As Rosas de Shakespeare
A tragédia de Ricardo III nos encaminha analisar a condição dos filhos fora do casamento, sua evolução e, positivação vigente na ordem jurídica brasileira. Bem, como nos faz avaliar institutos como tutela, curatela e adoção e, ainda, a paternidade socioafetiva.
A peça Ricardo III escrita por
volta de 1593, sendo a derradeira a cogitar sobre a Guerra das Rosas. Naquele
tempo a história real inglesa era bastante popular e a carreira de Shakespeare
começou com a encenação de diversas de suas peças históricas. É relevante
sublinhar que o bardo escrevia para entreter o pública, portanto, a veracidade
histórica nem sempre era necessária.
Antes de obter a fama, os
ingleses deleitavam-se com textos de outros autores, tais como The Union of
the Two Noble and Illustre Families of Lancaster and York de Edward Hall,
publicado em 1548; Chronicles of England, Scotland e Ireland de
Raphael Holinshed, publicado entre 1577 e 1587; the Actes and Monuments
de John Knox, publicado em 1563 e ainda os textos de Sir Thomas More[1].
Todos esses textos retratam
Ricardo III como vilão monstruoso e deformado devido à lealdade de seus autores
à dinastia dos Tudor. Shakespeare seguiu a senda aberta por seus contemporâneos
sobre a Guerra das Rosas e contribuiu para a propaganda dos Tudors, onde os
Yorks eram os vilões derrotados pelos heroicos Tudors, descendentes dos
Lancaster.
As vísceras dos bastidores
políticos e das culturas são expostos onde se assiste que alianças que se fazem
e se desfazem, conforme os interesses mais prementes; as promessas e traições
políticas; o ser político como um ator que se vale de objetos de cena e de
personagens coadjuvantes para cativar o seu público; tudo isso e muito mais
está descrito e narrado em Ricardo III. Esse que foi rei da Inglaterra de 1483
a 1485 de fato armou complôs e tramou a morte de vários de seus desafetos.
A peça shakespeariana se
inicia como um dos monólogos mais famosos do teatro no qual Ricardo nos fala:
"Temos agora o inverno do nosso descontentamento transformado em verão
glorioso por esse astro-rei de York; e todas as nuvens que pesaram sobre nossa Casa
estão enterradas no fundo do coração do oceano." (Shakespeare, 1593/2010,
p.25).
Enfim, Ricardo narra que
naquele momento a casa de York reina em paz após derrotar a dinastia dos
Lancaster e, em seguida nos revela sobre sua deformidade e condição física:
“eu, que fui desertado de belas
proporções, roubado de uma forma exterior por natureza dissimuladora, foi com
deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que
respira, feito male-mal pela metade, e esta metade tão imperfeita, informe e
tosca que os cachorros começam a latir para mim se me paro ao lado deles” (SHAKESPEARE,
1593/2010, p. 26).
Mas, não está satisfeito com a
paz, alegria, música e as festas do reino. Deseja nova guerra e nos promete
provar-se vilão que buscará a coroa para si. Afinal, está decidido em agir como
um canalha e detestar os prazeres fáceis de hoje.
Ricardo nos relata ainda ter
colocado seu irmão, Rei Eduardo IV, contra seu outro irmão, George, Duque de
Clarence, sobre o pretexto da profecia G, que diz que os herdeiros do rei serão
assassinados por um assassino cujo nome começa com a letra G. Logo, o rei
acredita ser George este assassino. Nós devemos nos ater ao título real de
Ricardo que também se inicia a letra G, Duque de Gloucester.
Os espectadores se tornam
cúmplices de Ricardo III e, até confidentes. Sabemos de seus planos e
sentimentos e, acabamos sendo convencidos por sua maldade.
Logo em seguida, vemos a
hipocrisia de Ricardo ao fazer promessa a George de que intercederia por ele
diante de Eduardo IV, uma vez que George fora preso. Mais tarde, Ricardo
planeja a casar-se com Lady Anne, que está de luto pela morte de seu esposo e
sogro e, caminha ao lado do corpo do falecido rei de Lancaster,
Ela acusa Ricardo de tê-los
assassinado, enquanto ele a corteja Depois de várias brigas, Anne acaba cedendo
aos encantos de Ricardo e se casa com ele.
