Cúpula das Américas e Direito Internacional Público

Os países que integram a Cúpula das Américas compartilham o compromisso com as práticas democráticas, com a promoção de melhor integração econômica e a materialização da justiça social. Trata-se de mais uma oportunidade para renovar o Pacto de Desenvolvimento e Prosperidade nas Américas.

Fonte: Gisele Leite e José Luiz Messias Sales

Comentários: (0)




Já tem mais de uma década que os Chefes de Estado e de Governo das Américas se reúnem, periodicamente, para discutir problemas comuns e buscar soluções e desenvolver  uma panótica compartilhada para o desenvolvimento das Américas, seja este social, econômico, ou de natureza política.

Enfim, a nona cúpula regional acompanha o contexto de instabilidade geopolítica e participação de alguns países permanece ser uma incógnita. Essa reunião aconteceu em 6 de junho de 2022 em Los Angeles, nos EUA. E, a tensão é latente tendo em vista que alguns países latino-americanos nem foram convidados.

Trata-se da segunda vez que os EUA sediam esse encontro que ocorre desde 1994, ano em que o evento fora realizado pela primeira vez depois da convocação do então presidente norte-americano Bill Clinton.

A reunião com os líderes do continente visa discutir e definir ações de enfrentamento de problemas e desafios comuns da região e, anda avançar na integração.

A Cúpula e seus fóruns promovem a cooperação para o crescimento econômico inclusivo e a prosperidade[1] nas Américas, com base no respeito comum pela democracia, as liberdades fundamentais, a dignidade humana, a dignidade do trabalho e a livre iniciativa.

A reunião nesse ano se torna particularmente importante em face da pandemia de Covid-19[2] e seus efeitos deletérios nas áreas econômica e política. Recentemente, os líderes se comprometeram em combater a corrupção e promover a governança democrática, desde que se reuniram na oitava Cúpula das Américas que ocorreu em Lima, no Peru, em 2018.

Os EUA realizarão três fóruns oficiais que reunirão os membros da sociedade e promoverão o maior diálogo entre os Chefes de governo, os povos, as empresas para enfrentar os desafios e oportunidades hemisféricas, tal como a inclusão social, a recuperação econômica, mudanças climáticas, democracia e transformação digital, conforme explicou o governo de Biden, que enfatiza o tema "Construindo um futuro sustentável, resiliente e equitativo".

O Presidente Joe Biden terminou seu discurso e estendeu a mão para cumprimentar um companheiro imaginário. Pois, não há ninguém ao seu lado. E, a mesma ação é repetida dias depois.  Parecem que os principais líderes americanos estão confusos. Não em relação com seu vínculo com a América Latina, onde democratas e republicanos quase sempre concordaram que qualquer ligação com os povos que vivem ao sul do Rio Grande deve ser estabelecido de acordo com os interesses, demandas, necessidades e eventuais caprichos do governo dos EUA.

Além do eminente fracasso na imposição da área de livre comércio das Américas (ALCA) em 2005, a reunião serviu apenas para apoiar e promover a interferência dos EUA na América Latina, consolidando as velhas assimetrias entre centro e periferia do continente.

Entre os seus objetivos norteadores estão o combate à corrupção e ao narcotráfico que foram utilizados  por Washington para exercer poderes extraterritoriais, sancionando de forma unilateral e coercitiva seus adversários políticos em outras nações sob o argumento de eliminar os perigos que tanto ameaçavam suas democracias.

O fiasco parece ter começado com a unilateral decisão do governo Biden em vetar a participação de Cuba, Venezuela e Nicarágua. E, o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, exigiu a suspensão do verto ianque como condição sine qua non para estar presentes em Los Angeles. E, os governos de Gabriel Boric (Chile), Alberto Fernández (Argentina), Xiomara Castro (Honduras), Luís Arce (Bolívia) também expressaram seu grande desconforto e rejeição à decisão de Biden. Tanto que nem México Bolívia participarão da IX Cúpula das Américas.

