Conteúdo Mínimo da dignidade humana

A origem, o conteúdo e a aplicação do princípio da dignidade humana pela Justiça brasileira nos fazem antever um conteúdo mínimo, o que nos credencia a uma gama de direitos, cada vez mais relevantes na contemporaneidade.

Fonte: Gisele Leite

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A dignidade humana tem sua origem secular na filosofia, onde pensadores como Cícero, Pico della Mirandola[1] e Immanuel Kant construíram paradigmas como antropocentrismo, que é a visão de mundo que reserva ao ser humano um lugar e um papel central no universo.

Enfim, é o valor intrínseco de cada pessoa e a capacidade individual de ter acesso à razão, de fazer escolhas morais e determinar seu próprio destino. Tendo suas justificativas na ética, na filosofia moral, sendo o primeiro valor vinculado à moralidade, ao bem, à conduta escorreita e à vida boa.  Convém destacar que Ronald Dworkin procurou demonstrar a distinção entre ética que é o estudo de como viver bem e a moralidade que é o estudo de como nós devemos tratar as outras pessoas. Vide Justice for hedgehogs[2], 2011, p.13[3].

Foi no século XX, particularmente, após a Segunda Guerra Mundial, a ideia de dignidade humana fora incorporada ao discurso político das potências mundiais, principalmente os vencedores do conflito e se tornou meta política, um nobre fim a ser galgado por instituições nacionais e internacionais. Não é difícil notar, nesse contexto, a dupla dimensão da dignidade humana, a saber: uma interna onde há o expresso valor intrínseco ou próprio de cada indivíduo; e outra externa, representando seus direitos, aspirações e responsabilidades, assim como os correlatos deveres de terceiros.

Nota-se que a primeira dimensão é inviolável, já que tal valor intrínseco jamais é perdido, sob nenhuma circunstância. Já a segunda dimensão pode sofrer ofensas e violações. Por essa razão, a proteção e efetiva promoção da dignidade humana foram consideradas tarefas exclusivas dos poderes políticos do Estado, isto é, dos poderes do Executivo e do Legislativo (além do Judiciário, quando necessário se manifestar a respeito). No entretanto, não tardou para que tais metas políticas e valores morais inscritos na dignidade humana migrassem para o direito.

E, passou a ser consagrada em diversos diplomas legais, tratados internacionais, bem como as Constituições nacionais.  Sua suprema ascensão como conceito jurídico, foi consequência de mudança no pensamento jurídico, que se tornou mais visível e concreta após a segunda guerra. Realmente, de acordo com os dois pilares do pensamento jurídico clássico, entre o direito público e privado e a crença no formalismo e no raciocínio puramente dedutivo, começaram a ruir, então, a interpretação jurídica fez movimento decisivo na direção da filosofia moral e política. Isso é particularmente verdadeiro nas decisões envolvendo casos difíceis (hard cases[4]).

O pensamento jurídico clássico foi contestado na virada do século e, durante seus anos iniciais por doutrinadores como Georg Jellinek[5], na Alemanha, François Geny[6], na França e Oliver Wendell Holmes[7], nos EUA. Nos EUA foi lançado um ataque poderoso contra a teoria jurídica tradicional e, especialmente, contra o formalismo, por doutrinadores identificados como realistas jurídicos[8], tais como:  Robert Lee Hale, Felix Solomon Cohen e Karl Llewellyn. No período logo após guerra foi formado um novo consenso, identificado como consenso do processo legal.

Conforme David Kennedy e William W. Fisher[9] têm escrito, se tornou senso comum afirmar que os materiais jurídicos não produzem soluções únicas para os casos individuais, que o trabalho jurídico não era sempre dedutivo, mas também envolvia em grande medida a formulação de políticas e, que os juristas têm de cogitar, pensar sobre consequências, estatísticas e, assim por diante.

Esses casos envolvem lacunas, princípios conflitantes, desacordos morais ou ambiguidades. Nesse novo ambiente pós-positivista[10] onde a Constituição e os princípios constitucionais sejam expressos ou implícitos[11], desempenham função central, os juízes e as cortes, frequentemente, necessitam recorrer à moralidade política com a finalidade de aplicar corretamente os princípios[12].

O que favoreceu, particularmente, a ascensão da dignidade humana e, tal tendência tornou-se mais evidente na Alemanha e, alguns outros países da tradição do civil law, assim como em outros países associados ao common law[13], como o Canadá e a África do Sul. Todavia, como já anteriormente demonstrado, esse também foi o caso, em alguma medida, dos EUA.

O ideal da dignidade humana vive firmemente presente na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana na década de 1940, além de figurar no centro da produção acadêmica de alguns dos filósofos do direito e constitucionalistas mais proeminentes das últimas décadas.

Trata-se de conceito multifacetado residente na religião, na filosofia, na política e no direito. Há razoável consenso de que esta constitui valor fundamental subjacente às democracias constitucionais[14] de modo geral, mesmo quando não expressamente prevista nas suas Constituições.

A Alemanha trouxe a visão dominante e concebe a dignidade como valor absoluto, que prevalece em qualquer circunstância. Essa posição tem sido pertinentemente questionada ao longo dos anos.

Em regra geral, no direito não espaço para direitos e conceitos absolutos. Embora, seja razoável afirmar que a dignidade humana normalmente deve prevalecer, existem situações inevitáveis em que ela terá de ceder ao menos parcialmente.

A dignidade humana, portanto, é um valor fundamental, mas não deve ser tomada como absoluta. Valores, sejam políticos ou morais, adentram o mundo do direito usualmente assumindo a forma de princípios. E, embora direitos constitucionais e princípios constitucionais frequentemente se justaponham; a melhor maneira de classificar a dignidade humana é como um princípio jurídico com status constitucional, e não como direito autônomo.

Tida como valor fundamental é igualmente um princípio constitucional, a dignidade humana funciona tanto como justificativa moral quanto como fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais. Não é necessário elaborar de modo mais profundo e detalhado a distinção qualitativa existente entre princípios e regras.

A concepção adotada é a mesma que se tornou prevalente na Teoria do Direito, baseada no trabalho seminal de Ronald Dworkin sobre o assunto, acrescida dos desenvolvimentos posteriores realizados pelo filósofo do Direito alemão Robert Alexy[15].

Lembremos que com Dworkin[16] afirma que os princípios são normas que contêm exigências de justiça ou equidade ou alguma outra exigência de moralidade. Ao contrário das regras, eles não se aplicam na modalidade tudo ou nada, e em certas circunstâncias podem não prevalecer devido à existência de outras razões ou princípios que apontem para uma direção diferente.

Os princípios têm uma dimensão de peso e quando estes colidem é necessário considerar a importância específica de cada um destes naquela situação concreta.

Para Robert Alexy, os princípios são mandados de otimização, cuja aplicação varia em diferentes graus, de acordo com o que é fática e juridicamente possível. Portanto, de acordo com a teoria de Alexy, os princípios estão sujeitos à ponderação e à proporcionalidade[17], e sua pretensão normativa pode ceder, conforme as circunstâncias, a elementos contrapostos. Tais visões doutrinárias não estão imunes a controvérsias.

Os princípios jurídicos são normas que possuem maior ou menor peso de acordo com as circunstâncias. Mas, em qualquer caso, fornecem argumentos que devem ser considerados pelos juízes, e todo princípio exige um compromisso de boa-fé para com sua realização, na medida em que essa realização seja possível.

Os princípios constitucionais desempenham diferentes papéis no sistema jurídico, e no momento da sua aplicação concreta eles sempre geram regras que disciplinam situações específicas. Como forma de distinguir dois dos seus papéis principais, pode-se visualizar um princípio como dois círculos concêntricos.

Logo, qualquer tipo de intervenção sobre a dignidade humana será necessariamente tido como uma violação à dignidade, ainda que seja de alguma forma justificada. Sendo assim, como regra, a dignidade não enfrenta limitação, devendo sempre prevalecer de forma absoluta. Nesse sentido, a concepção absoluta não é compatível com a análise de proporcionalidade[18].

Por sua vez, de acordo com o conceito relativo, exatamente o oposto é verdadeiro. Compreende a dignidade humana como um princípio que pode ser ponderado e relativizado, quando em colisão com outras normas. Logo, a concepção relativa é compatível com a análise da proporcionalidade.

Nesse contexto, diante de um conflito entre princípios, Robert Alexy defende a ponderação[19], buscando-se, no caso concreto, dar maior peso a um em relação a outro. No direito brasileiro, a disposição constitucional da dignidade da pessoa humana, disposta no art. 1°, III, da Constituição Federal de 1988, vem sendo ponderada pelo Judiciário sem nenhum critério e nem argumentação jurídica racional.

Com relação aos casos mais complexos, o pensador Robert Alexy apresentou o exemplo do aborto. Ele falou que nesse caso a otimização entre os princípios em conflito se dá pela regra de balanceamento. Alguém vai ter sacrifícios: ou a mulher, que perde seu direito de autodeterminação, ou a vida daquele que vier a ser objeto do aborto.

Para esse tipo de caso, o professor criou uma fórmula matemática, chamada de fórmula de ponderação ou fórmula peso, que tem a função de descrever a solução de colisões entre princípios. Na fórmula, o doutrinador atribui um peso numérico a cada um dos elementos da equação, que envolvem a intensidade de interferência de um princípio em outro, o peso abstrato de um princípio em relação ao outro, e o grau de confiabilidade ou segurança, que é “a prova dos 9”, que avalia quão confiáveis são as assertivas.

Quando a questão do aborto foi analisada na fórmula matemática do professor, o resultado da equação foi favorável à prática do aborto, já que a sua proibição concreta seria uma interferência muito maior e agressiva ao princípio da autodeterminação da mulher do que permitir o aborto até determinado período. Em resumo, a teoria dos princípios diz que quanto maior o sacrifício de um princípio, maior deverá ser o benefício daquele a que ele se destina a atender.

