada pela perda dos referenciais erigidos sob o paradigma do fordismo, do keynesianismo, do Welfare State e das grandes estruturas sindicais e partidárias. Se, a tais condições se soma o exaurimento do “socialismo real”, vê‐se como foi possível afetar a combatividade do movimento operário, imprimindo, a partir de então, um caráter muito mais defensivo do que ofensivo às suas lutas sociais.

[13] Neoliberalismo é uma doutrina econômica e política que surgiu no século XX com base em teorias formuladas por teóricos, como o economista ucraniano Ludwig von Mises e o economista austríaco Friedrich Hayek. A teoria neoliberal surge para opor-se à teoria keynesiana de bem-estar social e propõe uma nova leitura da parte econômica do liberalismo clássico, tendo como base uma visão econômica conservadora que pretende diminuir ao máximo a participação do Estado na economia. Um esboço do plano neoliberal deu-se com as 10 (dez) regras do Consenso de Washington, que propôs uma cartilha básica que as economias neoliberais (em especial as economias em desenvolvimento que quisessem aderir à ajuda oferecida pelo FMI e pelo Banco Mundial) deveriam seguir. Veja a seguir as 10 regras do Consenso de Washington que delineiam as características do neoliberalismo. Disciplina fiscal: o estabelecimento de um teto de gastos públicos, o que, na prática, reduz ou limita os gastos com serviços básicos. Redução dos gastos públicos: deve contar com a disciplina fiscal e com outras medidas, como a privatização dos serviços públicos. Reforma tributária: reformular o modo de cobrar-se impostos. Em geral, o que o Consenso de Washington defende é a menor taxação de impostos possível. Juros de mercado: controlar os juros para que a inflação não cresça. Câmbio de mercado: operar trocas de mercado no mundo realizando importações e exportações de produto. Isso pode ser, em alguns casos, ruim para a economia local e para os pequenos e médios empresários. Abertura comercial: liberar o comércio com outros países não colocando entraves ideológicos ou políticos que dificultem as relações comerciais exteriores. Investimento estrangeiro direto: abrir filiais de empresas estrangeiras no país em desenvolvimento. Privatização de empresas estatais: privatizar todos os serviços que forem possíveis de privatização, ou seja, entregá-los à iniciativa privada. No Brasil, tivemos experiências de privatização escandalosas no governo de Fernando Henrique Cardoso, porque nele as nossas empresas estatais foram vendidas a preços muito baixos. Desregulamentação (flexibilização de leis econômicas e trabalhistas): flexibilização das leis que regulamentam a economia, o que significa diminuição da participação do Estado na economia, e das leis trabalhistas, o que significa menos direitos para os trabalhadores. Direito à propriedade intelectual: garantir aos autores de uma obra intelectual, científica, filosófica ou artística o direito de receber pela reprodução daquela obra.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Capitalismo Globalização Neoliberalismo Estado Crise do Capitalismo

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