Recorde-se ainda que o artigo 19 da Carta da OEA[3] oferece informação de que todo Estado tem o direito de escolher, sem interferências, seus interesses políticos, regime econômico e social e, ainda, organizar-se da forma que melhor lhe convier, tendo o dever de não intervir em assuntos de outro Estado.

Vivenciamos um momento crucial pata o sistema interamericano pois ao aceitar as condições impostas pelo governo dos EUA, sem maiores delongas ou com expressões inócuas de desgosto, significará um franco retrocesso democrático que se torna inexplicável, apesar de suas dificuldades governamentais, tanto de progressistas como os de esquerda que se multiplicaram em toda América Latina.

Há de se refletir e procurar alternativas ao sistema em crise, procurando fortalecer os espaços existentes, especialmente, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, Celac., a reconstrução da União de Nações Sul-Americanas, a Unasul e, fazendo o possível para promover o primeiro ciclo progressista da região.

Afinal, devem tanto a América Latina como Caribe devem construir seus próprios órgãos, instituições e espaços multilaterais de integração regional, sem exclusões ou tutelas, reconhecendo a experiência inspiradora da União Europeia e criando um esquema de integração que se alimente da diversidade e construa um respeito inalienável pela soberania dos povos.  E, os EUA poderão ter relevante protagonismo diante desse grande desafio histórico.

Conveniente que seja abandonada a arrogância hegemônica e colonialista, deixando de considerar os povos da América Latina e do Caribe não têm outro destino ser o quintal de suas aspirações imperialistas[4].

A Cúpula das Américas teve sua primeira edição em Miami, nos EUA em 1994 durante a gestão do Presidente Bill Clinton, com o fim de criar a ALCA -Área de Livre Comércio das Américas[5].

Em 2005, infelizmente, a reunião foi sediada em Mar Del Plata, na Argentina, esse objetivo fora descartado devido à forte polarização havida entre os países chamados bolivarianos da América Latina e o governo do George W. Bush nos EUA.

Lembremos que foi na Cúpula de Québec, no Canadá, em 2002 que se definiu a Carta Democrática Interamericana que se transformou em recurso de fortalecimento da OEA, Organização dos Estados Americanos.

Em 2009, a Cúpula de Trinidad y Tobago, o então o presidente era Barack Obama, recebeu das mãos do venezuelano Hugo Chávez um exemplar do livro intitulado "As Veias Abertas da América Latina", um ensaio do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Já, em 2012, no encontro sediado em Cartagena das Índias, o então Presidente colombiano Juan Manuel Santos tentou trazer ao encontro do ditador cubano Raúl Castro, numa tentativa de tirar o país do isolamento, porém, fora instado pelos EUA a não o fazer. E, com isso desistiram os líderes do Equador, Rafael Correa, da Nicarágua, Daniel Ortega e, da Venezuela, Hugo Chávez.

Causou grande repercussão na mídia a ida de Hillary Clinton a uma discoteca famosa no bairro de Getsemani.

Em 2015, no Panamá ocorreu o primeiro encontro entre Barack Obama e Raúl Castro, selando aproximação entre os dois países, atualmente, sob ameaça pelo retrocesso perpetrado pelo atual mandatário norte-americano, Joe Biden.

Em Lima, o país anfitrião desconvidou a Venezuela em razão de abusos praticados deste país contra os direitos humanos e, ainda, por não respeitar os princípios democráticos com os quais estão de acordo os demais participantes.

No governo anterior ao de Joe Biden, o de Donald Trump foi a primeira vez na história das cúpulas em que  um mandatário foi enviado, na época o vice-presidente Mike Pence. E, isso angariou severas críticas acentuando o seu desinteresse pela região.

Sublinhe-se que o principal propósito seja o fortalecimento das relações entre os países das Américas, portanto, é relevante que inclua todos os países da região, porém, não é o ocorre nessa nova edição da Cúpula das Américas.