Noutra cena, Elizabeth
Woodville teme que com a doença de Eduardo IV, uma vez que Ricardo será Regente
caso o rei venha a falecer. Ocorre a
discussão, Margaret de Anjou entra em cena e amaldiçoa a todos que contribuíram
para a derrota dos Lancaster.
Curiosamente, todas as
maldições e pragas acabam se realizando. Margaret prevê a morte dos herdeiros da
rainha, que perderá seu título e morrerá em desgosto, a morte do Conde Rivers,
Richard Grey e Lorde Hastings, a traição e morte violenta de Ricardo III. Enfim,
Margaret poupa apenas Buckingham de suas maldições proféticas, uma vez que
descende da Rosa Vermelha[2].
Logo após a saída de Margaret,
Ricardo III ordena a morte de seu irmão Clarence. Dois assassinos se dirigem à
prisão e, o matam por afogamento num barril de vinho malvasio.
Em seguida, Ricardo, Elizabeth
e sua família vão de encontro ao rei acamado e se reconciliam para o bem do
reino. Eduardo IV morre, e Elizabeth chora, enquanto a Duquesa Cecily (mãe do
Rei, tanto de George e Ricardo) lamenta a morte dele assim, como a de Clarence,
junto aos filhos órfãos de George.
Depois da morte de Eduardo e
George, somente duas pessoas impedem que Ricardo se torne o rei, Eduardo e
Ricardo que são dois jovens príncipes e filhos do falecido rei. Ricardo viaja
com Buckingham para adquirir controle sobre o novo rei Eduardo V, e acaba
prendendo e executando Conde Rivers e Richard Grey.
Ao obter o controle do jovem
Ricardo, os aloja na Torre de Londres e prepara o golpe final para usurpar a
coroa.
Quando Hastings se recusa a
fazer parte do plano de Ricardo, acaba sendo executado como traidor a pretexto
de defender Elizabeth Woodville, que jogou um feitiço no braço de Ricardo.
Adiante, Buckingham convence o
prefeito e outros lordes de que Eduardo IV era filho ilegítimo de Ricardo,
Duque de York e, portanto, seus filhos eram bastardos. Sendo assim, o prefeito
convida e insiste que Ricardo deva assumir o trono e acaba sendo coroado como
Rei Ricardo III.
O novo rei se sente ameaçado[3] pelos jovens príncipes
alojados na Torre de Londres e, paga a James Tyrrel, um cavalheiro insatisfeito
para matar as duas crianças, que acabam morrendo sufocadas durante o sono.
A respeito da relação entre
Ricardo III e seus sobrinhos que são colocados na Torre de Londres. É curial
entender os institutos como tutela, curatela e adoção.
A tutela é um instituto que
visa proteger o menor cujos pais faleceram, são considerados judicialmente
ausentes ou decaíram do poder familiar (art. 1.728, I e II, do CC-2002). Cabe
afirmar que sua finalidade é suprir a falta dos pais.
No entanto, conquanto o tutor
se torne o representante legal do menor suprindo a figura parental, é certo que
o mesmo não é pai ou mãe. Nesse sentido, embora as tarefas delegadas ao tutor
além de exigir respeito e obediência, correspondam à administração do
patrimônio do menor, à direção da educação, à prestação de alimentos, à defesa
dos interesses do pupilo, etc., não compete ao tutor disciplinar o menor como
se pai fosse cabendo, nesta hipótese, recorrer ao judiciário para tanto.
A tutela, por ser um múnus
público, proíbe que determinadas pessoas a exerçam (art. 1.735, CC-2002) de
modo a preservar o superior interesse da criança. Observa-se que não pode ser
recusada pelos indicados a tutoria (art. 1.731, CC-2002), salvo nos casos
estabelecidos em lei, justamente por se tratar de múnus público preservando,
nesse diapasão, a solidariedade familiar retratada na Constituição Federal, sob
pena de responder por perdas e danos que o menor venha a sofrer.