O palestrante também citou outros conflitos complexos, como a colisão entre os princípios da liberdade de expressão e da proteção da personalidade na internet, que têm sido muito discutidos na Corte Europeia de Direitos Humanos. A solução para o caso também se daria pela equação matemática. Robert Alexy também citou o caso da maconha, em que grupos se dividem a favor ou contra a legalização do seu uso. Na Alemanha, a Corte chegou à conclusão de que não há certeza nesse caso. In: Robert Alexy fala de sua teoria dos direitos fundamentais em conferência no TRT-18. Disponível em: http://www.trt18.jus.br/portal/robert-alexy-fala-de-sua-teoria-dos-principios-fundamentais-em-conferencia-no-trt-18/ . Acesso em 3.3.2021.

Em nosso país, vige ainda a incompreensão do duplo caráter da norma da dignidade humana, transformando-se em artimanha jurídica, tanto pelos julgadores quanto pelas partes do processo. Enfim, a teoria de ponderação de princípios proposta por Robert Alexy constitui uma desculpa perfeita e adequada para sentenciar com elevada discricionariedade e pouca racionalidade, conforme alude Humberto Ávila e Lenio Luiz Streck, manipulando livremente as disposições constitucionais, como a própria dignidade.

Aliás, Streck in litteris:

            "A ponderação é inconstitucional (...) porque o legislador, ao estabelecer, de forma a técnica a ponderação de “normas”, “esqueceu” que o direito é um sistema de regras e princípios e que, portanto, ambas são normas. Logo, ponderar regras é ponderar normas. Entretanto, é vedado ponderar regras, como se pode ver no próprio criador da ponderação contemporânea, Robert Alexy, no âmbito de sua teoria da argumentação jurídica. Ao ponderar regras, o juiz deixará de aplicar uma delas. Só que, para fazer isso, deve lançar mão da jurisdição constitucional ou dos mecanismos que tratam da resolução de antinomias, e não de algo fugidio e vazio como é a ponderação.  A violação, in casu, é do princípio da separação dos poderes e o da legalidade. Juiz não cria normas e tampouco pode deixar de aplicar uma regra válida sem que lance mão dos mecanismos próprios para isso. Se ponderar princípios já é um problema pela falta de critérios, a ponderação de regras é de extrema gravidade, porque transforma o Poder Judiciário em legislador.”.

O círculo interno, próximo do centro, contém o conteúdo essencial do princípio e, é uma fonte direta de direitos e deveres. Por exemplo, o conteúdo essencial da dignidade humana implica na proibição da tortura, mesmo em um ordenamento jurídico no qual não exista nenhuma regra específica, impedindo tal conduta.

É claro que quando já existem regras mais específicas — indicando que os constituintes ou os legisladores detalharam o princípio de modo mais concreto — não há necessidade de se recorrer ao princípio mais abstrato da dignidade humana. Porém, em outro exemplo, nos países onde o direito à privacidade não está expresso na constituição — como nos Estados Unidos — ou o direito geral contra a autoincriminação não está explicitado — como no Brasil — eles podem ser extraídos do significado essencial da dignidade.

Ingo Wolfgang Sarlet destaca que o próprio Supremo Tribunal Federal vem seguindo o entendimento doutrinário majoritário no sentido de compreender a dignidade humana como valor-fonte da ordem jurídica, conforme restou consignado no acórdão proferido no HC n. 87.676/ES, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, cujo julgamento ocorreu em 06.05.2008. Uma vez superada, então, a controvérsia acerca da natureza jurídica da dignidade da pessoa humana, revela-se necessário analisar a dignidade da pessoa humana sob o manto da “abertura material” dos direitos e garantias fundamentais, a partir da jurisprudência da Suprema Corte brasileira.

Estando consciente do elevado grau de indeterminação e do caráter polissêmico do princípio da dignidade da pessoa humana, adverte o doutrinador brasileiro que, com esforço argumentativo, tudo o que se consta no texto constitucional, ainda que de maneira indireta, poderá ser reconduzido ao valor da dignidade da pessoa humana. Entretanto, não é neste exato sentido que o princípio da dignidade da pessoa humana deverá ser utilizado na condição de elemento integrante de uma ideia material de direitos fundamentais, vez que, se assim o fosse, "toda e qualquer posição jurídica estranha ao catálogo poderia (em face de um suposto conteúdo de dignidade da pessoa humana), seguindo a  mesma linha de raciocínio, ser guindada à condição de materialmente fundamental".

Sarlet ainda alerta para a necessidade de cautela por parte do intérprete, especialmente pelo fato de estar-se ampliando o rol de direitos fundamentais da Constituição com as consequências práticas a serem extraídas, não se devendo, por isso, desconsiderar o risco de uma possível desvalorização dos direitos fundamentais, que, vez ou outra, é indicada pela doutrina.

Eis aí, o primeiro papel de um princípio como a dignidade humana: funcionar como uma fonte de direitos — e, consequentemente, de deveres —, incluindo os direitos não expressamente enumerados, que são reconhecidos como parte das sociedades democráticas maduras.

O outro papel principal da dignidade humana é interpretativo. A dignidade humana é parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, como a igualdade, a liberdade ou o direito ao voto (o qual, a propósito, não está expresso no texto da Constituição dos Estados Unidos). Sendo assim, ela vai necessariamente informar a interpretação de tais direitos constitucionais, ajudando a definir o seu sentido nos casos concretos.

Além disso, nos casos envolvendo lacunas no ordenamento jurídico, ambiguidades no direito, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas, a dignidade humana pode ser uma boa bússola na busca da melhor solução. Mais ainda, qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula.

Coerente com a posição ora sustentada de que a dignidade humana não é um valor absoluto é a afirmação de que esta tampouco é um princípio absoluto. De fato, se um princípio constitucional pode estar por trás tanto de um direito fundamental quanto de uma meta coletiva, e se os direitos colidem entre si e com as metas coletivas, um impasse lógico ocorreria.

Afinal, um choque de absolutos não tem solução. Assim, a dignidade humana, como um princípio e valor fundamental, deve ter precedência na maior parte dos casos, mas não necessariamente em todos. E, mais ainda: quanto aos aspectos reais e, não apenas retóricos da dignidade estão presentes na argumentação dos dois lados em conflito, a discussão se torna mais complexa.

Em circunstâncias como essa, o pano de fundo cultural e político pode influenciar o modo de raciocínio do julgador ou da corte, o que, realmente, acontece com frequência, por exemplo, nos casos que envolvem os conflitos entre a privacidade, no sentido de defesa da reputação e a liberdade de imprensa.

Na verdade, este não é um conflito entre a liberdade e a dignidade, mas entre esta como um valor intrínseco e a dignidade como autonomia. Em verdade, os princípios e direitos são categorias intimamente ligadas. Tanto os direitos fundamentais quanto os princípios constitucionais representam uma abertura do sistema jurídico ao sistema da filosofia moral.

Especialmente quando se reconhece a chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que representa uma ordem moral de valores condicionantes da interpretação do sistema jurídico como um todo, a semelhança entre direitos fundamentais e princípios constitucionais. se torna ainda mais evidente.

No entanto, uma vez que a dignidade é reconhecida como o alicerce último de todos os direitos verdadeiramente fundamentais e como fonte de parte do seu conteúdo essencial, seria contraditório considerá-la como um direito em si, já que ela é parte de diferentes direitos.

Além disso, se a dignidade humana fosse considerada um direito fundamental específico ela necessariamente iria ter que ser ponderada com outros direitos fundamentais, o que a colocaria em uma posição mais fraca do que ela teria caso fosse utilizada como um parâmetro externo para aferir soluções possíveis nos casos de colisões de direitos. Como um princípio constitucional, contudo, a dignidade humana pode precisar ser ponderada com outros princípios ou metas coletivas.

Vale lembrar que ela normalmente deve prevalecer, mas nem sempre será esse o caso. É melhor reconhecer esse fato do que tentar negá-lo através de argumentos circulares.

Uma última observação: a dignidade humana, em muitos países, é tida como aplicável tanto às relações entre indivíduos e governo quanto às relações privadas, o que corresponde à chamada eficácia horizontal dos direitos constitucionais (drittwirkung).

Avaliando-se a tensão existente entre direitos individuais e metas coletivas, Ronald Dworkin cunhou frase que se tornou emblemática dentro do contexto de conflito existente entre o indivíduo e Estado. Afinal, os direitos individuais correspondem aos trunfos guardados pelos indivíduos e, a consequência de se definir algo como direito é que para este não pode ser sobrepujado pelo apelo a qualquer meta cotidiana da Administração Pública, mas apenas por uma meta de especial urgência. (In: Dworkin, Ronald. Talking rights Seriously, 1997, p. 92).

Na apreciação da dignidade humana é notável a influência do pensamento kantiano, oriundo do Iluminismo, que é reconhecidamente uma referência central na filosofia moral e jurídica ocidental. Aliás, a ética de Kant é plenamente fulcrada em noções de razão e dever, na capacidade do indivíduo dominar suas paixões e interesses próprios e, ainda, descobrir dentro de si mesmo, a lei moral que deverá orientar sua conduta.

Não obstante da sua dominante influência, o sistema da moral de Kant é, por vezes, questionado por autores que destacam os limites da razão em contraste com o desejo e a paixão e o papel da comunidade onde o indivíduo está inserido na fixação de seus valores éticos. Inegavelmente que existe boa margem para críticas, uma vez que, fora de qualquer dúvida, a razão isoladamente considerada jamais será inteiramente responsável pelo comportamento humano.

Assim, sendo, embora não se deva rejeitar a força da ação moral e da razão prática, é relevante reconhecer a impossibilidade de se conceber uma razão plenamente objetiva e desprovida de diferentes percepções subjetivas do bem e do justo.