O Presidente do México, López Obrador cumpriu sua palavra e retirou a sua participação. E, afirmou que não pode haver Cúpula das Américas se todos os países do continente americano não participarem. Ou pode haver, mas acreditamos que isso significa continuar com a vetusta política, de intervencionismo e de falta de respeito pelas nações e seus povos.

Segundo Nicolás Maduro, atual Presidente da Venezuela, a decisão dos EUA foi discriminatória, enquanto a atitude de Obrador foi corajosa. O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e o presidente do Chile, Gabriel Boric, também lamentaram a exclusão de três países.

E, excluído da Cúpula das Américas, Maduro vai à Turquia para fortalecer cooperação.

A sociedade civil também reagiu à altura e, uma cúpula paralela foi estabelecida, é a chamada Cúpula dos Povos. E, o evento promove debates, workshops e palestras ao longo de três dias, entre os dias 8 a 10 de junho.

A exclusão de alguns países é uma demonstração da dinâmica norte-americana que insiste em excluir específicos países, pois têm os EUA um alinhamento político que considera esses países indignos de se envolverem em conversas mais amplas, mesmo que isso afeta direta ou indiretamente. Foi o que afirmou uma das organizadoras dos Povos, Xochitl Sanchez.

Esse evento paralelo são capitaneados por lideranças civis e dá voz aos palestrantes e especialistas relevantes em sua região, trazendo visão assertiva sobre seus lugares de origem. E, proposta de colaborações, mas tudo com uma abordagem coletiva.

 A Cúpula dos Povos pretende organizar uma grande marcha rumo ao centro de Los Angelos em 10 de junho. Ativistas brasileiros preparam uma recepção para o atual Presidente da República nas ruas de Los Angeles.

Um caminhão com três telas de LED circulou pelas ruas da cidade da Califórnia contendo mensagens como: Fuera, Bolsonaro. Don't trust Bolsonaro (não confie em Bolsonaro) e Bolsonaro loves Trump (Bolsonaro ama Trump) e, todas vinham acompanhadas de imagens do atual presidente brasileiro.

Essa ação foi resultante de articulação de organizações brasileiras e internacionais que preferem manter o anonimato alegando motivos de segurança para seus integrantes. E, o grupo afirma temer represálias e violências a que ativistas estão sujeitos no Brasil.

 Em nota divulgada nesta terça, a articulação de entidades diz que Bolsonaro leva para Los Angeles e para Cúpula das Américas sua "péssima reputação ambiental e seu desprezo pelas instituições democráticas". A intenção do grupo e da intervenção para alertar os norte-americanos e o presidente Joe Biden sobre o tipo de líder que será prestigiado com uma reunião bilateral.

 A  mensagem dos ativistas ecoa ainda uma carta que 71 organizações da sociedade civil brasileira protocolaram, também nesta terça, na Casa Branca. Entre as ONGs estão a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), a Comissão Arns, o Greenpeace Brasil e o Instituto Vladimir Herzog.

A Cúpula dos Povos carrega o legado de movimentos contra o capitalismo neoliberal e o imperialismo estadunidense. Eles têm organizado “contra-cúpulas” todas as vezes que os Estados Unidos organizam sua Cúpula das Américas.

Observa-se a proliferação de novos organismos internacionais durante as derradeiras décadas e com diversas referências na América Latina e no Caribe (ALC) é fenômeno que expressa as mais profundas mudanças nas relações internacionais da região, que não se restringem ao hemisfério, conforme ocorreu durante a Guerra Fria, mas que se abrem para perspectivas mais globais.

A antiga ideia de panamericano do Hemisfério Ocidental, foi materializada na Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, nas Cúpulas das Américas (ALCA).  Outros órgãos, como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) em 2008, usam o termo para conotar espaços mais circunscritos, no caso a América do Sul. Deve agregar também as sub-regiões como o Caribe, a América Central, Sistema de Integração Centro-Americano~; a sub-região andina, Comunidade Andina de Nações, o Mercado Comum do Sul e, entidades que se referem aos grupos organizados com base em políticas comuns diante de terceiros, a Aliança do Pacífico, assim como aquelas com orientação político-ideológica comum, a Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA).

