Democracia, direitos humanos e justiça

Marx entendia que os principais problemas sociais, tais como ausência de liberdade, miséria e injustiça poderiam ser resolvidos pelo Estado. E, partiu da caracterização de que a sociedade civil era a esfera das atividades e dos interesses pessoais e corporativos, enquanto o Estado era visto como a sede das atividades e interesses humanos universais. O conceito de democracia, direitos humanos e justiça se integram para propor o bom funcionamento do Estado e prover o respeito e a preservação da dignidade humana. A verdadeira democracia propõe a superação das desigualdades sociais, mediante a livre associação de homens igualmente livres.

Fonte: Gisele Leite

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O texto de Karl Marx que critica a concepção liberal sobre o direito vem refletir a tensão existente entre as justiças formal e concreta (material). Lembrando que se reputa justo o ato quando resulta da aplicação de certa regra.

Esquece-se convenientemente que quem determina as leis, não questiona os valores que estão na base dos critérios que as definiram. Prevalece a noção de que entre o formal e o concreto, sai vitoriosa a cultura que reparte os homens em superiores e inferiores e promove a naturalização da desigualdade.

Ainda em tempos contemporâneos, não obstante o triunfo da tecnologia de informação e comunicação, apesar dos progressos da genética e da medicina, ainda, vige a noção primitiva de justiça que é “dar a cada um, o que é seu” ou “a cada qual segundo sua posição” o que representa a base social para naturalização, o consentimento e a legitimação das próprias desigualdades e misérias, que se faz presente e reproduzida por tradição nas relações sociais.

Não é tarefa fácil desvendar das raízes da desigualdade, conhecer os elementos de sua dinâmica e estrutura. Está contida na noção de justiça a legitimação ou não de desigualdade, podendo ser questionado o que é justo na relação entre homens.

Afinal, qual o critério de valor, então para a definição da justiça?

Há questões relevantes por se tratar de um conjunto de contradições próprias do desenvolvimento da sociedade capitalista relacionando-se com as expressões da “questão social” e vinculando-se diretamente com os mecanismos sociopolíticos e institucionais requeridos para seu enfrentamento.

Estes mecanismos são acionados na esfera pública, pela ação do Estado ou por iniciativas da sociedade civil e os profissionais como o advogado, professor e assistente social atuam na tensão entre as necessidades do capital e a do trabalho, nas contradições geradas pelo modo desigual no processo de produção e distribuição.

A decisão de um certo corpo social sobre o modo de produção e distribuição se constitui com base na escolha de incrementar, a igualdade[1] ou desigualdade, ipso facto, o que é justo ou injusto numa sociedade e intervém em situações reveladoras das profundas desigualdades, constitutivas do próprio modo de produção capitalista, situações essas que, pela resistência e luta dos explorados, o capital é obrigado a dar respostas, administrando suas sequelas, não por ser sensível à pauperização, mas para manter sua dominação de classe.

Portanto, é fundamental para o sujeito desenvolver a capacidade de decodificar criticamente a realidade objetiva, sendo a percepção sobre justiça um elo fundamental.

Toda concepção marxista sobre justiça e direitos humanos está contida no debate sobre igualdade. Trata-se, pois, para apreender seus rebatimentos e determinações e de responder ao problema acerca de qual sentimento de igualdade numa sociedade desigual.

Sem dúvida, para tratarmos de desigualdades nas sociedades capitalistas, precisa-se ter um conceito de partida de igualdade e desigualdade.

O conceito de igualdade está pautado na tradição da filosofia ocidental, herdada da clássica concepção de Aristóteles, na qual, a justiça como virtude que representa um meio termo entre dois extremos, o equilíbrio entre dois vícios como a escassez e o excesso, pois, afinal “se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais”. (Aristóteles, Ética de Nicômaco, São Paulo: EMC, 2002).

A tradição aristotélica que fora recepcionada por Karl Marx, na qual, os iguais devem ser tratados igualmente e, os desiguais desigualmente com a finalidade de diminuir e não aprofundar as desigualdades.

No processo de desenvolvimento social, inclusive na edificação do socialismo conforme alertou Marx na “Crítica ao Programa de Gotha”, a nova sociedade nascida das entranhas do capitalismo (o socialismo de primeira fase) que apresenta ainda em todos os seus aspectos, no econômico, no moral, no intelectual, o selo da velha sociedade de cujas entranhas procede.

E, sobre essa etapa, o próprio Marx admitia algumas desigualdades, as quais não apenas são reconhecidas como devem ser defendidas.

Num primeiro momento o lema “a cada um segundo seu trabalho” já a consigna “a cada um segundo sua necessidade” é o princípio do que Marx chamou de socialismo superior.

No socialismo superior quando houver desaparecido subordinação escravizadora de indivíduos à divisão do trabalho e, com ela,  o contraste entre trabalho intelectual e o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vida, mas a primeira necessidade vital; quando com o desenvolvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem as fontes da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar-se totalmente o estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades.

A cada necessidade pressupõe o reconhecimento de determinadas desigualdades por parte de Marx que geral necessidades diferentes.

Afinal, o que justificativa a luta pela igualdade? Porém, não se trata de desigualdade de burguesias, nem de poder, mas de uma desigualdade resultantes de que se pode chamar de diferenças impostas pela natureza.

Rousseau[2] em sua obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” a existência de dois tipos de desigualdade: uma que ele chamava de desigualdade natural, está relacionada com as capacidades e talentos e outra a qual chamava de desigualdade moral (o que seria, no fundo, imoral) a qual era associada às diferenças econômico-sociais, jurídicas e institucionais.

As desigualdades naturais, portanto, sempre irão existir, em qualquer sociedade, mesmo numa sociedade de socialismo avançado, e mesmo no comunismo, não deixará de existir velhos, jovens, crianças, pessoas deficientes e que, portanto, pessoas que receberão não conforme seu trabalho, mas conforme suas necessidades, porque se supõe que, nessa sociedade superior, o desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas, seja tal, que se cria um fundo social de reserva em quantidade tão grande que permita dar conta dessas despesas sem com isso eles (idosos, doentes mentais, entre outros) serem considerados parasitas, pois são desigualdades intrínsecas da natureza humana.

Até mesmo os que estão em condições de trabalhar, há desigualdades, pois uns possuem maiores habilidades e, outros menores, bem como há diferentes condições de saúde, de força do corpo, entre outras, são desigualdades que precisam ser consideradas e respeitadas.

Mas, existem aquelas desigualdades sociais constituídas e consentidas pelos próprios homens e, conforme Rousseau assinalou, se os que mandavam valem mais do que os que obedecem.

Para Rousseau, as leis são criadas pelo homem e para o homem. Somente por conveniência, afirmam que poucos na sociedade desenvolvem as “luzes” que permitem sua compreensão.