Em verdade, o comportamento humano jamais pode ser completamente dissociado de simpatias, afetos e solidariedades, para não mencionar sentimentos menos nobres, como ambições por poder e riqueza. E, mesmo assim, a ética de Kant[20] traz conceitos como o imperativo categórico, autonomia e dignidade, tornando-se parte essencial da gramática e da semântica de todos os estudos sobre o tema.

Algumas noções básicas do pensamento de Kant, são inevitáveis para entender a dignidade humana. Kant dividiu a filosofia em três partes, a saber: lógica, que é a filosofia formal aplicada a todo pensamento; a física que então é lida com as leis da natureza e, ainda descreve o mundo conforme ele é; e a ética[21], que tem como objeto a vontade humana e prescreve o que esta deve ser.

A ética é o domínio da lei moral que é composta por comando que disciplina a vontade humana que está em conformidade com a razão. Tais comandos expressam um dever-ser, um imperativo, que pode ser hipotético ou categórico. O imperativo hipotético identifica uma ação que é boa como um meio para se alcançar algum fim.

O imperativo categórico[22], por sua vez, corresponde a uma ação que é boa em si mesma, independentemente do fato de servir a determinado fim. Ele corresponde a um padrão de racionalidade e representa o que é objetivamente necessário em uma vontade que esteja em conformidade com a razão.

Esse imperativo categórico, ou imperativo de moralidade, foi enunciado por Kant em uma famosa proposição sintética: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade (ou seja, o princípio que a inspira e move) possa se transformar em uma lei universal”. Note-se que em lugar de apresentar um catálogo de virtudes específicas, uma lista do que fazer e do que não fazer, Kant concebeu uma fórmula capaz de determinar a ação ética.

Apesar de Kant ter afirmado que há um único imperativo categórico, reproduzido acima, este apresenta três diferentes formulações deste. O primeiro é conhecido como a fórmula da lei natureza, que declara: Aja como se a máxima que fundamentou sua ação deve-se tornar, pela sua própria vontade, uma lei universal da natureza.

A segunda fórmula é chamada de fórmula da humanidade: Age de modo a utilizar a humanidade, seja em relação à tua própria pessoa ou a qualquer outra, sempre e a todo o tempo como um fim e, nunca meramente, como um meio.

A terceira fórmula é a da autonomia: E isso é feito na presente terceira fórmula do princípio, a saber, a ideia da vontade de cada ser racional como a vontade formuladora da lei universal.

Observa-se que a primeira e a terceira fórmulas são muito próximas, exceto pelo fato de o foco mudar da obediência à lei universal para a sua formulação. Já a segunda fórmula com um aspecto humanista mais destacado e uma ênfase no respeito pelas pessoas, parece oferecer perspectiva diferente.

Contudo, Kant, afirmou que todas as formulações eram equivalentes, assinalando, provavelmente, que elas levavam aos mesmos deveres.  Há dois outros conceitos fundamentais para a ética de Kant são a autonomia e a dignidade. A autonomia é a qualidade de uma vontade que é livre, pois identifica a capacidade do indivíduo de se autodeterminar em conformidade com a representação de certas leis. Uma razão que se autogoverna e, a ideia central é que os indivíduos estão sujeitos apenas às leis que dão a si mesmos.

Um indivíduo autônomo é alguém vinculado somente à sua própria vontade e não àquela de alguma outra pessoa, uma vontade heterônoma. Tais ideias se tornam mais complexas e um tanto contrafáticas quando adicionamos outros elementos da teoria moral de Kant.

Afinal, para Kant, o indivíduo é governado pela razão e, esta é a representação correta de leis morais, sendo que o princípio supremo da moralidade consiste em cada indivíduo dar a si mesmo uma lei que poderia se tornar universal, que uma lei objetiva da razão, sem nenhuma concessão a motivações subjetivas.

A dignidade, por sua vez, dentro da visão kantiana, tem por fundamento a autonomia. Em um mundo no qual todos pautem a sua conduta pelo imperativo categórico — no “reino dos fins”, como escreveu —, tudo tem um preço ou uma dignidade.

As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo preço e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem dignidade. Assim é a natureza singular do ser humano. Portanto, as coisas têm um preço de mercado, mas as pessoas têm um valor interno absoluto denominado dignidade.

Consequentemente, cada ser racional e cada pessoa existe com fim em si mesmo, e não como meio para uso discricionário de uma vontade externa. E, essa é, conforme visto, a segunda formulação do imperativo categórico.

Essas são algumas das ideias e conceitos kantianos que têm tido maior influência nos estudos sobre dignidade humana ao redor do mundo. Condensada em uma única proposição, elas podem ser assim enunciadas: a conduta moral consiste em agir inspirado por uma máxima que possa ser convertida em lei universal; todo homem é um fim em si mesmo, e não deve ser instrumentalizado por projetos alheios; os seres humanos não têm preço nem podem ser substituídos, pois eles são dotados de um valor intrínseco absoluto, ao qual se dá o nome de dignidade.

A dignidade humana se tornou um consenso ética essencial no mundo ocidental, reforçando a rejeição moral ao desastre representado pelo nazifascismo. Desta forma, nenhum documento jurídico nacional ou internacional tentou oferecer definição para o termo, deixando o significado intrínseco da dignidade humana para o entendimento intuitivo.

De fato, a amplitude conceitual da dignidade humana torna difícil elaborar um conceito transnacional que seja capaz de considerar adequadamente toda a miríade de circunstâncias culturais, religiosas, históricas, políticas e sociais que estão vigentes em diferentes partes do mundo. E, na medida em que a dignidade tem ganhado importância, tanto na seara interna quanto no discurso internacional, se faz curial e necessário estabelecer pelo menos certo conteúdo mínimo, a fim de unificar o seu uso e lhe conferir ainda alguma objetividade. Para, enfim, ter como bom termo deve-se aceitar que se trata de uma noção aberta, plástica e plural.

O atual Ministro Luís Roberto Barroso assim, traçou a concepção minimalista, in litteris: a dignidade humana identifica 1. O valor intrínseco de todos os seres humanos; assim como 2. A autonomia de cada indivíduo; e 3. Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário).

Esses três elementos serão analisados na próxima seção, com base em uma perspectiva filosófica que é laica, neutra e universalista. Antes disso se faz necessário, porém, um comentário adicional a respeito de cada uma dessas perspectivas.

Por laicidade entende-se que Igreja e Estado devem ser separados, que a religião é questão privada de cada indivíduo e que, na política e nos assuntos políticos, trazendo visão racional e humanista que deve prevalecer sobre as concepções religiosas.

Tal visão, evidentemente, não deprecia a liberdade de religião, e a crença religiosa é, realmente, opção legítima para milhões de pessoas. Nas democracias maduras e mais aperfeiçoadas, vige um equilíbrio implícito e justo é normalmente atingido: os dogmas religiosos — como milagres, pecado e fé na vida após a morte — são deixados de lado na esfera pública, mas isso não significa que valores de inspiração religiosa — como a santidade da vida ou o dever de respeitar os outros — não possam ser traduzidos em argumentos políticos válidos.

A laicidade é referida também como secularismo, sendo que esse derradeiro termo fora usado pela primeira vez por George Jacob Holyake (The origin and nature of secularism, 1896, p. 50) onde se lê: “Então, como agora, havia inúmeras pessoas, em todos os lugares, a serem atendidas por aqueles que explicavam tudo com base em princípios sobrenaturais, com toda a confiança do conhecimento infinito (...)

Isso me levou à conclusão de que o dever de observar as maneiras da natureza era incumbência de todos os que iriam encontrar verdadeiras condições de aperfeiçoamento humano, ou novas razões para a moralidade — ambas muito necessárias.

Para esse fim, o nome “secularismo” foi dado para certos princípios que tinham como seu objeto o aperfeiçoamento humano através de meios materiais, relacionados com a Ciência como a Providência do homem, e que justificavam a moralidade com considerações que são pertencentes apenas a essa vida”

A neutralidade, nesse contexto, indica que a dignidade humana não seja entendida como exigindo qualquer visão perfeccionista, ideológica ou política particular. Busca-se um conteúdo mínimo de dignidade humana capaz de ser aceito por conservadores, liberais ou socialistas, assim como por pessoas que professam diferentes concepções razoáveis de bem e de vida boa.

A noção de neutralidade é ponto central do pensamento liberal contemporâneo, apesar que esteja longe de atingir aceitação universal. A neutralidade, nesse contexto, indica que a dignidade humana não seja entendida como exigindo qualquer visão perfeccionista, ideológica ou política particular.

Essas noções de laicidade e neutralidade, contudo, representam um esforço para libertar a dignidade humana de qualquer doutrina religiosa ou política abrangente, associando-a com a ideia de razão pública, desenvolvida com maestria por John Rawls.

O universalismo e sua noção correlata, o multiculturalismo implica em respeito e apreço pela diversidade étnica, religiosa e cultural. Desde o fim do século XX, tem se tornado amplamente aceito que o multiculturalismo é fulcrado em valores não somente coerentes com as democracias liberais, mas também exigidos por estas. As minorias têm direito às suas identidades e diferenças, bem como o direito de serem reconhecidas.

Não existe dúvida de que a dignidade humana corrobora com tal entendimento. Porém, em seu essencial significado, tem também uma pretensão universalista, simbolizando o tecido que mantém a família humana unida. Nesse domínio mínimo, o idealismo iluminista se faz necessário, para que possam confrontar práticas e costumes relacionados com a violência, opressão sexual e tirania.

É claro que essa é uma batalha de ideias, a ser vencida com paciência e perseverança. Tropas não conseguirão fazê-lo. E, para esse fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) oferece um bom guia. Pode-se destacar a escolha da expressão universal ao invés de internacional.

A DUDH foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 12 de outubro de 1948, com 48 votos a favor, zero contra e 8 abstenções. Simboliza o mínimo ético a ser perseguido na finalidade de preservar e promover a dignidade humana. Tais princípios e direitos consagrados é vista como soft law, têm sido desenvolvidos e especificados em outros documentos internacionais, considerados como vinculantes, e outros como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 16 de dezembro de 1996. Além de inúmeros outros patrocinados pela ONU, assim como tratados e convenções regionais nas Américas, Europa e África que incorporaram alguns dos conceitos da DUDH.