E, para tanto, recorre-se  inclusive ao âmbito dos vínculos histórico-culturais, as Cúpulas Ibero-Americanas, de 1991.

A fim de entender o multilateralismo regional, devemos examinar que organismo ou entidades o configuram em torno de que temas se organiza; e como as transformações do sistema internacional depois de onze de setembro de 2001, associadas às mudanças sociopolíticas domésticas que condicionaram sua evolução.

Analisaremos a natureza jurídica dos organismos, o alcance das obrigações que adquirem os participantes, a tomada de decisões, os mecanismos de solução de controvérsias, os recursos financeiros e de pessoal. Finalmente, exploraremos fontes potenciais de mudança: as políticas externas dos principais atores; suas estratégias de desenvolvimento e sua inserção no sistema internacional; e o modelo de interação ou cooperação visado.

O multilateralismo contemporâneo desenvolveu-se no marco das Nações Unidas. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) formalizou em 1947 o sistema de segurança hemisférico e, em 1958, a Carta de Bogotá outorgou nova institucionalidade à noção de panamericana na OEA. As principais preocupações políticas e de segurança restaram demonstradas entre os anos de 1948 a 1959 e, os órgãos políticos foram convocados sete vezes em casos de conflitos interestatais, golpes de Estado, ou ameaças existentes entre os países-membros.

Em verdade, os direitos humanos e a democracia apareceram em etapas posteriores da OEA e, apesar da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem tenha precedido a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o sistema interamericano estabeleceu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apenas em 1959.

A criação de uma Corte Interamericana de Direitos Humanos tardaria mais uma década. E, a democracia representativa mencionada na Carta permaneceu em plano retórico até os anos de 1990.

Mesmo que o âmbito econômico tenha sido o de maior interesse para os latino-americanos na criação de um organismo regional no pós-guerra, a cooperação econômica dos Estados Unidos limitou-se ao fomento do investimento privado e a limitados créditos públicos. A ideia de um banco interamericano só foi aceita pelos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1950.

Entre os anos de 1960 a 1989 a OEA permaneceu como principal órgão regional nos âmbitos de segurança e política exterior. E, os ministros de Relações Exteriores ou o Conselho Permanente se reuniram em dezoito oportunidades, entre 1959 a 1982 para tratar de casos de instabilidade na região.

E, nessa etapa, sete reuniões tiveram como foco principal a situação de Cuba sendo a mais crucial a que excluiu esse país, em 1962 de sua participação na OEA. O mecanismo de segurança operou dentro dos parâmetros da Guerra Fria, ainda que tenha também resolvido os conflitos interestatais tradicionais.

No entanto, a Guerra das Malvinas em 1982, criou fissura relevante entre seus membros e os mecanismos de segurança não voltaram a ser convocados até 1989, situação em que não se autorizou a invasão do Panamá.

Em termos de direitos humanos, a CIDH assumiu papel cada vez mais relevante, preparando informes sobre países mais afetados e atuando contra sua violação pelas ditaduras sul-americanas.

Adotou-se a Convenção Americana de Direitos Humanos, ocorrida em San José de Costa Rica, em 1969, em vigência em 1978. Em 1982, a Corte emitiu sua primeira opinião consultiva e, em 1988 sua primeira decisão em assuntos contenciosos.

No final desse período, a instalação do sistema interamericano de direitos humanos havia sido completada (Pasqualucci, 2003). A integração econômica não esteve presente no nível hemisférico nesse período, ainda que os Estados Unidos tenham aberto um espaço para apoiar a integração latino-americana por meio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

É preciso recordar que até 1960, a OEA era organização regional per se. E, a ideia de integração latino-americana havia se desenvolvido desde os anos cinquenta a fim de superar a crise do modelo de industrialização por substituição de importações.