A curatela, utilizando-se como
alicerce de seu instituto, no que couber, as regras da Tutela, tem como
premissa proteger a pessoa civilmente maior (art. 5º, CC/2002) que se encontra
incapacitada para os atos da vida civil.
É o caso, por exemplo, de um
pessoa idosa que está com Alzheimer em estágio avançado e teve sua
aposentadoria bloqueada junto ao INSS em razão da falta de atualização
cadastral. Nesse caso, alguém da família precisará socorrer-se ao Judiciário
para se tornar curador e resolver essa pendenga perante o INSS.
Outro exemplo, seria o caso de
uma pessoa que está em coma na UTI do hospital e os parentes necessitam acessar
os recursos financeiros deste indivíduo para dar continuidade ao tratamento
hospitalar. Nesta hipótese, da mesma forma como no exemplo anterior, alguém da
família precisará socorrer-se ao Judiciário para se tornar curador e,
consequentemente, ter acesso às finanças para utilizá-las em prol do interdito.
A figura do curador, via de
regra, é destinada a algum parente ou amigo da pessoa interdita (art. 1.775, CC/2002),
contudo, em alguns casos é possível a escolha do curador pelo juiz. Por
exemplo, um idoso que está acolhido em um asilo e não tem nenhum parente ou
amigo, geralmente o administrador do recinto torna-se curador daquele.
Oportuno destacar que para o
Estado retirar a capacidade de uma pessoa, necessário que seja feita pela via
Judicial, onde se obedecerá ao devido processo legal.
Nesse sentido, será proposta
uma ação de interdição no qual o juiz interrogará o interditando e realizará
uma perícia médica de modo a atestar se aquela pessoa se encontra incapaz para
os atos da vida civil e, somente após, é reconhecido e declarada a interdição
da pessoa.
A adoção é o meio pelo qual
confere-se à criança, que não pôde permanecer com sua família biológica, o
direito de ser colocada no seio de uma nova família que busca uma filiação
adotiva como alternativa a um projeto parental. Desta forma, atribui-se ao
menor a condição de filho para todos os efeitos legais, desligando-o de
qualquer vínculo com os genitores biológicos.
Oportuno destacar que a adoção
é medida excepcional e irrevogável de modo que somente ocorrerá quando
esgotados todos os recursos de manutenção da criança na família natural ou
extensa.
No Brasil, o Estatuto da
Criança e do Adolescente disciplina o instituto da Adoção trazendo como regra a
adoção por meio do CNA (Cadastro Nacional de Adoção) junto ao Órgão Competente
no qual os interessados primeiramente deverão se habilitar para,
posteriormente, cumprido os requisitos, integrarem à fila de adoção.
Aproveitando o enredo, vamos
verificar sobre a condição jurídica dos filhos fora do casamento. Desde o
advento da Constituição Federal brasileira de 1988, todas as pessoas são iguais
perante a lei, e não há qualquer tipo de discriminação em relação aos filhos,
sejam nascidos fora de um casamento, sejam adotados.
Os filhos, sejam concebidos
fora do casamento, sejam adotados, têm direito à herança de seus pais. Ao longo
das legislações vigentes no Brasil, desde as Ordenações Filipinas que regulavam
em território pátrio os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às
pessoas, bens e suas relações.
As ditas Ordenações decretadas
em 29 de janeiro de 1643, tiveram vigência por aqui mesmo após a independência
(em 1822) por força da Lei 20/10/1823.
Naquela remota época,
permitia-se que os filhos dos plebeus nominados de peões, havidos de pais sem qualquer
parentesco ou impedimentos (ou seja, sem serem incestuosos), poderiam
sucedê-los na herança ainda que concorrendo com os filhos legítimos,
ressalvando a terça parte do pai que poderia dispô-la como melhor lhe
aprouvesse.
Quanto aos filhos espúrios
(sendo estes subdivididos em incestuosos, adulterinos e sacrílegos), as ditas
Ordenações não lhes conferiam direitos hereditários, mas asseguravam ampla
investigação de paternidade para fins de alimentos. Já quanto à distinção entre
fidalgos e plebeus está já data da Ordenação Afonsina.