A dignidade humana e os direitos humanos (ou fundamentais) são intimamente relacionados, como as duas faces de uma mesma moeda ou, para usar uma imagem comum, as duas faces de Jano. Uma, voltada para a filosofia, expressa os valores morais que singularizam todas as pessoas, tornando-as merecedoras de igual respeito e consideração; a outra é voltada para o Direito, contemplando os direitos fundamentais.

Esses últimos representam a moral sob a forma de Direito ou, como assinalado por Jürgen Habermas, “uma fusão do conteúdo moral com o poder de coerção do Direito”. In: Jürgen Habermas. The concept of human dignity and the realistic utopia of human rights. Metaphilosophy, n. 41, p. 464, 470, 2010. (“Como a promessa moral de igual respeito a todos precisa ser traduzida em linguagem jurídica, os direitos humanos exibem uma face de Jano, voltada simultaneamente para a moral e para o Direito. Apesar do seu conteúdo exclusivamente moral, eles têm a forma de direitos individuais aplicáveis”).

O valor intrínseco, o elemento ontológico da dignidade humana está ligado à natureza do ser. Corresponde ao conjunto de características que são inerentes e comuns a todos os seres humanos, e que lhes confere status especial e superior no mundo, distinto do de outros países.

O valor intrínseco é oposto ao valor atribuído ou instrumental, porque é um valor que é um bom em si mesmo e que não tem preço. A singularidade da natureza humana é a combinação de características e traços inerentes que incluem inteligência, sensibilidade e a capacidade de se comunicar.

Há uma consciência crescente, todavia, de que a posição especial da condição humana não autoriza arrogância e indiferença em relação à natureza em geral, incluindo os animais irracionais, que possuem a sua própria espécie de dignidade.

Do valor intrínseco do ser humano decorre um postulado antiutilitarista e outro antiautoritário. O primeiro se manifesta no imperativo categórico de Kant do homem como um fim em si mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de projetos pessoais de outros; o segundo, na ideia de que é o Estado que existe para o indivíduo, e não o contrário.

É por ter o valor intrínseco de cada pessoa como conteúdo essencial que a dignidade humana é, em primo locus, um valor objetivo que não depende de qualquer evento ou experiência e que, portanto, não pode ser concedido ou perdido, mesmo diante do comportamento mais reprovável.

Esta independe até mesmo da própria razão, estando presente em recém-nascidos e, em pessoas senis ou qualquer grau de deficiência mental. No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem de um conjunto de direitos fundamentais.

O primeiro destes é o direito à vida que significa pré-condição básica para o desfrute de qualquer outro direito. A dignidade humana preenche quase plenamente o conteúdo do direito à ida, deixando espaço apenas para poucas situações particulares e controversas, tais como aborto, eutanásia, suicídio assistido e pena de morte.

A guerra e o genocídio são adequadamente compreendidos como circunstâncias patológicas e, o segundo direito relacionado com o valor intrínseco de cada indivíduo é a igualdade perante a lei e na lei. Isso implica na proibição de haver discriminações ilegítimas devido à raça, cor, etnia, nacionalidade, sexo, idade, capacidade mental e no respeito pela diversidade cultural, linguística ou religiosa (o direito ao reconhecimento).

A dignidade humana ocupa apenas uma parte do conteúdo da ideia de igualdade, e em muitas situações pode ser aceitável que se realizem diferenciações entre as pessoas. No mundo contemporâneo isso está particularmente em discussão nos casos envolvendo ações afirmativas e direitos de minorias religiosas. O valor intrínseco também leva a outro direito fundamental, o direito à integridade física e psíquica.

O direito à integridade física abrange a proibição da tortura, do trabalho escravo e das penas cruéis ou degradantes. É no âmbito desse direito que se desenvolvem discussões sobre prisão perpétua, técnicas de interrogatório e condições nas prisões.

Por fim, o direito à integridade psíquica ou mental, na Europa e em muitos países da tradição do civil law[23], compreende o direito à honra pessoal e à imagem, bem como à privacidade. A noção de privacidade nos Estados Unidos, porém, é bastante peculiar.

Na Constituição dos Estados Unidos não há referência expressa à privacidade. De um lado, aspectos da privacidade são protegidos pela proibição de buscas e apreensões não razoáveis, contida na Quarta Emenda. De outro lado, a honra pessoal e o direito à imagem não têm status de direitos constitucionais, diferentemente do que se passa em muitos outros países e do que consta da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

Por fim, a jurisprudência norte-americana trata sob o rótulo de direitos de privacidade situações que em outros países se enquadram na categoria de liberdade e igualdade perante a lei, como o direito ao uso de anticoncepcionais e o direito de praticar atos íntimos entre adultos.

A dignidade humana ocupa apenas uma parte do conteúdo da ideia de igualdade, e em muitas situações, pode ser aceitável que se realizem diferenciações entre as pessoas.

No mundo contemporâneo isso está particularmente em discussão nos casos envolvendo ações afirmativas e direitos de minorias religiosas.  O valor intrínseco também leva a outro direito fundamental, o direito à integridade física e psíquica. O direito à integridade física abrange a proibição da tortura, do trabalho escravo e das penas cruéis ou degradantes.

É no âmbito desse direito que se desenvolvem discussões sobre prisão perpétua, técnicas de interrogatório e condições nas prisões. Por fim, o direito à integridade psíquica ou mental, na Europa e em muitos países da tradição do civil law, compreende o direito à honra pessoal e à imagem, bem como à privacidade. A noção de privacidade nos Estados Unidos, porém, é bastante peculiar.

Existe, pelo mundo todo, uma quantidade razoável de precedentes envolvendo direitos fundamentais derivados da dignidade humana como valor intrínseco. No que se refere ao direito à vida, o aborto é permitido nos primeiros estágios da gravidez na maioria das democracias do Atlântico Norte, incluindo Estados Unidos, Canadá, França, Reino Unido e Alemanha. A dignidade humana, nesses países, não tem sido interpretada como um reforço do direito à vida do feto em contraposição à vontade da gestante.

Esse ponto será retomado na última seção do presente livro. Ao contrário do aborto, o suicídio assistido é ilegal na maioria dos países do mundo, embora haja um número crescente de exceções, que incluem Holanda, Bélgica, Colômbia e Luxemburgo, entre outros. Nos Estados Unidos, ele é permitido nos Estados do Oregon, Washington e Montana.

A principal preocupação aqui não é com a cessação da vida dos pacientes que são doentes terminais, em estágio vegetativo ou sofrendo de modo insuportável e permanente, mas com a possibilidade de pessoas vulneráveis sofrerem abusos. Quanto à pena de morte, ela foi banida da Europa e da maioria dos países do mundo, sendo que os Estados Unidos continuam como uma exceção marcante entre as democracias ocidentais.

Embora possua alicerces na tradição histórica americana, é difícil defender que a pena de morte seja compatível com a dignidade humana, já que implica na objetificação completa do indivíduo cuja vida e humanidade sucumbem diante de um suposto interesse público — altamente questionável — que seria realizado por meio dessa forma de retribuição.

Em referência à igualdade, a prática de ações afirmativas foi acolhida em países como EUA, Canadá e Brasil e é expressamente autorizada pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Por outro lado, os direitos das minorias religiosas têm sofrido derrotas, especialmente na Europa, onde o uso do véu islâmico integral em público ou foi proibido ou é objeto de discussão em vários Estados Membros.

Nesses países, o Judiciário e o Legislativo têm deixado de conferir proteção plena à dignidade de grupos minoritários, considerando que o direito à identidade desses grupos é sobrepujado por um alegado interesse público relativo à segurança, preservação cultural e proteção dos direitos das mulheres.

No que se refere à integridade física ou, de acordo com a terminologia americana, penas cruéis e incomuns juízes e juristas têm repetidamente afirmado que a tortura é uma prática completamente inadmissível. Mais, recentemente, nos EUA, a Suprema Corte declarou que a superlotação das prisões na Califórnia violava a Oitava Emenda.

O voto majoritário, redigido pelo Justice Kennedy[24], fez referências à dignidade, à dignidade do homem e à dignidade humana. E, finalmente, tratando-se da integridade psíquica, o típico desafio no mundo contemporâneo diz respeito ao conflito entre o direito à privacidade (entendimento como honra pessoal ou imagem) e a liberdade de expressão, particularmente, a de imprensa.

Os aspectos da dignidade humana estão presentes em ambos os lados dignidade como valor intrínseco versus dignidade como autonomia e os resultados desses casos são influenciados por contextos culturais distintos. Um exemplo recente desse conflito entre culturas jurídicas se deu quando a polícia de Nova York efetuou a prisão de uma figura pública francesa, que foi então exposta algemada à imprensa e obrigada a caminhar diante das câmeras por ocasião da apresentação ao juiz. Embora, essa seja uma prática policial comum nos EUA, onde é chamada de perp walk[25], o episódio fora considerado como violação de privacidade desnecessária e abusiva.

A autonomia é elemento ético da dignidade humana, é fundamento do livre arbítrio e que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma boa vida. Trata-se de autodeterminação, a pessoa autônoma define as regras que irão disciplinar a sua ida. E, dentro da concepção de Kant de autonomia, deve ser entendida como a vontade orientada pela lei moral (autonomia moral).

Voltando-se para a autonomia pessoal que é valorativamente neutra e significa o livre exercício da vontade por cada pessoa, segundo seus próprios valores, interesses e desejos. A autonomia pressupõe o preenchimento de certas condições, como a razão que é a capacidade mental de tomar as decisões informadas, a independência, ou seja, a ausência de coerção, coação, ou de manipulação e de privações essenciais e a escolha (a existência real de alternativas).