E, assim, já afirmaram uma desigualdade natural entre os “superiores”, os que conseguem acessar o conhecimento e os “inferiores”, os que conseguem acessar o conhecimento e os “inferiores”, aqueles que são incapazes de compreender as leis, apenas precisam cumprir.

Para Antônio Gramsci tal questão resta esclarecida pois todos os homens são filósofos, em graus diferentes e que os obstáculos que se põem à condição de filósofo no verdadeiro sentido da palavra, a saber, que são religião e o senso comum.

A distinção entre intelectuais e não-intelectuais refere-se tão-somente à imediata função social da categoria profissional dos intelectuais. Em resumo, todo homem fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, um filósofo, um artista, um historiador, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção de mundo, ou seja, para promover novas maneiras de pensar.

Portanto, todos os homens são capazes de compreender as leis, não precisam apenas cumprir. Quem detém o poder ou riqueza afirma essa “superioridade” no sentido intelectual de ser capaz de conseguir acessar o conhecimento, como sendo uma coisa natural, convence, persuade porque tira vantagem do próprio discurso de justificação do seu poderia e de seu lugar social.

As posições e os papéis de cada um, vão se perpetuando e exteriorizando-se no poder, no Estado, nas instituições, legitimando a desigualdade e interferindo na concretização dos direitos sociais e dos direitos humanos.

A luta pela igualdade, portanto, é no sentido de eliminar as desigualdades constituídas e consentidas socialmente, não significando negar que, em sendo cada ser humano peculiar, suas diferenças serão reconhecidas sempre visando suprir a desigualdade.

Daí, a condenação a uma convivência aceitável, harmônica e pacífica entre “superiores” e “inferiores”, patrões e empregados, exploradores e explorados, burgueses e proletários, pois são essas desigualdades que determinam a chamada questão social, a discriminação e o racismo.

Na peça de Shakespeare, “O mercador de Veneza”, a qual, mesmo um representante do que viria ser no futuro o capital bancário, o judeu rico Shylock, reconhece a igualdade no que se refere ao ser humano em si, numa situação em que é questionado dos motivos de sua vingança a um cristão.

SHYLOCK – (...) Ele me deixou mal, me humilhou (...) E tudo por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos?

Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. (...) Hei de pôr em prática a maldade que me ensinastes (...). (SHAKESPEARE, 2007, p. 73).

Ainda na mesma peça, Shakespeare denunciou a posse de um humano sobre os outros, descrevendo a desigualdade na relação com os escravos, mesmo na fala do mesmo personagem.

In litteris:

SHYLOCK – Que castigo tenho a temer, se mal algum eu faço? Possuís muitos escravos, que como asnos, cães e mulos tratais, e que em serviços empregais vis e abjetos, sob a escusa de os haverdes comprado. Já vos disse que os pusésseis, acaso, em liberdade? Que com vossas herdeiras os casásseis? Por que suam sob fardos, que lhe désseis leitos iguais aos vossos? E iguarias que como ao vosso paladar soubessem?

Em resposta, decerto, me direis: “os escravos são meus”. De igual modo vos direi em resposta, que essa libra de carne, que hora exijo, foi comprada muito caro; pertence-me; hei de tê-la. Se esse direito me negardes fora com vossas leis! São fracos os decretos de Veneza. E ora aguardo o julgamento. Respondei-me: dar-me-eis o meu direito? (Idem, p. 100-101).

Apesar de o judeu denunciar a desigualdade humana, a queixa se transforma numa vontade de ter iguais direitos, o que chama a atenção quando os valores do grupo social são questionados na mesma lógica, mudam-se apenas os personagens, mantendo-se os papeis, os mesmos valores impregnados nas ações.

Os sujeitos querem deixar de serem escravos para se tornarem senhores, ou seja, desejam, no máximo. um dia poder estar no papel de superior, deixando assim de se sentirem oprimidos, mas, por consequência, fazendo outros se sentirem oprimidos, perpetuando-se a desigualdade, apenas trocando de lugar os personagens.

Em sua teoria Marx reconheceu dois tipos de igualdade, a saber: um que se pauta no princípio "de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo o trabalho realizado". O outro se baseia no princípio de "cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades" (Marx, 1977). Observa-se que, nos dois tipos de igualdade, ele considerou "de cada qual segundo sua capacidade", ou seja, em qualquer sociedade, é justo que se exija de cada um conforme sua capacidade.

No entanto, esse princípio só se realiza na sociedade pós-revolucionária, saindo dos marcos da sociedade capitalista, seja no socialismo, ou em sua fase mais avançada que é o comunismo.

E apesar de considerar uma sensível evolução a revolução burguesa[3], na medida em que rompe com o feudalismo no qual uns trabalhavam e outros não, a exemplo da aristocracia, o trabalho não é exigido de cada qual segundo sua capacidade, mesmo que o espírito do capitalismo seja de que todos trabalhem, até os empresários, e trabalhem muito para desenvolver a riqueza, ocorre o fato de que muitos com capacidade não trabalham por viverem do trabalho explorado dos outros e, ainda, muitos com capacidade de trabalhar não o fazem por falta de emprego resultante de mão de obra como manobra de baixar o preço do trabalho pago.

Dessa forma, os dois tipos de igualdade, só poderão se concretizar numa sociedade alternativa ao capitalismo, com a eliminação de todos os critérios pelos quais a produção e a distribuição têm sido feitas, ou seja, quando estes critérios atuais da sociedade burguesa forem considerados ilegítimos e injustos. E, nesse raciocínio, então, fica claro o entendimento de Marx sobre justiça.

A igualdade é mediada pelas concepções de justiça em disputa na sociedade. Em sua obra "Crítica ao Programa de Gotha", Marx afirmou que as relações jurídicas surgem das relações econômicas e demonstra como, ao se permitir numa sociedade, que uns se tornem donos das condições materiais de trabalho, o sentido de justiça admite também que o homem seja escravo de outros homens, na medida em que um só possui sua própria força de trabalho e depende totalmente dos outros homens que detêm os meios de produção.

O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte, o trabalho é a manifestação de uma força natural, da força de trabalho do homem que é efetuado com os correspondentes objetos e instrumentos. Na medida em que o homem se situa de antemão como proprietário

diante da natureza, primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, e a trata como possessão sua, seu trabalho converte-se em fonte de valores de uso, e, portanto, em fonte de riqueza.

Os burgueses têm razões muito fundadas para atribuir ao trabalho uma força criadora sobrenatural; pois precisamente do fato de que o trabalho está condicionado pela natureza deduz-se que o homem que não dispõe de outra propriedade senão sua força de trabalho, tem que ser necessariamente, em qualquer estado social e de civilização, escravo de outros homens, daqueles que se tornaram donos das condições materiais de trabalho.

E não poderá trabalhar, nem, por conseguinte, viver, a não ser com a sua permissão. (Marx, 1977).

No modo de produção capitalista, as condições materiais de produção são entregues aos que não trabalham sob forma de propriedade do capital e propriedade do solo, enquanto a massa é proprietária apenas da (...) força de trabalho.