E, inspirados em Raúl Prebisch e na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), das Nações Unidas, buscava-se ampliar os mercados internos sem alterar substancialmente a proteção em relação a terceiros. Foi nesse o princípio das organizações regionais latino-americanas, Mas, não lograram implementar os compromissos assumidos e muito menos ampliá-los.

A Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), de 1960, composta pelo México e países sul-americanos, visava criar uma zona de livre-comércio em doze anos, prazo que foi aumentado para vinte anos em 1969, sem chegar a completar-se (Guerra Borges, 2012).

Diante da falta de resultados significativos surgiram projetos sub-regionais. Já em 1969, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru – além da Venezuela (1973) – formaram o Pacto Andino, que se traduziria na redução de tarifas alfandegárias inter-regionais e também em políticas comuns de desenvolvimento industrial e de trato do investimento estrangeiro. Em 1976, o Chile retirou-se do Pacto, a iniciativa perdeu seu ímpeto durante a crise dos anos 1980 e também não atingiu seus objetivos.

Na América Central, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica estabeleceram o Mercado Comum Centro-Americano, em 1960, que chegou a conseguir um comércio recíproco equivalente a um quarto das exportações totais dos países da região no final dos anos 1970.

No entanto, a guerra entre El Salvador e Honduras, em 1969, levou à retirada de Honduras. Tudo isso, somado aos conflitos em El Salvador, àqueles derivados da revolução sandinista na Nicarágua e aos efeitos da crise dos anos 1980, produziu o estancamento do comércio inter-regional e desacreditou as instituições de integração centro-americanas por uma década.

Em síntese, nesse período a OEA foi ampliando sua preocupação temática e excluindo a integração comercial. Essa se colocou como uma aspiração no nível latino-americano e foi implementada em âmbitos sub-regionais, mesmo que sem atingir os objetivos planejados. Os organismos internacionais gerados cumpriam tarefas de acordo com seus tratados constitutivos, mas em áreas que não se sobrepunham.

O fim da Guerra Fria levou à busca de novos paradigmas. No marco de uma revitalização do multilateralismo, as Américas e a ALC seguiram esse caminho. Esse período está marcado por mudanças na região: a abertura à economia internacional, o ocaso das guerras civis centro-americanas e o fim das transições para a democracia nos países do Cone Sul.

A OEA em que o Canadá ingressou em 1990 adotou o Compromisso Santiago com a Democracia e a Renovação do Sistema Interamericano de 1991, que enunciou novas direções a seguir e, por iniciativa dos EUA, começou o processo das Cúpulas das Américas, em Miami, em 1994, buscando recolher as convergências que surgiam para a ação multilateral sobre a base da adesão à democracia e a abertura ao livre-comércio, dando novo impulso a um projeto hemisférico. Um certo consenso durou aproximadamente uma década.

Em matéria de segurança hemisférica, a incorporação de novos problemas à agenda (como o narcotráfico, o terrorismo e o crime transnacional organizado) e o impulso dado às medidas de fomento à confiança e à segurança para voltar a abordar os temas interestatais numa OEA renovada expressaram-se na Declaração sobre Segurança nas Américas, no

México, em 2003. Essa nova agenda de segurança multidimensional enfatizou a vinculação a diversas agências internacionais em matéria de narcotráfico, terrorismo e segurança cidadã. Por outro lado, as Reuniões Ministeriais de Defesa geraram novo âmbito de contatos entre os países do hemisfério. A OEA manteve certo papel nos temas de prevenção de conflito interestatal.

Em direitos humanos, a CIDH foi seguida pela ação de governos (Argentina, Chile e Uruguai) que estabeleceram procedimentos para enfrentar as violações de direitos humanos em seu passado recente e recebeu convites do Brasil e do México para avaliar sua situação quanto aos direitos humanos. Aumentaram também os casos diante da Corte Interamericana. Por outro lado, durante os anos 1990, vários países aceitaram a jurisdição da Corte, exercida em 2013 sobre 21 Estados.