Note-se que no sistema moral kantiano a autonomia é a vontade que não sofre influências heterônomas e, corresponde à ideia de liberdade. Contudo, na prática política e na vida social, a vontade individual é restringida pelo direito e pelos costumes e normas sociais.

Desse modo, ao contrário da autonomia moral, a autonomia pessoal, embora esteja na origem da liberdade, corresponde apenas ao seu núcleo essencial. A liberdade tem um alcance mais amplo, que pode ser limitado por forças externas legítimas. Mas, a autonomia é a parte da liberdade que não pode ser suprimida por interferências sociais ou estatais por abranger as decisões pessoais básicas, como as escolhas relacionadas com religião, relacionamentos pessoais, profissão e concepções políticas, entre outras.

A autonomia, portanto, corresponde à capacidade de alguém tomar decisões e de fazer escolhas pessoais ao longo da vida, baseadas na sua própria concepção de bem, sem influências externas indevidas.

Quanto às suas implicações jurídicas, a autonomia está subjacente a um conjunto de direitos fundamentais associados com o constitucionalismo democrático, incluindo as liberdades básicas (autonomia privada) e o direito à participação política (autonomia pública).

Com a ascensão do Estado de bem-estar social, muitos países ao redor do mundo passaram a incluir, na equação que resulta em verdadeira e efetiva autonomia, o direito fundamental social a condições mínimas de vida (o mínimo existencial). Analisa-se brevemente, a seguir, cada uma dessas três categorias: autonomia privada, autonomia pública e mínimo existencial[26].

A autonomia privada é o conceito-chave por trás das liberdades individuais, incluindo aquelas que nos Estados Unidos são normalmente protegidas sob o guarda-chuva da privacidade. Dessa forma, as liberdades de religião, expressão e associação, assim como os direitos sexuais e reprodutivos, são importantes manifestações da autonomia privada. É claro que da autonomia privada não derivam direitos absolutos.

É importante relembrar que a autonomia está apenas no núcleo essencial das diferentes liberdades e direitos, não ocupando toda a sua extensão. Por exemplo: como resultado da sua liberdade de ir e vir, um indivíduo pode decidir onde fixar residência, uma escolha estritamente pessoal; do mesmo modo, ele pode decidir onde passar suas próximas férias.

Mas se uma legislação ou regulação válida o proibir de visitar um determinado país — digamos, a Coreia do Norte ou o Afeganistão — não se poderia pensar, ao menos em princípio, que essa restrição represente uma violação à sua dignidade humana.

Finalmente, podem existir colisões entre a autonomia de indivíduos diferentes, assim como entre a autonomia, de um lado, e a dignidade como valor intrínseco ou como valor comunitário, do outro. Assim, a autonomia privada, como um elemento essencial da dignidade humana, oferece um relevante parâmetro para a definição do conteúdo e do alcance dos direitos e liberdades, mas não dispensa o raciocínio jurídico da necessidade de sopesar fatos complexos e de levar em consideração normas aparentemente contraditórias, com a finalidade de atingir um equilíbrio adequado diante das circunstâncias.

Nos Estados Unidos, a questão foi levantada pela primeira vez em um famoso discurso do presidente Franklin Delano Roosevelt e na sua proposta subsequente de uma “segunda Bill of Rights”, apresentada em 11 de janeiro de 1944, que contém menção expressa aos direitos à alimentação adequada, vestuário, moradia decente, educação e cuidados médicos.

Embora Roosevelt acreditasse que a implementação dessa segunda geração de direitos fosse um dever do Congresso e não do Judiciário, Cass Sunstein defendeu convincentemente que, em casos julgados entre o início da década de 1940 e os primeiros anos da década de 1970, uma série de decisões da Suprema Corte chegou muito perto de reconhecer alguns direitos sociais e econômicos como verdadeiros direitos constitucionais.

Segundo Sunstein[27], uma contrarrevolução ocorreu após Richard Nixon ter sido eleito presidente em 1968, notadamente por causa de suas indicações para a Suprema Corte. Como consequência, a jurisprudência da Corte ficou mais alinhada com a visão tradicional dominante no Direito americano, segundo a qual os direitos fundamentais não conferem aos seus titulares direitos a prestações estatais positivas. Mais recentemente, a Reforma da Saúde de 2010 reacendeu esse debate.

A autonomia privada corresponde ao que Benjamin Constant chamou de liberdade dos modernos, baseada nas liberdades civis, no Estado de Direito e na proteção contra a interferência estatal abusiva.  A autonomia pública, por seu azo, está relacionada à liberdade dos antigos, de liberdade republicana relacionada com a cidadania e com a participação na vida política.

E, os gregos antigos enxergavam a cidadania como uma obrigação moral e dedicavam uma parte substancial do seu tempo e da sua energia nos assuntos públicos, o que era facilitado pelo fato de os escravos realizarem a maior parte do trabalho.

Como a democracia é associação para autogoverno, exige uma relação mútua entre cidadão e a vontade coletiva. Assim cada cidadão tem o direito de participar do governo direta ou indiretamente. E, nesse sentido, a autonomia pública implica nos direitos de votar, concorrer aos cargos públicos, ser membro de associações políticas, fazer parte de movimentos sociais e, especialmente, o direito às condições necessárias para participar do debate público. Idealmente, portanto, todas as leis que os indivíduos são obrigados a respeitar foram criadas com a sua participação, o que lhes assegura o status de indivíduos autônomos, e não o de meros súditos heterônomos.

No que se refere à autonomia pública, uma importante decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos considerou que uma legislação do Reino Unido que negava aos presos o direito ao voto violava a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Embora essa decisão tenha sido duramente questionada pelos membros do Parlamento Inglês, a Corte corretamente declarou que “os prisioneiros em geral continuam a gozar dos direitos fundamentais garantidos pela convenção [incluindo o direito ao voto], com exceção do direito à liberdade”.

Por fim, ínsito à ideia de dignidade humana está o conceito de mínimo existencial, também chamado de mínimo social, ou o direito básico às provisões necessárias para que se viva dignamente.

A igualdade, em sentido material ou substantivo, e especialmente a autonomia (pública e privada) são ideias dependentes do fato de os indivíduos serem “livres da necessidade” (free from want), no sentido de que suas necessidades vitais essenciais sejam satisfeitas.

Para serem livres, iguais e capazes de exercer uma cidadania responsável, os indivíduos precisam estar além de limiares mínimos de bem-estar, sob pena de a autonomia se tornar uma mera ficção, e a verdadeira dignidade humana não existir. Isso exige o acesso a algumas prestações essenciais — como educação básica e serviços de saúde —, assim como a satisfação de algumas necessidades elementares, como alimentação, água, vestuário e abrigo.

O mínimo existencial, portanto, está no núcleo essencial dos direitos sociais e econômicos, cuja existência como direitos realmente fundamentais — e não como meros privilégios dependentes do processo político — é bastante controvertida em alguns países.

A sindicabilidade judicial desses direitos é complexa e produz uma série de impasses em todos os lugares. Apesar dessas dificuldades, a ideia de direitos sociais mínimos que podem ser efetivados pelo Judiciário, não sendo inteiramente dependentes da ação legislativa, foi aceita pela jurisprudência de diversos países, incluindo Alemanha, África do Sul e Brasil, para citar exemplos de diferentes continentes. De acordo com as circunstâncias, os juízes e cortes podem tanto determinar a concessão de um benefício individual, quanto, ao menos, exigir uma ação razoável do Estado.

O mínimo existencial está no cerne da dignidade humana e que a autonomia não pode existir onde as escolhas são ditadas somente por necessidades pessoais. Desse modo, portanto, aos muito pobres deve ser proteção constitucional.

O terceiro e derradeiro elemento da dignidade humana é valor comunitário, também chamada de dignidade como restrição ou dignidade como heteronomia, representa o elemento social da dignidade. Os contornos da dignidade humana são moldados pelas relações do indivíduo com os outros, assim como o mundo ao seu redor.

A autonomia protege a pessoa de se tornar apenas mais uma engrenagem do maquinário social. Contudo, como na famosa passagem de John Donne, “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma”. A expressão “valor comunitário”, que é bastante ambígua, é usada aqui, por convenção, para identificar duas diferentes forças exógenas que agem sobre o indivíduo: 1. Os compromissos, valores e “crenças compartilhadas” de um grupo social, e 2. As normas impostas pelo Estado.

O indivíduo, portanto, vive dentro de si mesmo, de uma comunidade e de um Estado. Sua autonomia pessoal é restringida por valores, costumes e direitos de outras pessoas tão livres e iguais quanto ele, assim como pela regulação estatal coercitiva. Autonomia, comunidade e Estado.

Em um interessante livro, Robert Post[28] identificou, de modo similar, três formas distintas de ordem social: comunidade (“um mundo compartilhado de fé e destino comuns”), administração (a organização instrumental da vida social através do direito para alcançar objetivos específicos) e democracia (um arranjo que incorpora o objetivo da autodeterminação individual e coletiva). Essas três formas de ordem social pressupõem e dependem umas das outras, mas estão também em constante tensão.

A dignidade como valor comunitário enfatiza, portanto, o papel do Estado e da comunidade no estabelecimento de metas coletivas e de restrições sobre direitos e liberdades individuais em nome de certa concepção de vida boa.

A questão relevante aqui é saber em quais circunstâncias e em que grau essas ações devem ser consideradas legítimas em uma democracia constitucional. A máxima liberal de que o Estado deve ser neutro em relação às diversas concepções de bem em uma sociedade pluralista não é incompatível, obviamente, com restrições resultantes da necessária coexistência entre diferentes pontos de vista e de direitos potencialmente conflitantes.

Tais interferências, porém, devem ser justificadas sobre as bases de uma ideia legítima de justiça, de um consenso sobreposto, que possa ser compartilhado pela maioria dos indivíduos e grupos.