A distribuição depende, e, é consequência do modo de produção. Porém, mesmo numa sociedade que supere o capitalismo, na qual os meios de produção sejam coletivizados, o princípio de distribuição ainda não pode ser igual numa primeira fase, que se configura no socialismo, ao da sua etapa mais avançada que é o comunismo. E, num primeiro momento, a distribuição é feita a cada qual segundo o trabalho realizado.

Este direito igual continua trazendo implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que prestou; a igualdade, aqui consiste em que é medida pelo mesmo critério: pelo trabalho.

Esse primeiro tipo de distribuição, não equivale ainda a uma igualdade plena, totalmente justa, que seria o tratamento igual, porque, se cada um só recebe pelo trabalho realizado, como ficam os que não têm a mesma capacidade?

A capacidade e o talento de cada um são muito diversos, além disso, podem ser inatos, ou seja, naturais, de cada indivíduo como as diferenças no aspecto da força física, idade, saúde etc., depende também das condições ambientais, das situações familiares, e, nestas situações, a capacidade de trabalho diminui ou inexiste, como é o caso das crianças, dos idosos, dos doentes físicos ou mentais, entre outros.

Sendo assim, capacidade distinta implica em potenciais e limites distintos por consequência, menos capacidade de trabalho, menos recebe. E, é assim que ocorre no primeiro tipo de igualdade.

Outro aspecto é a consciência. Nessa primeira fase, trata-se de corresponder a uma etapa do desenvolvimento da consciência individual e coletiva.

Os marxistas tratam o problema das desigualdades vendo-as como um problema crônico do capitalismo, um problema que ainda é inevitável numa sociedade socialista.

Na mesma crítica, Marx chamou, de socialismo inferior ou de primeira fase, inferior no sentido de etapa do socialismo, um socialismo ainda inicial, logo após a revolução, portanto, um socialismo que ainda herda algumas mazelas da sociedade da qual ele se originou.

Qual característica teria essa ideia de igualdade e desigualdade nesse socialismo inferior? A principal é o princípio de distribuição que ainda é feito com base no trabalho, primeiro no sentido de reeducação das pessoas, para elas terem estímulo para o trabalho e descobrir as virtudes emancipatórias do trabalho realmente livre, isto é, uma ambiência social na qual o trabalho não seja uma mercadoria, o que requer uma sociedade de produtores.

É de se notar que, no socialismo de primeira fase, não se pode cogitar ainda numa construção plena da justiça, na medida em que as pessoas que vão construir esse socialismo ainda trazem a ideologia, a consciência de outra sociedade, e por isso que há luta de classe do socialismo de primeira fase, porque ainda haverá aqueles resquícios da sociabilidade burguesa pelos quais algumas pessoas ainda vão, o preguiçoso, por exemplo, encostarem aos mais eficientes, o que não tem uma consciência política mais elevada para o trabalho social vai render menos, o que aponta para a questão, mesmo no socialismo, da luta de classes.

Então, nessa primeira fase, a distribuição não é, ainda, uma distribuição igual para todos. É uma distribuição conforme o trabalho, portanto, uma distribuição que, eventualmente, como já se viu pela experiência de construção do capitalismo em alguns países, ainda tem estímulo ao trabalho, a chamada emulação e, ainda, tem que se travar uma luta política[4] e ideológica em relação aos que resistem à nova sociedade, o que pode implicar em algum nível de coerção para que eles se integrem ao esforço social.

A intensificação desse nível de coerção, evidentemente, não é algo abstrato, é algo que depende da resistência desses setores ao avanço da luta de classes e de uma série de outros fatores e que é feito em cada país de acordo com sua realidade.

Nessa primeira fase instaura-se um princípio de distribuição que não equivale ainda a uma igualdade plena, que seria um tratamento absolutamente igual. Note-se que já há, nessa nova sociabilidade, do socialismo de primeira fase, uma diferença substancial em relação à igualdade capitalista, a qual é – ela mesma - uma igualdade abstrata na medida em que formalmente aplicada a todos os indivíduos, resulta, na prática, deles recebem um tratamento desigual materialmente cogitando.

O outro tipo de igualdade, em etapa mais avançada da sociabilidade humana, é aquela que se baseia no princípio de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades, que corresponde à fase superior do socialismo, pois o direito não pode ser nunca superior à estrutura econômica nem ao desenvolvimento cultural da sociedade por ela condicionado.

Na fase superior da sociedade comunista, quando com o desenvolvimento dos indivíduos em todos seus aspectos, crescerem também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva a sociedade poderá inscrever em suas bandeiras: De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo as suas necessidades.

Somente no comunismo é possível um tratamento igual aos seres humanos com todas suas necessidades forçosamente desiguais, porque a individualidade será sempre singular e uma socialização superior não nega ao indivíduo e, sim o individualismo.

É fundamental fortalecer o indivíduo até porque, numa lógica de indivíduo fracos não se pode esperar a construção de coletivos fortes. E, essa etapa do desenvolvimento só pode ser possível a partir de uma elevação enorme das forças produtivas, um avanço nas relações de produção a tal ponto que seja possível criar um fundo social e econômico, que permita que essas desigualdades sejam eliminadas.

As classes exploradoras e o individualismo, em uma sociedade de socialismo superior, ou serão eliminados ou serão tidos como resquícios primitivos de um período de barbárie, pelo que o pré-requisito de tal sociedade será a eliminação desses resquícios, porque a base de sua existência que era a propriedade privada, o controle privado dos meios de produção deixou de existir, embora até hoje, não se conheça nenhuma sociedade de nível absolutamente superior, ou seja, uma sociedade comunista, porque isso pressupõe uma transformação mais geral também do mundo.

Nessa sociedade superior, então, se espera que o desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas seja tal, que se passa a ter um fundo de reserva público suficiente para dar conta das crianças, velhos e dos doentes, sem com isso, eles sejam considerados parasitas do esforço social.

Uma sociedade que assegure os meios de vida adequados a todos implica também na superação do desejo egoísta universal de possuir cada vez mais, na ultrapassagem da hierarquização de poder prestígio, na perspectiva de motivação para valores não somente materiais e na plena garantia, a todos, de atividades satisfatórias e relações sociais que respaldem concretamente tais atividades e meios de vida. Isso seria o que se pode chamar de viver sob um modelo material e formalmente justo.

Portanto, fica explícito para Marx, a justiça equivale as condições concretas de igualdade humana, passando não apenas pelas garantias formais de igualdades, essas, necessárias, mas não suficientes, mas concomitantemente, garantindo sua plena concretização, pela via de plenitude dos direitos sociais e humanos. Nesse sentido, que Marx criticou a concepção liberal sobre o direito, refletida na tensão entre justiças formal e concreta.