Em nenhum caso, os filhos
naturais herdavam ab intestato embora não se proibisse a investigação de
paternidade e nem havia óbice instituído em lei para que fossem herdeiros
testamentários.
Cumpre esclarecer que a
filiação ilegítima e, portanto, fora do casamento poderia ser natural, quando
inexista impedimento dirimente entre os pais para se casarem, e espúria
(adulterina ou incestuosa) ocorria quando, em virtude de já estar casado (um
dos pais ou, de existir entre os pais uma relação de parentesco, tal casamento
não poderia ocorrer).
É curial lembrar que no
Brasil, Clóvis Beviláqua já advogava em favor de um tratamento mais humano aos
filhos naturais. A estigmatização dos bastardos era igualmente repudiada por
alguns doutrinadores como Cimbali, Hahnemann Guimarães e Castro Nunes.
A partir do Código Civil de
1917 passou a estabelecer a proibição do reconhecimento de paternidade (tanto a
voluntária como a judicial) para os filhos incestuosos e adulterinos. E o mesmo
fato valia para a investigação de maternidade.
Os filhos incestuosos e
adulterinos somente poderiam intentar a investigatória para fins de alimentos.
O que é ratificado pelo CPC /1939(art. 405).
Outro aspecto tormentoso em
doutrina, é o que concerne à natureza jurídica do reconhecimento voluntário do
filho. Partindo da ótica dos processualistas, mais particularmente de
Chiovenda, podemos entendê-lo como ato processual de natureza declaratória. Se
bem que a rigor, todas as ações são declaratórias.
É a ação investigatória, uma
ação de estado (que corresponde ao particular modo de existir de uma pessoa,
sua condição individual na sociedade) da qual derivam direitos e obrigações.
Ensina Giselda Hironaka, in
litteris:
A Constituição provoca assim
uma revolução não apenas normativa, mas uma revolução da mentalidade humana. De
modo especial, no que tange à igualdade dos direitos dos filhos, o § 6º do art.
227 da CF/88 implica numa única resposta à pergunta sobre a categoria dos
filhos, hoje. Assim, a lei reconhece apenas duas categorias, ao sabor da
análise do assunto filiação, isto é, aqueles que são filhos, e aqueles que não
o são...
De tal sorte que, em face da
proibição constitucional no que concerne às designações discriminatórias, perde
completamente o sentido, sob o prisma do Direito, os adjetivos legítimos,
legitimados, ilegítimos, incestuosos, adulterinos, naturais, espúrios e
adotivos.
A paternidade socioafetiva
resulta da possibilidade do parentesco não ter origem na consanguinidade ou na
adoção. Nesta modalidade é estabelecida uma relação de pai (ou mãe) e filho
sem, no entanto, que haja vínculo sanguíneo ou de adoção entre as partes. Trata-se
de um tipo de paternidade ou maternidade relativamente comum em muitas famílias
brasileiras.
O parentesco socioafetivo pode
ser reconhecido com relação ao padrasto, madrasta, avó, avô, tio, tia, padrinho
etc. Entretanto, deve ser comprovado o desempenho efetivo da função de pai ou
mãe de forma estável e exteriorizada socialmente.
O Provimento 63/2017 do
Conselho Nacional de Justiça, facilitou o reconhecimento voluntário deste tipo
de paternidade para padrasto ou madrasta, podendo ser feito junto ao cartório
de registro civil mais próximo. No entanto, essa simplificação só tem aplicação
aos pedidos de reconhecimento da parentalidade socioafetiva aos padrastos ou
madrastas.
Voltando ao enredo da peça de
Shakespeare. Porém, Ricardo III se lembra de antiga profecia realizada por
Henrique VI na qual afirmava que Henrique Tudor, Conde de Richmond, um dia
seria rei. Isso quando Richmond não passava de mero menino impertinente.
Richmond estava em exílio[4] no País de Gales e,
doravante planeja invadir a Inglaterra para tomar a coroa de Ricardo III.
Promete casar-se com a princesa Elizabeth, filha do Rei Eduardo IV e Elizabeth
Woodville para unir finalmente a Rosa Vermelha à Rosa Branca e trazer paz à
Inglaterra.