O valor comunitário, como uma restrição sobre a autonomia pessoal, busca sua legitimidade na realização de três objetivos: 1. A proteção dos direitos e da dignidade de terceiros; 2. A proteção dos direitos e da dignidade do próprio indivíduo; e 3. A proteção dos valores sociais compartilhados.

Embora Kant seja normalmente associado com a dignidade como autonomia, a verdade é que seu trabalho fornece bases morais para a ideia de dignidade como valor comunitário, da maneira como aqui apresentada. De fato, o sistema ético kantiano é fundado sobre um dever de moralidade que inclui o respeito por outros e por si mesmo.

Nos seus estudos sobre bioética e biodireito, Beyleveld e Brownsword exploraram em profundidade essa concepção kantiana de “dignidade humana como restrição”, centrada nas noções de deveres e responsabilidades, em oposição à “dignidade humana como empoderamento”, que essencialmente se refere aos direitos.

Enfim, conforme leciona Luiz Edson Fachin, a Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, que procura garantir um mínimo de patrimônio com base no ordenamento jurídico, ou seja, deve o indivíduo ter o mínimo existencial como forma de garantir-lhe a sua dignidade[29].

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Notas:


[1] Giovanni nasceu em Mirandola, na Itália, em 24 de fevereiro de 1463. Veio de uma família nobre e de muitas poses, além de muito influente na política e na arte Renascentista italiana.  Era filho de Francesco I, Lorde de Mirandola e Conde de Concórdia (1415 – 1467) e de Giulia, filha de Feltrino Boiardo, Conde de Scandiano (Itália). Teve dois irmãos, ambos muitos anos mais velhos, eram eles: Conde Galeotto (1442 – 1499), que seguiu com a dinastia, e Antonio (1444 – 1451), que virou general do exército Imperial. Assim, com tantas influências diferentes, Pico tentou, em suas 900 teses, conciliar religião e filosofia, catolicismo e Cabbala, Aristóteles e Platão. Já em Roma, em dezembro de 1486, ele publicou suas 900 teses e se ofereceu para pagar os custos da viagem de qualquer filósofo que se dispusesse a ir à Roma para discuti-las em um debate público. Também nesse ano, publicou “De hominis dignitate oratio” (Discurso sobre a Dignidade do Home) que serviu de introdução às teses.

[2] Em Justice for Hedgehogs, R. Dworkin sustenta as teses da unidade do valor e da dicotomia fato/valor, delimitando a moralidade como um domínio epistemológico autônomo. Consequentemente, a abordagem positivista deve ser rejeitada no que concerne à moralidade. Para ele, como o conceito de direto cumpre uma função de justificação de determinadas práticas sociais, ele pertence ao campo da moralidade. Portanto, sua análise não pode ser moralmente neutra. O presente trabalho sustenta que Dworkin falha ao não reconhecer que nem toda valoração tem implicações morais, ainda que ele esteja certo ao afirmar que o entendimento de um conceito valorativo é produto de uma intepretação construtiva. A partir do realismo pragmático de H. Putnam, pretende-se recorrer à ciência como exemplo de uma atividade valorativamente carregada, mas moralmente neutra. Conclui-se que é possível a coexistência de um conceito positivo e outro normativo de direito, cada um demandando uma abordagem teórica própria.

[3] Justice for Hedgehogs – Justiça para Ouriços – é o último livro publicado em vida por Ronald Dworkin, lançado originalmente no ano de 2011. Dworkin sustenta a existência de verdades objetivas sobre o valor.  Trata-se de uma compreensão diretamente oposto da ideia de que os valores expressam compromissos ou preferências. Após décadas de estudos que enfatizaram a necessidade de uma leitura moral do direito, o filósofo americano Ronald Dworkin publicou, em 2011, o livro Justice for Hedgehogs, em que ele apresenta explicitamente sua teoria da justiça. O presente artigo analisa a teoria exposta, evidenciando a estrutura dos seus argumentos, mostrando como Dworkin adota uma metodologia aristotélica (ao elaborar interpretações capazes de dar sentido às práticas sociais efetivas) que o conduz a uma conclusão platônica (ao afirmar a unidade fundamental dos valores). Sustenta-se, ao final, que esse projeto ético não é consistente, eis que a análise das práticas efetivas não conduz ao reconhecimento da unidade do bem, mas apenas ao reconhecimento de que a tradição liberal em que Dworkin se insere tem um discurso universalista que se baseia na existência de uma noção unitária do bem. Assim, a autocompreensão moral da moralidade proposta por Dworkin gera um discurso de matriz mais teológica que filosófica, pois baseia sua validade na negação da possibilidade de uma crítica filosófica que coloque em questão os pressupostos morais assumidos pelo autor.

[4] Hard-cases, standard-case e leading-case são expressões empregadas no direito comum anglo-americano para designar ações judiciais que, por versarem sobre questões jurídicas complexas e inéditas, não podem ser submetidas a uma regra de direito clara e precisa. Na língua portuguesa, a expressão jurídica hard-case significa, literalmente, “caso difícil” ou “caso problemático”. Já as expressões standard-case e leading-case, utilizadas como sinônimas em língua inglesa, podem ser traduzidas para o português como “caso paradigmático” e “caso líder”, respectivamente. Um caso paradigmático sempre decorrerá de uma causa difícil ou problemático, embora um caso difícil nem sempre se torne um caso paradigmático.

[5] Georg Jellinek (1851-1911) foi filósofo do direito e juiz alemão. Professor na Universidade de Basileia e na Universidade de Heidelberg, publicou várias obras sobre filosofia do direito e ciência jurídica, dentre as quais se destaca Teoria Geral do Estado onde sustenta que a soberania recai sobre o Estado e não sobre a nação, que é um simples órgão daquele e as Teoria da Soberania do Estado e a Teoria do Mínimo Ético. Elogiada como irrepreensível por Paulo Bonavides, um dos maiores constitucionalistas do Brasil, é a definição de Jellinek de Estado como "corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando."

[6] François Geny (1861-1959) foi um jurista francês, célebre pela sua crítica ao método de interpretação baseado na exegese de textos legais e regulamentares, e que mostrou a força criativa do costume e propôs fazer um grande movimento à livre pesquisa científica dos métodos de interpretação. Numa época quando se ensinava o Código Civil Francês de 1804 nas cadeiras de direito civil, Gény escolheu um método de interpretação independente da vontade do legislador, entendendo que tal vontade não prevalecia ao longo dos anos. No seu Método de Interpretação e Fontes em Direito Privado Positivo: Ensaio Crítico, publicado em 1899, ele procura demonstrar que não é necessário procurar na lei mais soluções além das que estão contidas em sua fórmula e que, sobretudo, o costume, a tradição doutrinária e a livre investigação científica forneciam ou criavam o complemento de um direito positivo que não era vinculado artificialmente à lei. Em Ciência e Técnica em Direito Privado Positivo, publicado entre 1914 e 1924, Gény procura descobrir a exata fonte de onde brotam os princípios e as regras, ou seja, o direito em si, e a atingir pelas vozes combinadas do conhecimento e da ação. Segundo ele, a ciência se serve de todos os procedimentos do conhecimento e se aplica ao dado. Sociologia, economia, linguística, filosofia e teologia figuraram entre as fontes da livre investigação científica.

[7] Oliver Wendell Holmes (1809-1894) foi um médico, professor, palestrante e autor norte-americano. Considerado pelos seus pares como um dos melhores escritores do século XIX, é considerado um membro do Poets Fireside. Sua obra em prosa mais famosa é Breakfast-Table, que começou com o The Autocrat of the Breakfast-Table (1858). Ele é reconhecido como um importante reformador da medicina. Após graduar-se em Harvard em 1829, ele estudou direito antes de voltar à medicina. Começou a escrever cedo. Uma de suas obras mais famosas é "Old Ironsides", que foi publicada em 1830. Durante seu tempo de professor, ele se tornou um defensor de várias reformas. Postulou a polêmica ideia de que os médicos eram capazes de levar a febre puerperal de paciente para paciente. Quando Holmes se aposentou da Universidade de Harvard em 1882 ele continuou a escrever poesia, romances e ensaios, até sua morte em 1894.

[8] É relevante sublinhar que a própria definição de realismo jurídico norte-americano não é consensual entre os historiadores. Geralmente, se atribui esse movimento de conjunto de pensamentos jurídicos produzidos por professores de Columbia e Yale entre 1920 a 1930 (Karl Llewelly e Robert Lee Hale, 1884-1969, de Columbia e Walter Wheeler Cook, 1873-1943, e Arthur Linton Corbin, 1874-1967, de Yale). No entanto, tal definição exclui do movimento as influências que antecederam a esses doutrinadores, dificultando ainda mais a elaboração de uma delimitação precisa do que foi o realismo jurídico nos EUA. Em grande parte, continuou o projeto do Progressive Legal Thought de atacar as tentativas dos autores clássicos (Classical Legal Thought) do final do século XIX de criar um modelo que separasse rigorosamente o direito da política, representando esse direito como neutro e natural.

[9] (KENNEDY, David; FISHER, William W. The Canon of American Legal Thought. Princeton University Press. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/248692621_David_Kennedy_and_William_W_Fisher_III_eds_The_Canon_of_American_Legal_Thought_Princeton_and_Oxford_Princeton_University_Press_2295_Pp_925_isbn_0_691_12000_5&prev=search&pto=aue  Acesso em 03.03.2021)

[10] O pós-positivismo é também chamado de pós-empiricismo sendo uma instância meta teorética que critica e aperfeiçoa o positivismo. Os pós-positivistas acreditam que o conhecimento humano não é baseado no incontestável em bases pétreas, mas sim, em hipóteses. Como o conhecimento humano é inevitavelmente hipotético, a afirmação de suas suposições está assegurada ou, mais especificamente, justificada por uma série de garantias, as quais podem ser modificadas ou descartadas no decorrer de mais investigações. Entretanto, o pós-positivismo não é uma forma de relativismo, e geralmente mantém a ideia da verdade objetiva. Um dos pensadores fundadores do pós-positivismo foi Karl Popper e, sua investida na falsificação é uma crítica à ideia de verificabilidade do positivismo lógico. O falsificacionismo declara que é impossível verificar se uma crença é verdadeira, embora seja possível rejeitar falsas crenças se elas forem objetivamente provadas falsas, pondo em prática a ideia proposta de falsificação. A ideia de Thomas Kuhn da mudança de paradigma oferece uma crítica mais forte ao positivismo, argumentando que não apenas teorias individuais, mas toda a visão de mundo deve mudar em resposta à evidência. O pós-positivismo é um melhoramento do positivismo que reconhece estas e outras críticas contra o positivismo lógico. Não é uma rejeição ao método científico, mas uma reforma para responder a essas críticas. Preserva as bases do positivismo: o realismo ontológico, a possibilidade e o desejo pela verdade objetiva, e o uso da metodologia experimental.