Cumpre ainda esclarecer a distinção existente entre justiça formal e justiça material. Quando se trata da primeira, é de se notar que esta é puramente procedimento (que é forma), ou seja, há regras que garantem a possibilidade de se demandar por um dado direito, mas não significando isso, ainda que o indivíduo tenha o direito àquele direito, que o mesmo venha a ser implementado.

Essa distinção, que permeia e, é especial a toda a tradição liberal, sempre buscou nublar, que a efetivação de uma dada garantia implica em dotar a mesma de seu elemento material. Por conta disso, muitas conquistas no plano social, por vezes, não saem do papel.

Marx criticou a concepção liberal sobre o direito, criticou a lei que castigava a coleta de lenha (uma prática consuetudinária), qualificando-a como fruto. Nesse escrito, publicado pela Gazeta Renana, em 1842, ele aponta para tensão permanente entre forma e conteúdo, no exame dos direitos, ao tratar da distinção entre se apossar de coisa de ninguém e roubar ou furtar.

Adiante, Marx apontou acerca das relações entre forma e conteúdo que, por exemplo, a imparcialidade é só a forma, nunca o conteúdo do direito. E que, se o processo for nada mais que forma carente de conteúdo, tais formalidades careceriam de valor visto que toda forma é sempre o molde de um determinado conteúdo.

Além da não efetivação do que já está formalizado, ainda se pode questionar dizer-se que um ato é justo quando resulta da aplicação de certa regra. Mas, quando se pode dizer que esta é justa? Tal raciocínio abstrai quem determina as leis e não questiona os valores que estão na base dos critérios que as definem.

Sobre esse prisma, Rawls[5] tentou definir o princípio de justiça elaborado por pessoas que estão sob "véu da ignorância”, não sabendo qual a posição ocupará após sua escolha, na sociedade. Todavia, pressupõe que nesta sociedade haja posições desiguais que serão ocupadas pelos que elegeram os princípios de justiça de uma forma autônoma.

Com este artifício, Rawls se distancia de uma visão realista e fundamenta sua teoria sobre a base de uma concepção abstrata de homem desvinculado da vida concreta, do concreto sociopolítico cultural e econômico das suas relações de classe e dos vínculos comunitários e familiares. Pode-se dizer, antes de tudo, que esta concepção de homem abstrato e a-histórico vai de encontro a suas pretensões de consideração da pessoa moral como pessoa racional, já que na sua concepção, a capacidade de planejar a própria vida vai acontecer sem o referimento à realidade.

(...) o critério daquilo que é justo vem definido no tratamento das desigualdades (...) de caráter essencialmente procedimental do tipo de justiça de que fala Rawls. A postura adotada se distancia de uma interpretação das desigualdades como fenômeno social e histórico, enraizado na questão social, que é a tese central do Estado social.

Assim, a justiça social não se põe como resposta aos problemas da questão social, e toda sua teorização se distancia de qualquer referimento às determinações socio político-econômicas das desigualdades.

O que importa para Rawls é a igual cidadania e por isso a discussão se concentra nas formas legislativas e constitucionais que garantem o direito.

A defesa da propriedade privada está no centro da tese de Rawls, que afirma no prefácio de “Uma teoria da Justiça” à edição brasileira em 1990, ser possível uma democracia[6] da propriedade privada,

(...) não pela redistribuição de renda em favor daqueles que têm menos ao fim de cada período, mas sim assegurando a posse amplamente difundida de ativos produtivos e capital humano (qualificações profissionais e habilitações técnicas) no início de cada período, tudo isso sobre uma base de liberdades básicas iguais e igualdade equitativa de oportunidades. (RAWLS, 1997)[7].

Ou seja, a igualdade estaria nas “oportunidades”, como se, na sociedade de desiguais, as oportunidades pudessem ser iguais. A lógica continua na formalidade. Quando que uma pessoa que não tem trabalho, não tem onde morar, o que comer vai participar das mesmas oportunidades dos que têm.

No entanto, essa racionalidade formal vem sendo afirmada pelos governos liberais e difundida amplamente pela mídia, que prega o desenvolvimento do “ativo produtivo e capital humano”, pelo incentivo à capacitação, colocando no indivíduo a responsabilidade de buscar se qualificar, como se isso, por si, garantisse acesso a emprego, renda, muito menos à propriedade.

São argumentos que não conseguem demonstrar como tal “democracia da propriedade privada” impediria a disparidade de riquezas e poder por elas permitida. Trata-se, portanto, de visões no campo apenas formal de justiça e não de sua concretização.

Por isso é que, para abordar cientificamente o problema das desigualdades na sociabilidade capitalista é questão prévia que se firme um conceito de partida acerca do que se quer dizer – e em que sentido alguém se vale, no discurso das ideias de igualdade e desigualdade, ou seja, trata-se de clarear o seu significado (semântica), sua relação com outras categorias analíticas (sintaxe) e o seu uso no discurso prático (pragmática da linguagem).[8]

Cumpre destacar, ao fim dessa parte e para dar conta do problema da justiça e igualdade é que os beneficiários de acordo com as necessidades, não sejam considerados, ou enquanto parasitas, ou enquanto alvos da caridade pública como, num caso, no outro ou em ambos, são vistos na sociabilidade capitalista.

Isto é, eles são e só podem ser vistos, como portadores de desigualdades intrínsecas a uma dada condição de sua própria humanidade, pois mesmo os que estão em condição de trabalhar, uns têm mais habilidades e outros menos, assim, como a condição de saúde, da força do corpo, entre outas, são desigualdades que precisam ser consideradas e respeitadas.

Por isso, trata-se de localizar, precisamente, a contradição existente entre uma concepção de justiça que vise eliminar as desigualdades formais e materiais e a práxis do serviço social no interior de uma sociedade ao mesmo tempo injusta e desigual.

A grande distinção entre a justiça formal e material ou concreta, é que a primeira é puramente procedimental, ou seja, se preocupa com sua exterioridade, com seu aspecto formal, visto que o procedimento é meramente a forma.

A priorização somente das regras que garantam a possibilidade de se demandar por certo direito sem que isso resulte que o indivíduo tenha em sua vida empírica, isto é, concretamente, a aquele direito, isto é, o fato de tê-lo formalmente, não resulta que o mesmo venha ser efetivamente implementado.

Para melhor entendimento do significado do princípio da justiça há de se recorrer à sua interpretação historicamente dada desde a tradição, confrontando-as, pois, como foi visto, suas concepções implicam em visões rivais.

Deve-se também, se refletir acerca de sua implementação nas formas de organização de sociedades que nos antecederam, pelo que se busca respaldo na filosofia e nesta recolhendo dois significados principais de justiça, a saber:

1º) Justiça como conduta, como conformidade do comportamento humano a uma norma, como vontade de dar a cada um o que é seu. E, o que cabe a cada um já está determinado por uma lei. Neste sentido, a justiça consiste simplesmente na manutenção dos pactos. (ABBAGNANO, 2003).