Desta forma, Ricardo planeja a
morte de sua esposa Anne e convence Elizabeth Woodville a casar sua filha com
ele. Muitas pessoas acreditavam que Elizabeth Woodville[5] era uma bruxa e que havia enfeitiçado
o Rei Eduardo IV para que se casasse com ela.
No fim da peça, Buckingham
arma seu exército contra Ricardo III, uma vez que não cumpre as promessas que
fizera ao Duque de lhe dar algumas terras que pertenceram a sua família no
passado, mas graças ao dilúvio, Buckingham acaba morrendo.
Assim os exércitos e alianças
foram sendo formadas. Um dia antes da batalha, os fantasmas de todos aqueles
que foram assassinados invadem o sono de Richmond, encorajando-o e incitando
sua vitória e, atormentam Ricardo ao lhe provocarem medo e prevendo a sua
derrota. Pode-se notar a carnificina que
executada por Ricardo para chegar ao trono inglês.
Enquanto Richmond acorda em paz, Ricardo desperta atormentado. E, os exércitos lutam no campo de Bosworth, onde Ricardo é derrotado. E, desta forma, morre o derradeiro rei da dinastia Plantageneta e a dinastia Tudor[6] começa.
Destaque-se que muitas divergências existem entre a peça Ricardo III e os eventos históricos[7] e geográficos[8] que realmente se sucederam durante a Guerra das Duas Rosas. Há grande contraste. Na peça, o Duque de Clarence está vivo durante o final do reinado de Eduardo IV, quando na verdade sabemos que o rei morrera em 1483 e que Clarence foi executado em 1478.
Além disso, Henrique VI
morrera em 1471, anos antes da morte de Clarence e Eduardo IV, mas na peça
vemos Lady Anne de luto ao lado de seu corpo, pois ele falecera recentemente. Ademais,
Ricardo se casou com Lady Anne em 1472, e na peça o casamento acontece após a
morte do Rei Eduardo IV.
Outra divergência é a presença
de Margaret de Anjou quando na verdade ela havia voltado para a França em 1475,
e morrera em 1482, antes da morte de Eduardo IV e da ascensão de Ricardo. Por
derradeiro, Ricardo reinou a Inglaterra por dois anos, e na peça os eventos se
sucedem muito rapidamente.
Igualmente há outras
divergências em relação aos eventos históricos narrados. O primeiro é a
descrição física de Ricardo. E, em 2012 os restos mortais de Ricardo III foram
encontrados na Inglaterra numa escavação arqueológica liderada pela
Universidade de Leicester e, quando se pode evidenciar a grande curvatura na
coluna e que ele morrera por meio de um grave golpe na cabeça, além de outros
ferimentos[9].
De sorte que Ricardo II,
realmente, possui certa deformidade física, mas não como o bardo relata. O
exagero se deve ao desejo de enfatizar sua maldade e sentimentos ruins de
Ricardo que acabam sendo materializados na deformidade corporal do Rei.
De fato, o bardo exagerou a
feiura e a maldade pessoa. Afinal, o que se sabe é que Ricardo agiu de acordo
com os costumes políticos da época, quando se decapitavam os inimigos que
podiam trazer dores de cabeça na arena política e, para garantia a coroa para
si, matam-se herdeiros à sua frente na linha sucessória.
O que se sabe é que Clarence
traiu seu irmão, e recebeu o perdão real, mesmo assim, voltou a conspirar
contra o rei e, então acabou sendo executado. Na peça, Clarence é visto como
inocente e que sempre fora fiel a Eduardo IV. Em verdade, sua morte se dá pela
traição de Ricardo, responsável pela sua execução.
Lorde Hastings fora preso por
ordem de Eduardo IV, apesar de não saber o motivo. Porém, Hastings nunca fora
preso vez que sempre fora um dos íntimos amigos do rei.
Porém, realmente fora
decapitado por ordens de Ricardo que se sentia ameaçado por Hastings, apesar de
que sua suposta traição não se desse sob a acusação de defender Elizabeth por
ter enfeitiçado o braço de Ricardo.