[11] É o caso, por exemplo, do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, princípio da efetividade, princípio da adequação, princípio da lealdade ou boa-fé, entre outros, todos corolários do devido processo legal, sendo princípios processuais constitucionais implícitos.

[12] Ao longo dos anos o conceito de princípio passou por três fases a saber: a) Fase jusnaturalista, os princípios existem apenas de forma abstrata e sua normatividade é nula ou duvidosa; b) Fase juspositivista, onde os princípios passam a fazer parte dos Códigos e leis infraconstitucionais como fonte normativa subsidiaria; c) Pós-positivismo, os princípios passam a ser constitucionalizados e se tornam os pilares de todo o ordenamento jurídico.

[13] As origens do common law remontam à conquista normanda da Inglaterra em 1066 com a Batalha de Hastings, que levou à centralização do governo, incluindo a administração da justiça, trazendo para a Inglaterra, um poder que, além de ser forte e centralizado, era também dotado de larga experiência administrativa. Nesse período, surgiu o feudalismo na Inglaterra e desapareceu a época tribal. Os conquistadores normandos estabeleceram Cortes Reais e um sistema de justiça real que gradualmente foi substituindo as antigas Cortes e regras feudais. Nesse processo de centralização da justiça, os juízes desenvolveram novos procedimentos e remédios, bem como um novo corpo de direito substantivo que seria aplicado a todos os cidadãos ingleses, o que justifica o nome de common law, como direito comum a todos, em oposição aos costumes locais. Ou seja, common law significava o direito comum a todo Reino da Inglaterra, comum justamente porque se decidia de maneira centralizada pelas Cortes Reais de Justiça de Westminster. Mais tarde, o common law passou a fazer contraste com o statute law e com a equity.

[14] Inegavelmente, a tensão entre democracia política e Estado Constitucional ocupa um lugar central em estudos de direito constitucional, ciência e filosofia política, dentre outros. Mas a centralidade do problema não implica sua inevitabilidade. De fato, o casamento entre as duas ideias parece ser tão perfeito que elas comumente são apresentadas numa forma indissociada. “Expressões do tipo ‘democracia constitucional’ ou Estado ‘democrático-constitucional’ parecem reforçar, com a unidade do ‘nome’, a coerência intrínseca da ‘coisa’”. Como se houvessem nascido uma para a outra, constituição e democracia aparecem geralmente de mãos dadas. O conceito da autoridade superior da Constituição é, por sua vez, intimamente ligado à ideia de soberania popular [...] é invocando o caráter da Constituição como uma expressão da vontade popular de limitar o exercício do poder, que sua força obrigatória sobre os diferentes ramos de governo, inclusive o legislativo, tem sido justificada e aplicada pela Suprema Corte dos EUA.

[15] Seguindo os ensinamentos de Alexy, o ilustre jurista alemão se posiciona no sentido de que princípios também são normas, porque ambos se formulam com amparo em expressões básicas, como mandamento permissão e proibição. Completa afirmando que os princípios e as regras são fundamentos para concepção de juízos de dever, porém de espécies diferentes. Alexy afirma que a diferença entre princípios e regras é a diferença entre espécies de uma mesma ordem, as normas. Pondera que um dos principais critérios para diferenciar um e outro é o da generalidade. Enquanto os princípios são normas com alto grau de generalidade, as regras são normas com baixo grau de generalidade.

[16] Segundo Dworkin, o direito à dignidade pode ser entendido como (...) o direito de viver em condições quaisquer que sejam, nas quais o amor-próprio é possível ou pertinente (...) direito de não ser vítima da indignidade". Em síntese, é o direito da pessoa não ser tratada com desrespeito dentro da comunidade e cultura na qual vive.  Isso explica porque, por exemplo, devemos tratar de forma digna presidiários ou, na forma negativa, porque exista a impossibilidade de tratá-los de maneira considerada cruel. Nesse sentido, o pressuposto da dignidade enquanto regulador das ações dos indivíduos e do Estado exige que a comunidade lance mão de qualquer recurso necessário para assegurá-lo. No caso do presidiário, mesmo que a pessoa seja privada de liberdades (limitação da autonomia), isso não nos autoriza a um tipo de tratamento que comprometa sua condição de dignidade ao impor tortura, trabalho escravo, privação de alimentação, assistência jurídica, alojamento com mínimo de infraestrutura etc.

[17] O princípio da proporcionalidade tem o objetivo de coibir excessos desarrazoados, por meio da aferição da compatibilidade entre os meios e os fins da atuação administrativa, para evitar restrições desnecessárias ou abusivas. O princípio da proporcionalidade, que se identifica com a razoabilidade, tem três elementos ou subprincípios: a) adequação: o ato administrativo deve ser efetivamente capaz de atingir os objetivos pretendidos; b) necessidade: o ato administrativo utilizado deve ser, de todos os meios existentes, o menos restritivo aos direitos individuais; c) proporcionalidade em sentido estrito: deve haver uma proporção adequada entre os meios utilizados e os fins desejados. Proíbe não só o excesso (exagerada utilização de meios em relação ao objetivo almejado), mas também a insuficiência de proteção (os meios utilizados estão aquém do necessário para alcançar a finalidade do ato). A proporcionalidade em sentido estrito tem importância fundamental na aplicação das sanções. Assim, a gravidade da sanção deve ser equivalente à gravidade da infração praticada. Por isso, o art. 128 da Lei 8.112/90 determina que na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida.

[18] Podem ser tecidas como principais críticas à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em questões envolvendo a análise do princípio da proporcionalidade:

- Não se observa uma maior preocupação em fundamentar a escolha de qual direito fundamental deve prevalecer no caso concreto, sem uma reflexão aprofundada, sem uma argumentação criteriosa e demonstração de suas premissas; no mais das vezes são apresentados argumentos frágeis e simplistas;

- Os Ministros não deixam claro o que significa adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, dando margem para que qualquer argumento se relacione o fim da medida e seu meio, e conclua-se que a medida não é razoável; assim, é fácil se perceber em alguns acórdãos a manipulação dos fins da medida no momento de considerá-la inadequada, o fazendo por meio de suas concepções pessoais e preconceitos e não através de um procedimento adequado;

- Há divergências entre os Ministros no tocante ao conceito de necessidade, se abrangeria somente a necessidade de se atingir determinado fim, ou se também abrangeria apenas o fomento e promoção de tal fim, ainda que o objetivo não seja completamente realizado; a Min. Ellen Gracie em seu voto na Adin 1040 traz importante discussão sobre tais questões, considerando não apenas a necessidade de alcance completo da finalidade, mas também a necessidade de fomento, mesmo que não alcance o fim colimado;

- Não há uma aplicação estruturada da proporcionalidade, nem mesmo da razoabilidade os quais envolvem um elevado grau de subjetividade, em razão da necessária ponderação e aferição da compatibilidade entre meios e fins. Assim, seria evitada a subjetividade e a aplicação retórica, pautada na conveniência e diferenciada em cada caso, em ofensa ao princípio da isonomia, através de um ônus argumentativo maior, bem como através do necessário procedimento para se aplicar corretamente o princípio da proporcionalidade;

- O princípio da dignidade humana é utilizado muitas vezes como sendo um princípio superior em relação aos demais direitos fundamentais, possuindo uma suposta hierarquização, contudo, nem sempre se tem presente tal distinção nem tampouco é analisada sua finalidade de servir como limite, como mínimo legal intransponível;

- Recentes julgados começaram a analisar o conflito entre os princípios da proteção do interesse público e do interesse privado por meio da ponderação via princípio da proporcionalidade, contudo, tal relativização por meio de tal procedimento e a correspondente técnica só se dá em algumas situações pontuais; a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais se fazia presente com maior ênfase a partir de 1960 até 1988; o julgamento do RE 153.531-8 é um exemplo importante da aplicação do princípio da proporcionalidade para resolver o conflito entre interesse público e privado, não tomando a noção de interesse público como um dogma, mas sim compreendida de maneira a ter de se compatibilizar com o interesse privado, utilizando-se da técnica da ponderação;

- ocorre a simples fundamentação de diversos julgados com base na doutrina, sem explicitação e análise pormenorizada do princípio da proporcionalidade, através do procedimento adequado e necessário, através da análise da adequação, necessidade e razoabilidade; os julgados não são criteriosos já que não apresentam os fundamentos e a estruturação do princípio da proporcionalidade, ou seja, não se referem na maioria das vezes às subcategorias necessárias à aplicação deste princípio, donde não ser feita a análise adequada dos três subprincípios;

- Há uma associação entre razoabilidade da decisão e o princípio da proporcionalidade, sem maiores considerações, além da utilização de termos vagos;

-  Há superficialidade nos votos, na medida em que não explicam porque o ato ou a lei sub judice não seriam razoável/proporcional; não costuma haver exposição das suas referências metodológicas pelos ministros;

- Os mesmos Ministros em diversos acórdãos partem de premissas declaradamente diversas, ou seja, partem de postulados diferentes caso a caso, havendo patente incoerência na aplicação de métodos jurídicos de interpretação.