2º) Justiça se referindo à própria norma jurídica, expressada eficiência quando é capaz de possibilitar as relações humanas. Para ser justa, uma norma deve adequar-se a um sistema de valores qualquer. Com frequência se recorre à felicidade, utilidade, liberdade e paz.

O segundo sentido parece mais pertinente de ser adotado, tendo em vista que o primeiro nos reporta a uma interpretação inspirada em Kant[9] da justiça, enquanto apenas formalmente condicionada a uma norma e, por isso mesmo, aparece como princípio apriorístico que deve ser obedecido pelo puro dever de cumprimento da norma, ou seja, imperativo, entendido enquanto regra prática em virtude da qual uma ação, em si mesmo contingente, se converte em necessária a ação subjetivamente contingente.

Enfim, “o imperativo categórico ou absoluto é o que pensa e impõe necessariamente uma ação”, pela razão e não por uma necessidade externa de se ser moral, bom, virtuoso e justo (KANT, 1993).

Lembrando que em Aristóteles em sua obra " Ética a Nicômaco"[10], a justiça é conceituada como aquela disposição de caráter a partir da qual os homens agem justamente e refere-se ao conceito de justiça enquanto virtude por excelência, que reúne em si todas as demais virtudes, e por isto, pode ser considerada a síntese da busca da felicidade e do bem. Nesse sentido, a justiça pode ser distributiva ou comutativa.

A justiça distributiva diz respeito à relação entre indivíduos singulares e o Estado e se materializa na atividade pública que gesta os bens para que todos possam atender suas necessidades.

Observa-se que mais uma vez se recorre ao sentido da felicidade que não se restringe a um estado de alma, a um sentimento abstrato de satisfação das necessidades espirituais, mas se coaduna com a própria vivência de uma sustentação material que atenda às necessidades concretas dos seres humanos.

Já a justiça comutativa, por sua vez, considera a relação entre os membros de uma sociedade. Sendo assim, pode-se atribuir, atualmente, um valor que confere às classes sociais um caráter de distribuição da riqueza produzida socialmente, considerando-se que entre os membros de uma mesma sociedade não deve existir dívidas, nem uma relação de predominância de um sobre o outro.

É evidente que a noção de classe social vai ser formada muito mais tarde, na sociedade burguesa e Aristóteles não conhecia a divisão da sociedade em classes.

Todavia, sua noção de justiça comutativa referia-se aos membros da polis, considerados todos os seus membros cidadãos e iguais entre si. Daí nossa alusão a uma compreensão da justiça comutativa aplicada à sociedade de classes, na qual, do ponto de vista legal, trabalhadores e patrões são considerados iguais e gozam dos mesmos direitos.

Essa não percepção da integridade do problema não diminuiu, aos olhos de Marx, a grandeza de Aristóteles. Para Marx, o estagirita só não fez as descobertas relativas à mais-valia porque vivendo numa sociedade escravagista não lhe foi possível ver além de seu próprio tempo.

Na concepção clássica de Aristóteles, a justiça como virtude é como mencionado anteriormente uma espécie de meio termo entre dois extremos, o equilíbrio entre dois vícios como escassez e o excesso. Cumpre destacar que equidade e justiça não são absolutamente idênticas. Equidade é justo e superior a uma justiça porque é uma espécie de justiça que se aplica aos fatos particulares e específicos a exemplo dos decretos.

Sua definição de justiça e equidade conduz mais com a realidade, porque ajusta a lei para que ela contemple cada caso particular. Portanto, na sua concepção, uma das formas de justiça consistiria em tratar desigualmente os desiguais.

Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é motivo de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais).

Ademais, isso se torna evidente pelo fato de que as distribuições devem ser feitas “de acordo com o mérito de cada um”, pois todos concordam que o que é justo com relação à distribuição, também o deve ser com o mérito em um certo sentido, embora nem todos especifiquem a mesma espécie de mérito: os democratas o identificam com a condição de homem livre, os partidários da oligarquia com a riqueza (ou nobreza de nascimento), e os partidários da aristocracia com a excelência. O justo é, por conseguinte, uma espécie de termo proporcional. (ARISTÓTELES, 2002).

A contribuição de Aristóteles a essa questão foi reconhecida explicitamente por Marx e Engels, que consideravam o filósofo o mais genial de todos os gregos.

Enfim, na sociabilidade capitalista, em razão da apologia à propriedade privada, esse modelo herdado de Aristóteles, pelo qual uma das formas de justiça consistiria em tratar desigualmente os desiguais, é apresentado de forma descontextualiza e tratado como valor atemporal.

 Infelizmente, a linguagem da moralidade está em grave confusão e o que desta se herda são fragmentos de um esquema conceitual aos quais faltam os contextos de onde deveriam ser extraídos os seus significados, o que resulta em aprofundar, ao invés de eliminar, a própria desigualdade. Ainda dentro da concepção aristotélica, a justiça e injustiça parecem ser termos ambíguos, mas, como seus diferentes significados se aproximam, é possível determinar um ponto de partida.

Na concepção clássica de Aristóteles, a justiça como virtude é como mencionado anteriormente uma espécie de meio termo entre dois extremos, o equilíbrio entre dois vícios como escassez e o excesso.

Cumpre destacar que equidade e justiça não são absolutamente idênticas. Equidade é justo e superior a uma justiça porque é uma espécie de justiça que se aplica aos fatos particulares e específicos a exemplo dos decretos. Sua definição de justiça e equidade conduz mais com a realidade, porque ajusta a lei para que ela contemple cada caso particular. Portanto, na sua concepção, uma das formas de justiça consistiria em tratar desigualmente os desiguais.

Assim, como ponto de partida, determinemos as várias acepções em que se diz que um homem é injusto. Tanto o homem que infringe a lei, tal como os homens gananciosos e ímprobos são considerados injustos, de tal modo que tanto aquele que cumpre a lei como o homem honesto obviamente serão justos. O justo, portanto, é aquele que cumpre a lei e é probo, e o injusto é o homem sem lei e ímprobo.

Uma vez que o homem injusto é ganancioso, a questão deve estar relacionada com bens. (...) as leis visam à vantagem comum, seja a de todos, seja a dos melhores ou daqueles que detêm o poder ou algo semelhante, de tal modo que, em certo sentido, chamamos justos os atos que tendem a produzir e a preservar a felicidade e os elementos que a compõem para a sociedade política. (ARISTÓTELES, 2002)

Uma questão decisiva é saber quem define as leis. Pois os critérios para tal serão de acordo com sua situação na sociedade, lembrando ainda que na época de Aristóteles, as mulheres e os escravos não eram considerados cidadãos, portanto, não compunham a sociedade política e, em sendo assim, a essência da justiça estaria em validar e reforçar a ordem social.

Ora, as noções de igualdade e justiça, que perpassam a cultura ocidental vêm, desde a Antiguidade, adquirindo significados diferentes em cada época e em cada contexto histórico e, na cultura contemporânea, é este o fio condutor que aponta diretamente para a concepção dominante do que sejam a justiça, os direitos humanos e os direitos sociais.