Outra incongruência é a de
Lady Anne que em luta pela morte de seu marido e sogro. Discute e despreza
Ricardo, ainda o acusa de assassino, mas por fim, acaba aceitando se casar com
ele. Há poucos registros sobre a biografia de Anne Neville, mas é provável que
conhecesse Ricardo desde criança, uma vez que a educação do Duque de Gloucester
era responsabilidade de seu pai, o Conde de Warwick
Além disso, seu casamento com
o filho de Henrique VI simplesmente ocorre com o fim de selar a aliança de
Warwick com Margaret de Anjou. Portanto, o pranteado luto pelas mortes de
Eduardo e Henrique VI parece ser falso e pouco provável, uma vez que sua
família sempre foi aliada dos York e, se casamento com Eduardo durou poucos
meses e, ela não teria tamanho desprezo por Ricardo, tendo aceitado casar-se
com ele, logo após de ficar viúva.
Ainda sobre casamento de
Ricardo com Anne, não vemos a presença nem menção de seu filho, Eduardo, na
peça. Eduardo morrera quando ainda criança. Anne permanecera doente por alguns
meses antes de morrer devido as causas naturais.
Na narrativa, Ricardo deseja
se livrar dela e Anne acaba morrendo embora não saibamos como. Outro contraste
é o casamento da filha de Clarence arranjado por Ricardo, sendo que tal
casamento fora arranjado posteriormente por Henrique VII, uma vez que a filha
de Clarence ainda era criança durante o reinado de Ricardo e, a cena em que
Elizabeth, a Duquesa Cecily e Lady Anne tentam visitar os príncipes na Torre de
Londres, sendo que Elizabeth estava alojada em santuário na Abadia de
Westminster e Anne apoiava Ricardo.
Sabemos que o bardo segui a
versão de seus contemporâneos e que ele contribuiu para a propaganda dos Tudors
ao vilanizar os Yorks e favorecer o regime de Lancasters e Tudors.
No entanto, jamais saberemos o
que Shakespeare realmente pensava sobre Ricardo III. É certo que entender a Guerra das Rosas[10] nos ajuda a compreender melhor
as peças históricas, apesar de várias divergências.
O chamado new historicism[11]
nos apresenta uma releitura mais interessante pois analisa o contexto cultural
que formou o texto literário. Mas o poder de mudar o curso da história está nas
mãos dos indivíduos e de suas habilidades tais como a imaginação.
Mais uma vez, Shakespeare nos
dá a oportunidade de explorar a questão humana na história uma vez que criou
conflitos internos e motivos individuais para as ações de cada personagem
através de profunda análise da natureza humana. Não precisava se ater aos
eventos históricos, pois sua narrativa atendia aos interesses do próprio texto
dramático.
Ao analisarmos as tragédias,
vemos que os personagens mais impactantes e importantes morrem ao final do
drama. Mais uma vez, Richmond se torna pouco relevante, uma vez que sobrevive à
batalha. Afora isso, ele possui poucas falas e aparece no palco apenas no final
do enredo.
Tal entendimento é
contraditório pois Richmond aparece com o salvador e herói do reino e nos
mostra uma possível preferência por Ricardo III. Ademais, Ricardo estabelece a
conexão com a audiência que se encanta e se torna cúmplice dele, o que não
acontece com Richmond.
Esta teoria nos mostra por
mais que Shakespeare possa ter sido influenciado pela visão de seus
contemporâneos, possuía em sua imaginação e genialidade a capacidade de
construir próprias histórias e criar seus próprios personagens que nos faz
imergir na natureza humana e na ânsia de poder.
Há muitas interpretações
quanto ao caráter de Ricardo III. Sendo considerado por muitos como vilão
monstruoso disposto a matar todos que sejam empecilhos para que ele obtenha a
coroa, a sua maldade se exterioriza na sua deformidade física.
No entanto, muitos
historiadores e até mesmo críticos literários o considerariam um humano
insaciável e ambicioso.
De acordo com Harold Bloom,
Shakespeare inventou o humano, uma vez que criou personagens individuais com
características próprias, e talvez seja a ambição de Ricardo que o torna
humano.