[19] Para Robert Alexy, a ponderação é um método representado pela aplicação de um dos elementos parciais da proporcionalidade, a proporcionalidade em sentido estrito. Para chegar nela, contudo, é imperioso percorrer o caminho dos outros elementos da proporcionalidade – adequação e necessidade.

A ponderação consiste no método necessário ao equacionamento das colisões entre princípios da Lei Maior, onde se busca alcançar um ponto ótimo, em que a restrição a cada um dos direitos fundamentais envolvidos seja a menor possível, na medida exata à salvaguarda do direito contraposto.

[20] O conceito de dignidade da pessoa humana, na filosofia de Immanuel Kant, é apreendido na obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. A problemática central do livro refere-se à seguinte questão: como devo agir para que a minha ação seja boa? A resposta à referida indagação fará menção ao conceito de dignidade para Kant. O filósofo responde à indagação “Como devo agir para que a minha ação seja boa” através da seguinte metodologia: a) conceituação da ação boa através da boa vontade; b) utilização da razão pura, ou a priori, que exclui as regras da experiência (empíricas) como orientadoras da ação humana, antes, vale-se de regra existente na razão independentemente de qualquer experiência; c) estabelecimento de uma lei universal que garanta a ação boa; d) estabelecimento da finalidade fundamental da lei universal; e) o dever como único motivo racional que impele o sujeito a agir conforme a lei universal.

[21] Atendo-se, ainda, ao estudo da ética – do viver bem -, Ronald Dworkin ensina que “estamos incumbidos de viver bem devido ao simples facto de existirmos enquanto criaturas conscientes com vidas para viver”. A responsabilidade ética é dotada de uma importância objetiva. Dworkin exemplifica: A meu ver, uma pessoa que leve uma vida aborrecida e convencional, sem amigos íntimos, desafios ou realizações, só a fazer tempo até morrer, não tem uma vida boa, ainda que pense que é boa e que tenha apreciado a vida que teve. Se concordarmos, não podemos explicar por que razão se deve lamentar isto, chamando a atenção apenas para os prazeres perdidos; pode não ter havido prazeres perdidos e, de qualquer forma, nada há agora a perder. Devemos supor que terá falhado em alguma coisa: falhado na responsabilidade de viver.

[22] Imperativo categórico é um dos principais conceitos da filosofia de Immanuel Kant. A ética, segundo a visão de Kant, tem como conceito esse sistema.  Para o filósofo prussiano, imperativo categórico é o dever de toda pessoa agir conforme princípios dos quais considera que seriam benéficos caso fossem seguidos por todos os seres humanos: se é desejado que um princípio seja uma lei da natureza humana, deve-se colocá-lo à prova, realizando-o para consigo mesmo antes de impor tal princípio aos outros. Em suas obras, Kant afirma que é necessário tomar decisões como um ato moral, ou seja, sem agredir ou afetar outras pessoas. O imperativo categórico é enunciado com três diferentes fórmulas (e suas variantes). São elas: Lei Universal: "Aja como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal." Variante: "Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza."

Fim em si mesmo: "Aja de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio."

Legislador Universal (ou da Autonomia): "Aja de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas." Variante: "Age como se fosses, através de suas máximas, sempre um membro legislador no reino universal dos fins".

[23] Importante ressaltar que o direito inglês moderno, diversamente do civil law, é muito mais um direito histórico, sem rupturas entre o passado e o presente como aconteceu nos direitos de tradição civil law da Europa Continental, especialmente na França que rompeu com o direito preexistente com a Revolução Francesa. Como explica Criscuoli, a Inglaterra não conheceu Revoluções, Declarações de Independência ou Codificações, eventos que romperam com o passado como aconteceu na Europa Continental. Além disso, o direito não pode ser considerado em si mesmo, mas como um produto da sociedade na qual está inserido e de sua história. Diferente do civil law, no qual a autoridade da lei está na autoridade de quem a promulgou, no common law a autoridade do direito está em suas origens e em sua geral aceitabilidade por sucessivas gerações. Por essa razão admite-se a autoridade do direito construído jurisprudencialmente. O common law pode ser considerado um sistema aberto, na medida em que é possível encontrar a solução jurídica mais adequada a posteriori, pois normas são elaboradas e reinterpretadas continuamente, baseadas principalmente na razão. Em contrapartida, o civil law pode ser considerado fechado, eis que presume que, para cada lide, pelo menos em tese, deve haver uma norma aplicável. In: BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. As origens históricas do civil law e common law. Disponível em: https://www.e publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/29883/25943  Acesso em 3.3.2021.

[24] A Suprema Corte, por 5 a 4, decidiu que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não pode ser negado pelos estados determinando o seu reconhecimento e validade em todos os estados e áreas sujeitos à jurisdição dos Estados Unidos. Justice Kennedy foi autor da decisão majoritária, tendo sido acompanhado por Ruth Ginsburg, Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan. Justices Roberts, Alito, Thomas e Scalia proferiram votos dissidentes separadamente. Nesse sentido, Justice Alito, em sua dissidência, sublinha que a Corte tem assentado que a “liberdade” sob a Due Process Clause deve ter como âmbito de incidência apenas aqueles direitos profundamente enraizados na história e tradição da nação, justamente para impedir que juízes não eleitos imponham suas visões de liberdade ao povo americano. O direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, para Justice Alito, não teria tal atributo, razão por que deveria ser estabelecido pelo Poder Legislativo.

[25] A prática se incorporou à práxis policial estadunidense e recebeu o nome de "perp walk" (caminhada do perpetrador). Em um conceito preciso, o "perp walk" consiste na exposição midiática da pessoa aprisionada, antes mesmo de qualquer julgamento ou acusação formal, normalmente algemada e sob forte escolta policial. A prática é tolerada pela jurisprudência norte-americana, em prol do direito à informação, da prevenção geral e da transparência da ação policial, como restou decidido pelo Segundo Circuito, no caso Caldarola v. County of Westchester (343 F. 3d 570. 2d Cir. 2003).

Todavia, dois outros precedentes instituíram limites à exposição do preso. O mesmo Segundo Circuito, no caso Lauro v. Charles (219 F. 3d 202. 2d Cir. 2000), decidiu que a encenação na condução do preso afronta a Quarta Emenda, que assegura a privacidade e obsta medidas arbitrárias nas buscas policiais. No caso, o acusado, já preso e acautelado na delegacia, foi novamente posto na viatura policial, que circundou o quarteirão e retornou à delegacia, com o único propósito de viabilizar a filmagem da chegada ao distrito policial pela imprensa. Em outro precedente, desta vez julgado pela Suprema Corte, decidiu-se vedar à imprensa a tomada de cenas dentro do recinto domiciliar, no momento do cumprimento de mandados judiciais (Wilson v. Layne. 526 U.S. 603, 614. 1999). No caso, a polícia adentrara uma residência nas primeiras horas da manhã, acompanhada por uma equipe de TV, e prendera o pai do suspeito, ainda de pijamas, pensando se tratar do suspeito. A Suprema Corte entendeu que, embora seja legítima a filmagem da ação policial por "reality shows", a mídia não está autorizada a invadir a privacidade do domicílio, sob pena de violação da Quarta Emenda.

[26] A questão decisiva para a concepção normativa pura da culpabilidade é o livre-arbítrio, expresso no critério positivo de um “poder de agir de outra maneira” que fundamenta o juiz de censura, ou seja, o juízo de reprovação pessoal diante da prática de um fato típico e antijurídico. Como refere Bitencourt, a partir do finalismo de Welzel a culpabilidade pode ser resumida como “a reprovação pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez”. Quanto ao conteúdo do direito propriamente dito, a compreensão desenvolvida na Alemanha e que também guarda harmonia com o marco jurídico-constitucional  (a despeito da dissintonia de tal noção com a realidade fática em grande parte dos casos e mesmo com a legalidade estrita, quando em causa o valor do salário-mínimo) parte da premissa de que o mínimo existencial não se reduz a uma mera garantia de sobrevivência física, ou seja, o que se costuma chamar de mínimo vital, mas abarca a garantia mínima de acesso a bens culturais, a inserção na vida social e a participação política, ou seja, aquilo que se tem denominado de um mínimo sociocultural. Mas a mensuração concreta das prestações vinculadas ao mínimo existencial encontra-se submetida a condicionantes espaciais e temporais, mas especialmente depende do padrão socioeconômico vigente, estando sujeito a câmbios ao longo do tempo, o que também remete ao problema de sua constante atualização e de qual a instância com competência para tal avaliação e decisão. Por outro lado, na condição de direito fundamental (implicitamente positivado), também o mínimo existencial apresenta uma face negativa, operando como direito de defesa, como algo que não se pode subtrair do indivíduo, mas também como direito positivo, ou seja, de um direito a prestações a ser assegurado pelo Estado.

[27] Cass Robert Sunstein (1954) é um advogado norte-americano, especializado particularmente nas áreas de direito constitucional, direito administrativo, direito ambiental e direito e economia ambiental, que era o Administrador do Escritório da Informação da Casa Branca e Regulatory Affairs na administração Barack Obama de 2009 a 2012. Por 27 anos, ensinou na Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Sunstein é o atual professor da Universidade de Harvard.

[28] Robert Charles Post (1947) é acadêmico jurídico, norte-americano que atualmente é professor de direito na Yale Law School, onde também atuou como reitor. Backlash pode ser conceituado como a expressão do desejo de um povo livre para influenciar no conteúdo da sua Constituição, porém Backlash também pode ser uma ameaça a independência da lei. Backlash seria o lugar onde a integridade do Estado de Direito se choca com a necessidade da nossa ordem constitucional de legitimidade democrática.


Gisele Leite

Gisele Leite

Professora Universitária. Pedagoga e advogada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Conselheira do INPJ. Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Consultora Jurídica.


Palavras-chave: Dignidade Humana Princípio Direito Constitucional Constituição Federal Brasileira de 1988

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