E, para situar o busilis não se pode deixar de observar que a modernidade ressignificou o conceito de igualdade, ampliando-o por via do iluminismo de 1789 e instaurando a ideia dos direitos humanos, mas, colocando como um de seus aspectos centrais o direito à apropriação privada de riquezas cuja produção é social.

Essa inclusão da apropriação privada por alguns enquanto "direito humano" (uma das coisas mais inumanas, pois, que exclua a maioria em favor de uma ínfima minoria) ao tempo em que refletia a hegemonia política e ideológica do setor social que pretendia legitimar juridicamente seu predomínio, não foi algo que se deu sem resistência intelectual.

Rousseau, no chamado “Segundo Discurso”[11] denunciava o caráter falacioso de tal direito pelo qual a apropriação privada de riquezas funciona como direito oponível contra todos e que, portanto, e contraditoriamente, exclui todos os demais desse direito, supostamente geral.

São legitimados aqueles que, ao cercarem um terreno, tiveram a audácia de dizer, isto é, meu e encontraram gente bastante simples para nele acreditar, “não havendo quem gritasse a seus semelhantes que aquele homem era um impostor, na medida em que os frutos pertencem a todos e a terra é de ninguém” (Rousseau, 2009), assim como o ar e a água.

Desde os primórdios, para Rousseau, quando o homem começa a cultivar a terra, dividi-la e, reconhecer a propriedade, afirmando-a como "sua", já se configuram as primeiras regras de justiça, como as leis, por exemplo, que determinam a quem pertence o bem. Daí, a noção de justiça que diz "a cada um o que a lei lhe atribui". Porém, quem determina a lei e o que fazem as leis senão legitimarem a apropriação original? Ele lembra que, na origem, o trabalho dá direito ao cultivador sobre o produto da terra que ele lavrou e, pelo menos até a colheita, tem o direito sobre o terreno.

Na base da crítica de Rousseau, e de toda tradição que questiona o direito de propriedade está a concepção jurídica que diferencia posse e propriedade. Pois posse é a detenção da coisa com objetivo de tirar desta qualquer utilidade econômica e, propriedade é o direito de usar, gozar e dispor de bens e, de reavê-los do poder de quem injustamente os possua.

Na construção do conceito de justiça, destaca-se o liberal John Locke, antecessor de Rousseau, que também influenciou os iluministas. E, em sua obra "Segundo tratado sobre o Governo", as posses tornam-se propriedade através do trabalho que acrescenta valor, deixando o estado natural nas quais pertence igualmente a todos para, por direito, se tornar propriedade sua.

John Locke é considerado o pai do empirismo, teórico e político e social que tanto inspirou os iluministas do século XVIII. E, sua obra de 1690 é a base do liberalismo moderno e exerce notável influência no pensamento ocidental.

Desta forma, pelo trabalho, o homem tira da natureza e se apropria para si mesmo. Porém, o que dizer quando o trabalho é social? Porque se permite a apropriação privada de bens constituídos coletivamente e depois a lei, a justiça legitima os que se apropriaram?

Para ele, o poder político se constitui no direito de elaborar leis, incluindo pena de morte, no intuito de regular e conservar a propriedade, e de utilizar a força para garantir tais leis e para protegê-la de ofensas externas. (LOCKE, 2002).

Locke[12] se posicionava contrário ao absolutismo, afirmando não existir poder inato e de origem divina. E, em sua obra defendeu que o Estado e o poder nascem de um pacto social entre os homens. Antes desse acordo, os homens viviam em estado natural, isto é, todos iguais e governados pela razão onde a lei da natureza permanece nas mãos dos indivíduos. Entre os direitos naturais, para ele, está o direito de propriedade e considera natural do homem a vida, a liberdade e as posses.

Um homem livre se torna servo de outem vendendo-lhe o serviço, passando à tutela disciplinar dele, outorgando poder temporário sobre si próprio estabelecido no seu contrato. Já os escravos, “prisioneiros tomados em guerra justa, estão sujeitos, por direito de natureza, ao domínio absoluto e ao poder arbitrário dos senhores”. Perdem a vida e com ela a liberdade, não podendo ter qualquer posse e, “não se podem considerar, portanto, como parte de sociedade civil, cujo fim principal é a preservação da propriedade”. (Locke, 2002).  

Com isso, Locke justifica a escravidão e admite que os indivíduos sem propriedade não fazem parte da sociedade civil e não são sujeitos de direito. Até hoje, de diferentes formas, os não proprietários continuam sem a garantia dos direitos pelo Estado.

Ainda sobre a temática das leis e justiça, pode-se apontar outro relevante pensador iluminista, Voltaire[13], através de sua notável obra intitulada "O preço da justiça" escrita em 1777, sendo, portanto, depois do segundo discurso de Rousseau. Onde o doutrinador denuncia que as leis são variáveis como os homens que as fizeram, que algumas foram ditadas pelos poderosos para esmagar os fracos, que o Estado deveria prevenir antes de punir.

Durante muito tempo da Idade Média, sob o signo da ignorância, superstição, fraude e barbárie, a Igreja que sabia ler e escrever ditou as leis em toda a Europa, que só sabia beber, brigar e confessar-se aos monges.

Eram leis que impunham o extermínio de todos os hereges, como crime de lesa-majestade divina com máxima gravidade.

E, em todas as situações, incube à sabedoria dos governantes ditar as leis, tornar proporcional cada pena e cada delito e refrear réus e juízes.

O coração se entristece e a mão treme quando nos lembramos de quantos horrores saíram do seio das próprias leis. Seríamos tentados a desejar que todas as leis fossem abolidas, e que outras não houvesse além da consciência e do bom senso dos magistrados.

Mas quem pode garantir que essa consciência e esse bom senso não se extraviam? (...) É preciso ter dinheiro para exigir justiça numa revisão, mas as pobres famílias que a requereriam estão reduzidas à mendicância, enquanto [outros] (...) discutem alegremente sobre jardins públicos, óperas cômicas, fusas e semifusas. (VOLTAIRE, 2006).

Quer as leis feitas pelos ricos, pela Igreja ou pelo governo encontram enorme variação de critérios, pois são leis feitas pelos homens, defendendo seus próprios interesses e atribuindo "verdade e justiça do lado de cá deste regato"; erro e injustiça do lado de lá. Assim como o adultério das mulheres era um crime visto terem sido os homens que fizeram as leis. Enxergaram-se como proprietários de suas esposas, elas são um de seus bens; o adultério rouba, introduz nas famílias herdeiros estranhos.

Chamava à atenção de Voltaire[14] a crueldade praticada em nome das leis e perguntava se não seria possível diminuir o número de delitos, tornando os castigos mais vergonhosos e menos cruéis, com torturas, fogueiras etc. E, aplicando castigos úteis, obrigando o condenado a servir, causando vergonha, com finalidade de dar exemplo e de educar.