Diante de tantas divergências
entre os historiadores entre Shakespeare e a história, torna-se uma tarefa
hercúlea expressa o verdadeiro caráter do último rei plantageneta. Cabe ao
leitor opta pela versão que mais lhe agrada.
Apesar de ele ter certamente
sido influenciado pelas ideias prevalentes de seu tempo, Shakespeare tinha uma
capacidade de escrever sobre questões relevantes de uma forma que nenhum de
seus predecessores fizeram.
Isso não sugere que seu ponto
de vista em tais assuntos seja transcultural ou transhistórico, mas enfatiza o
fato de que ele teve sua origem na criatividade genial de um indivíduo
extraordinário que havia se engajado um uma reflexão profunda sobre questões
pertinentes, bem como sobre relações entre sociedade e indivíduo, sobre as
forças que motivam os indivíduos a tomarem decisões e atitudes, e as forças que
determinam o curso da história.
Precisamos entender que o
bardo não tinha intenção de ser fiel à história, desejando entreter sua
audiência e, por isso altera e omite certos eventos que não lhe servem para a
narrativa que quis criar.
O público inglês da época era
bem familiarizado com os eventos que se sucederam no período da Guerra das
Rosas e tais batalhas[12] eram parte de sua
cultura.
As obras shakespearianas eram
meios de expressar opiniões e críticas políticas da época. Tais peças nos dão a
noção da sociedade e da política medieval através da visão dos Tudors no qual Ricardo
III era representado com uma deformidade horripilante tanto física como
interior.
Shakespeare nos proporciona um
trabalho histórico, cultural e ideológico onde os personagens agem
individualmente na história. Afinal, não é a história que molda os indivíduos,
e sim eles que fazem história.
Por fim, este trabalho busca contribuir para a análise das peças históricas de Shakespeare através de uma perspectiva humana, ou nas palavras de Bloom, da “invenção do humano”.
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Notas:
[1]
A base da peça Ricardo II pode ter sido de Thomas More: The life of Richard III
(1513); Nessa obra, Ricardo III é descrito como vilão e fisicamente deformado,
corcunda, associando sua condição física ao seu duvidoso caráter.
[2]
De fato, a Guerra das Duas Rosas é a principal inspiração histórica para orgia
sanguinária que resume a história da Inglaterra. Em 2015 os restos mortais de
Ricardo III foram transferidos para a catedral da cidade, com honras militares
e religiosas.
[3]
Do momento que ele toma o trono, ele o sente inseguro abaixo de si; a oposição
e a traição crescem em todos os distritos e, em seus últimos momentos, um mero
cavalo vale tanto quanto seu reinado inteiro. Com sarcástica comédia e justiça
poética, Ricardo torna-se o enganador proverbial que é enganado.
[4]
A intolerância do regime instaurado pelo golpe civil-militar de 1964 promoveu o
exílio de inúmeros brasileiros nas décadas de 1960 e 1970, afastando e
eliminando as diferentes gerações que lutavam por diversos projetos: reformas
de base, revolução social, redemocratização. A Lei da Anistia completa 40 anos
neste mês. Quando assinou a histórica norma, em 28 de agosto de 1979, o
presidente João Baptista Figueiredo concedeu o perdão aos perseguidos políticos
(que a ditadura militar chamava de subversivos) e, dessa forma, pavimentou o
caminho para a redemocratização do Brasil. Foram anistiados tanto os que haviam
pegado em armas contra o regime quanto os que simplesmente haviam feito
críticas públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram para
o Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os
processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de
presídios e delegacias. Fonte: Agência Senado
[5]
Elizabeth Woodville (também soletrada Wydville, Wydeville ou Widvile (1437-
1492) foi Rainha da Inglaterra de seu casamento com o Rei Eduardo IV em 1 de
maio de 1464 até que Eduardo foi deposto em 3 de outubro 1470, e novamente
desde a retomada do trono de Eduardo em 11 de abril de 1471 até sua morte em 9
de abril de 1483. Na época de seu nascimento, sua família era de nível médio na
hierarquia social inglesa. Sua mãe, Jacquetta de Luxemburgo, já havia sido tia
por casamento de Henrique VI. O primeiro casamento de Elizabeth foi com um
apoiador menor da Casa de Lancaster, Sir John Gray de Groby. Ele morreu na Segunda Batalha de St.