Após a Guerra Fria foi a criação de mecanismos multilaterais para a defesa e promoção da democracia na OEA. O compromisso de Santiago e a Resolução 1080 (XXI), de 1991, incorporados à Carta pelo Protocolo de Washington de 1992, permitiram a ação da organização em caso de ruptura de um regime democrático.

E, o processo normativo alcançou seu auge com a Carta Democrática Interamericana em 2001 e, trouxe uma transformação na preocupação original pela segurança internacional e proteção à democracia de acordo com os conceitos predominantes no pós-Guerra Fria e concordes com as transformações que deram na América Latina na década anterior.

A Declaração Iniciativa para as Américas do Presidente Busch Jr. preconizou pela primeira vez a integração comercial como programa para o hemisfério.

Paralelamente, os mecanismos de integração na ALC também passaram por profunda modificação após a crise da dívida externa dos anos 1980. O financiamento do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial para enfrentá-la implicou promover reformas de mercado (privatizações, desregulamentações e redução de barreiras comerciais) que foram além do reestabelecimento da estabilidade macroeconômica e abriram as economias latino- americanas às exportações.

Nesse marco transformaram-se e foram revitalizados mecanismos de integração comercial, emergindo um “novo regionalismo” ou regionalismo aberto, que não mais visa criar um mercado ampliado com barreiras ao exterior, mas integrar-se para obter vantagens competitivas num processo aberto ao mercado mundial (Giordano e Devlin, 2011).

A expressão da mudança surgiu nos termos das negociações comerciais foi a criação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta) em 1994, o primeiro acordo que incluiu um país latino-americano e os dois países anglo-saxões da América do Norte.

E, acertou-se, na ocasião a redução de tarifas alfandegárias, mas também regulamentações em diversos âmbitos macroeconômicos, incluindo o comércio de serviços e investimentos, que  fixaram marco para esses países, estabelecendo a maior zona de livre-comércio no hemisfério.

A defesa da democracia foi preocupação importante do Grupo: o Panamá foi suspenso durante o governo de Manuel Noriega e expulso após a invasão dos Estados Unidos em 1990; o governo de Alberto Fujimori foi suspenso após o autogolpe de 1992; e o Grupo manteve-se atento ao apoiar os processos democráticos na região. Essas preocupações foram complementares às novas instituições de defesa e promoção da democracia pela OEA.

A OEA não conseguiu recuperar a primazia nos assuntos de segurança: no âmbito centro-americano continuou exercendo certo papel e tem desempenhado um rol de coadjuvante no processo de desmobilização na Colômbia, mas, em 2012, os quatro países da Alba que ainda pertenciam ao TIAR – Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela – anunciaram sua retirada desse tratado. Por outro lado, novas iniciativas na América do Sul têm-se ocupado desses assuntos.

O fortalecimento dos processos democráticos é um objetivo da integração na América Central (Tratado Marco de Segurança Democrática, 1995) e no Mercosul (Protocolo de Ushuaia, 1998). Estabeleceu-se um mecanismo diante de uma “ruptura da ordem democrática”, que contempla consultas com o país que apresenta problemas e autoriza seus membros a adotar desde a suspensão da participação no organismo até a suspensão dos direitos e obrigações do país-membro infrator.

A Carta Democrática Interamericana, de 2001, não pôde ser aprofundada em razão das diferenças que surgiram quanto ao conceito de democracia e à aplicação do mecanismo, especialmente no tocante ao golpe de Estado na Venezuela em 2002.

A América Latina desenvolveu ampla agenda jurídica de Direito Internacional ao longo de sua história, inserindo-se na sociedade internacional e utilizando instrumentos disponibilizados naquele tempo para regular as relações interestatais.