Contemporaneamente, torna-se mais difícil enxergar as injustiças porque não sejam mais tão assassinas como antes, se mata de outras formas, tal como pelo abandono das massas no direito a vida, na apropriação privada dos meios e das riquezas socialmente produzidas, formas de crueldade que restam diluídas no grande discurso pós-moderno, na liberdade de mercado, na livre iniciativa, na igualdade puramente formal de oportunidades, na moralização da questão social cujas expressões estão na fome, na miséria, que se constitui em verdadeira tortura, mas que, fica quase invisível quem são os autores das injustiças, porque se atribui ao próprio indivíduo a solução de seus problemas.

Na acepção liberal, a lógica é o direito individual e, ver o sujeito de direito como indivíduo é assim na concepção liberal das revoluções burgueses do século XIX e não como resultado histórico, constitui-se num erro metodológico de imaginar uma suposta produção desse indivíduo fora da coletividade.

E isso, por fim, se dá, no entendimento aqui desenvolvido, pelo fato de que o discurso liberal justifica o direito de propriedade, cujo centro é a apropriação privada dos meios de produção e que é a fonte fundamental das desigualdades sociais.

 Assim, o que interessa se esclarecer é que, como formulado pela visão liberal, essa concepção de justiça não passa de um modelo que pretende nublar seu caráter classista sob uma construção que, em última instância, mantém a ficção legalista de igualdade enquanto direito abstrato, isto é, formal.

Em Rawls[15], bem como toda a tradição liberal, a justiça não se põe como resposta aos problemas da questão social. Ao contrário. Fidelíssimo à tradição liberal, sua teorização se distancia de qualquer referimento às determinações sócio-político-econômicas das desigualdades, o que é feito para garantir o modelo teórico do "véu de ignorância e o respeito ao que chama de "posição original"[16]. (RAWLS, 2006), porque em seu referencial teórico o que importa é a igual cidadania (formal), ainda que tente compatibilizar o problema defendendo que as liberdades básicas não seriam meramente formais, mas, mesmo sob esse argumento, sua discussão se centra em torno dos mecanismos que, ao fim e ao cabo, enfatizam o caráter formal do direito.

O principal questionamento é saber em qual sentido de justiça numa sociedade desigual, isto é, qual a concepção societária garante para além da emancipação político, a emancipação humana?

Há de se examinar o conceito de justiça e se estabelecer previamente quais os pressupostos necessários a sua formulação pelos campos e interesses rivais, por que ao lidar, e é isso que interessa nesta tese, com o enfrentamento da chamada questão social, a visão de mundo liberal se vale das políticas sociais e não eliminá-la, contribuindo assim, no terreno das ideias, e otimizar o funcionamento da lógica do capital, por isso o seu discurso é totalmente formal, se restringindo aos problemas da desigualdade enquanto problemas de mera técnica e não enquanto resultantes de escolhas de políticas de classe e cuja justificação é ideologia produzida a fim de, com isso, justificar o existente enquanto fenômeno supostamente inevitável.

Todos esses questionamentos demonstram que a perpetuação, por exemplo, da noção de justiça a cada qual segundo sua posição, aquela, conforme já mencionada, que reparte os humanos em superiores e inferiores, se dá num processo de reprodução através das relações sociais, cuja compreensão envolve não apenas um problema teórico, mas também que tem rebatimento nas  práticas cotidianas, inclusive dos advogados, assistentes sociais e, outros operadores, quer daqueles que aplicam e praticam o conhecimento construído, quer daqueles que o formulam.

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Notas:

[1] A teoria marxista reconhece dois tipos de igualdade que correspondem às duas fases da sociedade pós-revolucionária. Na primeira, o princípio de cada qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo o trabalho realizado. Esse princípio de distribuição ao contrário do que pretendem os defensores da sociedade capitalista atual, só se concretizará na sociedade pós- revolucionária, onde todos os outros critérios pelos quais a distribuição tem sido feita serão abolidos como ilegítimos e injustos. Mas, com as diferenças nas realizações individuais são, pelo menos em parte, resultado de diferenças de talento e capacidade são inatas ou produto das condições ambientais, e, como as situações familiares e condições de vida dos diferentes indivíduos são muito diversas ( desde diferenças no físico e as correspondentes necessidades de vestuário, e alimentação, até as diferentes responsabilidades impostas por diferenças no tamanho da família etc.), esse princípio de distribuição não equivale a uma igualdade justa, pois, embora uma igualdade abstrata seja formalmente aplicada a todos os indivíduos, eles recebem na realidade um tratamento materialmente desigual.

[2] Rousseau expõe que a desigualdade é quase nula no estado de natureza, limitava-se à esfera física, obtendo força e crescimento com o desenvolvimento de nossas faculdades e os progressos do espírito humano, tornando-se estável pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Rousseau divide a desigualdade entre os homens em duas formas representativas: a desigualdade natural e física e a desigualdade moral e política.  A primeira, natural e física, representa as diferenças de idades, fisiológicas e anatômicas. A segunda, a desigualdade moral e política, é fruto de uma espécie de convenção estabelecida ou autorizada pelo consentimento dos homens. Estas duas formas de desigualdades representam os passos cruciais que ajudam a distinguir o que é natural e o que é convencionado entre os homens, permitindo compreender o argumento rousseauniano sobre o início da sociedade que se forma na transição do estado de natureza para o estado civil. Neste contexto, a propriedade privada é um elemento chave que promove mudanças e conflitos dentro da recente estrutura social demarcando o início da ordem civil e o desenvolvimento da desigualdade moral e política como resultado dos interesses entre as relações de posse e de direito sobre a terra.

[3] A visão de Marx tinha da democracia burguesa, que se caracteriza pelo sufrágio universal, pelas liberdades políticas, pelo império da lei e pela competição política, era, porém, complexa e sensível às suas possibilidades contraditórias. Sobre a república democrática burguesa ele escreveu, na segunda parte de “As lutas de classes” na França de 1848 a 1850, que sua constituição sanciona o poder social da burguesia, ao mesmo tempo em que retira as garantias políticas desse poder, impondo-lhe condições democráticas que, a todo momento, contribui para a vitória das classes que lhe são hostis e põem em risco as próprias bases da sociedade burguesa.

[4] O enigma que Marx identifica na política moderna, isto é, a contradição entre o Estado e a sociedade civil. A verdadeira democracia como um conceito que é em sua essência normativo. A excepcionalidade do conceito marxiano de democracia encontra-se revelada nas palavras de Engles. Não se trata da democracia real, aquela que se verifica hoje empiricamente ao redor do mundo e, que no século XIX a Europa inteira estava apressando-se em adotar.

[5] Rawls foi autor de obras relevantes para a filosofia moral e política, como Uma Teoria de Justiça (2008) e Justiça como Equidade: uma reformulação (2003) e O Liberalismo Político (2000). Nesses escritos ele expõem sua teoria de justiça como equidade, visando estabelecer um parâmetro de justo para uma sociedade bem-ordenada, onde os indivíduos teriam acesso a liberdade e chances equânimes, enquadrando-se como liberal-social no diagrama político. Uma das principais críticas ao trabalho de John Rawls é a falta de aplicação prática à realidade institucional brasileira, já que se trata de uma obra abstrata e tem por base de formulação o sistema estadunidense. Porém, como o próprio autor escreve em sua obra, a teoria por ele formulada contém o caráter de abstração objetivando a aplicação em qualquer sistema democrático, não apenas em um específico. Determinados temas não são tratados como: quem são os menos favorecidos, quais instituições devem existir ou que sistema de governo seguir, para que o intérprete adeque a teoria à própria realidade onde vive.

[6] Afirmou Marx que a democracia é o enigma resolvido de toda constituição. Mais do que conceber a democracia. A trata como enigma resolvido se apresenta como respostas para os problemas suscitados pelas formas políticas. O principal destes problemas, de acordo, com Marx, refere-se à contradição entre Estado e a sociedade civil. É o enigma da modernidade política que tão cedo pode diagnosticar.

[7] Rawls, em sua teoria da justiça, justiça como equidade, apresenta os princípios básicos que irão instituir uma sociedade bem-ordenada, possibilitando que se atinja um sistema de cooperação equitativa entre seus cidadãos e que, através desses princípios, sejam garantidas as liberdades e igualdade entre eles.

[8] O enigma que Marx identifica na política moderna, isto é, a contradição entre o Estado e a sociedade civil. A verdadeira democracia como um conceito que é em sua essência normativo. A excepcionalidade do conceito marxiano de democracia encontra-se revelada nas palavras de Engles. Não se trata da democracia real, aquela que se verifica hoje empiricamente ao redor do mundo e, que no século XIX a Europa inteira estava apressando-se em adotar.

[9] A ideia de justiça em Kant está mais voltada para a organização da sociedade e, por conseguinte, do Estado. Seu critério de justiça propõe que uma conduta justa é aquela que está de acordo com as leis externas criadas racionalmente e a injusta é aquela que as contraria. É onde propôs a famosa frase “Sapere aude!” (lema latino que pode ser traduzido como “Atreva-se a conhecer!”), salientando a importância do pensamento autônomo. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785): e scrito em que estabelece as bases de sua perspectiva ética.

[10] Da Ética a Nicômaco, o homem busca ser feliz, a essência da felicidade, vida contemplativa, a suprema felicidade, prazer intelectual, atividade virtuosa.  Aristóteles faz uma análise do agir humano. Constatou que todo o conhecimento e todo o trabalho do homem visam algum bem. O bem é a finalidade de toda a nossa ação. Ética a Nicômaco é a principal obra de ética de Aristóteles. Nela se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista de racionalidade prática, sua concepção da virtude como mediania e suas considerações acerca do papel do hábito e da prudência na Ética. O homem respeitador da lei é justo porque as leis visam à vantagem comum, preservando a sociedade política; a lei bem elaborada nos ordena praticar tantos atos de um homem bravo (ex: não desertar de nosso posto, não fugir) quanto os de um homem temperante (ex: não trair) e os de um homem calmo (ex: não bater em ninguém) ...

[11] Segundo o filósofo, os momentos que caracterizaram o surgimento do progresso e das desigualdades aconteceram de forma muito lenta. Alguns sentimentos naturais como a piedade e o amor de si despertaram no homem algumas paixões, dentre elas, merecem destaque o amor pela vida e, consequentemente, o instinto de conservação da espécie. A propriedade privada é sinônimo de desigualdade social. A partir dela, as desigualdades se consolidam e ganham formas. Da sua estrutura, nascem três tipos de desigualdades diferentes: entre rico e pobre, poderoso e fraco, senhor e escravo. A relação entre ricos e pobres caracteriza o primeiro progresso de desigualdade; o surgimento dos magistrados, que é a relação entre poderosos e fracos, é o segundo; o despotismo, que é a relação entre senhor e escravo, é o terceiro e o mais alto grau de desigualdade.

[12] Dessa maneira, é estabelecida a fonte da desigualdade social entre os indivíduos, segundo o comentador. teoria de Locke que vê o trabalho como a origem do direito de propriedade conduz à teoria do valor do trabalho. É o trabalho, afirma ele, que 'transforma o valor de tudo'.”  Locke acreditava na soberania do indivíduo e que nós somos “capitães de nós mesmos”, enquanto Rousseau argumentava que o grupo era mais importante do que o indivíduo e que a “vontade geral” era superior à consciência solitária.

[13] “A miséria, condição agregada à nossa espécie, subordina um homem a outro homem; não é a desigualdade que é um mal real, mas a dependência.” Os ideais de Voltaire estão bem alinhados com os de outros iluministas franceses, mas com alguma ênfase na questão da liberdade. Voltaire acreditava que o ser humano deveria ser livre para expressar sua vida criativa, sem interferências de cunho moral e religioso. Ele era contra o absolutismo e a favor da separação entre Igreja e Estado, ou seja, foi um dos primeiros defensores da ideia de Estado Laico. Voltaire também era absolutamente a favor da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, além da liberdade religiosa e da tolerância. Para o pensador, o progresso da sociedade somente viria com o reconhecimento dessas liberdades individuais e com o respeito e a tolerância a todas as formas de pensar. A tolerância era um tema essencial para ele, pois muitas vezes o filósofo foi censurado e interditado por seu pensamento liberal. Voltaire, no entanto, somente condenava e lutava contra dois tipos de pensamento: o fanatismo e a superstição, pois estes levam a liberdade à ruína.

[14] "Voltaire condena o arbitrário, não o monárquico; mas o monarca deve conformar sua conduta às exigências da razão. Um príncipe aconselhado pelos filósofos e sendo ele mesmo um filósofo, fará o seu povo feliz, concedendo plenos graus de liberdade a seus súditos, que, por sua vez, tendo o espírito formado na filosofia, aceitam de bom grado sua tutela, fazendo com que a felicidade pública reine sob a lei do despotismo esclarecido.". "Voltaire é, antes de tudo, um polemista. Pretende lutar contra os sistemas vãos, contra opiniões falsas e condena toda atitude fundada na crença e na superstição ou ainda nos pensamentos puramente abstratos. "

[15] De acordo com os princípios formulados por Rawls, a desigualdade seria permitida de acordo com a ideia de equidade, para auxiliar os indivíduos em situação menos privilegiada na sociedade. Deste modo, existiria uma distribuição equitativa de bens controlada pela imparcialidade. Em Uma Teoria da Justiça (A Theory of Justice), de 1971, Rawls defende que uma sociedade será justa se respeitar três princípios: garantia das liberdades fundamentais para todos; igualdade equitativa de oportunidades; e. manutenção de desigualdades apenas para favorecer os mais desfavorecidos.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Marx Democracia Direitos Humanos Justiça Comunidade Dignidade Humana

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