O debate sobre o regionalismo e mesmo a gênese de um Direito Internacional Americano deixa isso bastante evidente, embora o tema não tenha sido disciplinado com a sensibilidade necessária e tenha se desvirtuado entre as interpretações contestantes e subservientes ao pensamento imperialista.

Referências

ALONSO, José Antonio Fialho. ALCA: Livre-comércio ou mais dependência. Disponível em: https://revistas.planejamento.rs.gov.br/index.php/indicadores/article/view/1324 Acesso m 08.6.2022.

BENDER, Siegfried.  Conflitos e convergências na ALCA numa perspectiva de vantagens comparativas reveladas de países das Américas. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ecoa/a/hc4Wk9dszCNyHVLkvj4qR4C/?lang=pt Acesso em 08.6.2022.

CEPAL.  Panorama de la inserción internacional de América Latina y el Caribe 2011-2011. Santiago, 2012.

Revista Brasil. Cúpula das Américas inicia nesta segunda-feira (6) Disponível em: https://radios.ebc.com.br/revista-brasil/2022/06/saiba-importancia-da-cupula-das-americas-que-inicia-nesta-segunda-feira-6 Acesso em 8.6.2022.

CNN Brasil. Entenda os temas tratados e qual é o objetivo da Cúpula das Américas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-os-temas-tratados-e-qual-e-o-objetivo-da-cupula-das-americas/ Acesso em 8.6.2022.

FLACSO.  Dossier Comunidad Sudamericana de Naciones. San José de Costa Rica: Flacso, 2007.

GIORDANO, P.; DEVLIN, R. “Regional integration”. In: OCAMPO, J. A.; ROSS, J. (orgs.). The Oxford handbook of Latin American economics. Oxford: Oxford University Press, 2011.

MENEZES, Wagner. A Contribuição da América Latina para o Direito Internacional: O Princípio da Solidariedade. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/84/84131/tde-10102012-172431/publico/Wagner_Menezes.pdf Acesso em 08.06.2022.

OLIVEIRA, Maurício. Impactos do Coronavírus na Economia Mundial e Brasileira. Disponível em: https://www.asaprev-ba.com.br/impactos-do-coronavirus-na-economia-mundial-e-brasileira/ Acesso em 08.6.2022.

PASQUALUCCI, J. The practice and procedure of the Inter-American Court of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

PORTALES, Carlos. Para Onde Vai o Multilateralismo nas Américas? Projetos Superpostos num Período de Mudanças Globais. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/ks4QXBV3Z8cZFHT4WDmD77w/?format=pdf&lang=pt Acesso em 8.6.2022.

PRONET, Carol; GENTILI, Pablo. A Cúpula das Américas no labirinto da integração latino-americana. Disponível em:  https://fpabramo.org.br/2022/06/05/rascunho-automatico/ Acesso em 8.6.2022.

XIAO, Sheila; LOS SANTOS, Manolo. Cúpula dos Povos pela Democracia oferece uma visão progressista para combater o domínio dos EUA. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/05/31/cupula-dos-povos-pela-democracia-oferece-uma-visao-progressista-para-combater-o-dominio-dos-eua Acesso em 8.6.2022.

Notas:

[1] O progresso social e a prosperidade econômica só poderão ser sustentados se os nossos povos viverem num ambiente sadio e se os nossos ecossistemas e recursos naturais forem geridos cuidadosa e responsavelmente. Para impulsionar e implementar os compromissos assumidos na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, e na Conferência Global sobre Desenvolvimento Sustentável de Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento, realizada em Barbados em 1994, formaremos pactos de cooperação para fortalecer nossa capacidade de prevenir e controlar a poluição, de proteger ecossistemas e de usar nossos recursos biológicos de maneira sustentável, bem como de promover a produção e o uso limpo, eficiente e sustentável de energia. Para beneficiar futuras gerações por meio da conservação ambiental, incluindo o uso racional dos nossos ecossistemas, recursos naturais e patrimônio biológico, continuaremos a procurar a cooperação tecnológica, financeira e de outras formas.

[2] A desaceleração da economia global foi confirmada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que alerta para quedas do Produto Interno Bruto (PIB) na China e em diversos países afetados pelo vírus. A China é a segunda maior economia do mundo e com participação de 16% no PIB global. A redução do consumo e da atividade econômica nesse país com fechamento de fábricas e lojas afetam diretamente o mundo e, principalmente, o Brasil. Em termos de impactos financeiros o avanço da pandemia derrubou as principais bolsas de valores do mundo. No Brasil a queda chegou a 7%. As atividades econômicas mais afetadas com a redução no preço das ações estão as companhias aéreas e empresas dos setores de turismo, tecnologia, eletrônicos, minérios, automóveis e até alimentos. Tudo isso diminui os lucros e gera uma ruptura na cadeia de suprimentos. Enquanto as bolsas despencam o dólar bate recorde de altas sucessivas.

[3] A Carta da OEA estipula que a democracia representativa é indispensável para a estabilidade, paz e desenvolvimento da região. É o único sistema político que garante o respeito aos direitos humanos e o estado de direito e salvaguarda a diversidade cultural, o pluralismo, o respeito pelos direitos das minorias e a paz nas nações e entre elas. A democracia baseia-se, entre outros fundamentos, em eleições livres e transparentes e inclui o direito de todos os cidadãos de participar do governo. A democracia e o desenvolvimento reforçam-se mutuamente.

[4] É o princípio da solidariedade internacional que promove e justifica a interação entre Américas no plano internacional. O aparecimento de solidariedade está contido num preceito da vida em sociedade como um todo. Assim, o pressuposto que deu base ao surgimento da solidariedade remonta ao início da vida em sociedade, de vínculos fraternos que uniam membros de uma mesma família, de um mesmo grupo e, à medida que a sociedade foi tornando-se complexa em suas relações, esses vínculos foram assumindo outras dimensões. Na sociedade internacional a medida de solidariedade entre os Estados vai se fazer presente na medida em que aquela desenvolve a consciência da existência de uma comunidade internacional, pautada por relações além dos interesses soberanos e egoístas, na interdependência, seja espiritual, econômica ou social, na ideia de viver em uma comunidade universal, regional ou mesmo global, a partir da reflexão de filósofos e pensadores e do próprio desenvolvimento de laços históricos e políticos e mesmo geográficos entre os povos de diferentes Estados.

[5] A ALCA visou criar uma extensa área, na qual mercadorias e serviços tenham livre mobilidade, isto é, livre circulação. A mobilidade plena deve ser alcançada ao longo de um certo tempo considerado suficiente para que os milhões de agentes realizem os seus ajustes à nova realidade. O conjunto de nações que constituem as Américas é caracterizado por fortes disparidades. Um processo de integração comercial que assegure o livre trânsito de bens e serviços num cenário dessa natureza provoca, pelo menos três tipos de efeitos que partem, em geral, das economias mais fortes para as menos desenvolvidas.

Autores:

*José Luiz Messias Sales. Professor Universitário. Mestre em Direito das Relações Internacionais e a Integração. Advogado. Especialista em Direito Empresarial, Direito Processual Civil. Assessor do Instituto Jamil Sales (IJL).  Autor da obra “Segurança Jurídica dos Contratos Comerciais no Mercosul. As Relações entre Brasil e Uruguai” E-mail: messiassales@terra.com.br

*Gisele Leite. Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. 29 Obras Jurídicas publicadas. Presidente da ABRADE-RJ. Consultora IPAE. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ). E-mail: professoragiseleleite@gmail.com

Palavras-chave: Direito Internacional Cúpula das Américas Cúpula dos Povos Integração Econômica Justiça Social

Deixe o seu comentário. Participe!

colunas/gisele-leite/cupula-das-americas-e-direito-internacional-publico

0 Comentários

Conheça os produtos da Jurid