Albans, deixando Elizabeth viúva, mãe de dois filhos. Seu segundo casamento
com Eduardo IV se tornou uma causa célebre. Elizabeth era conhecida por sua
beleza, mas vinha de uma pequena nobreza, sem grandes propriedades, e o
casamento ocorreu em segredo. Eduardo foi o primeiro rei da Inglaterra desde a
conquista normanda a se casar com um de seus súditos, e Elizabeth foi a
primeira consorte a ser coroada rainha. Seu casamento enriqueceu enormemente
seus irmãos e filhos, mas o avanço deles gerou a hostilidade de Richard
Neville, conde de Warwick, 'The Kingmaker', e suas várias alianças com
as figuras mais importantes da família real cada vez mais dividida. Essa
hostilidade se transformou em discórdia aberta entre o rei Edward e Warwick,
levando a uma batalha de vontades que finalmente resultou na mudança de
lealdade de Warwick à causa de Lancastrian e à execução do pai de Elizabeth,
Richard Woodville, em 1469.
[6] Otto Maria Carpeaux que se exilou no Brasil
devido à perseguição nazista nos anos de 1930, assim escreveu sobre a relação
entre a peça e o personagem histórico. In
litteris: “(Shakespeare) não chegou a eliminar as calúnias que a
historiografia oficial da dinastia Tudor lançara contra Ricardo III.” (Otto
Maria Carpeaux. “Sobre o teatro político”. In: Ensaios Reunidos. Vol. II. 1946-
1971. Rio de Janeiro: Universidade Editora/ Topbooks, 2005, pág. 683.) Otto
Maria Carpeaux foi ainda mais explícito: ...” Shakespeare teve conhecimento
apenas fragmentário e desfigurado das teorias políticas de Maquiavel. “Nesse
sentido criou Shakespeare seu grande maquiavelista: Ricardo III.
[7]
“Shakespeare provavelmente jamais viu o mar e, como afirmam os antigos
comentadores, jamais contemplou com os próprios olhos um campo de batalha. “Não
conhecia a geografia. Punha a Hungria à beira do mar. Proteu toma um navio para
ir de Verona à Milão e, pior ainda, espera a maré! Florença é igualmente, para
Shakespeare, um porto marítimo.” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo.
Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 44.).
[8] “Shakespeare não conhecia a história. Seu
Ulisses lê Aristóteles, e Tímon de Atenas refere-se a Sêneca e Galeno.
“Shakespeare não conhecia a filosofia, nada compreendia de arte militar,
mistura os costumes de diversas épocas. “Soa um relógio em Júlio César, uma
criada desata o espartilho de Cleópatra, canhões disparam tiros de pólvora no
tempo de João Sem Terra.”
[9]
Em 2012, arqueólogos da Universidade de Leicester encontraram a suposta ossada
de Ricardo III que havia sido enterrada sem muita pompa em uma igreja há muito
tempo apagada da história e teria se tornado um estacionamento. Os ossos apresentavam as características que
apontavam para o polêmico rei: um ferimento na cabeça e uma anormalidade na
espinha dorsal. O próprio Shakespeare o chamava de “sapo corcunda”, diante de
tal aberração fazia os cachorros latirem. Exames de DNA, em 2013 confirmara que
se tratava mesmo de Ricardo III e, ainda, que o bardo exagerava na descrição do
monarca. Historiadores debatem sobre o legado deixado por Ricardo III e, se ele
usurpou a coroa, ao menos conseguiu um cessar-fogo com os escoceses e relaxou a
tensão com os Lancasters.
[10]
A peça Ricardo III é emblemática desses dois movimentos ao compor
uma sangrenta trajetória política devido ao desejo e projeto de ruptura
institucional e ao apresentar um astuto personagem que se encontra envolvido na
Guerra das Duas Rosas, que se deu entre as Casas de York e Lancaster, no século
XV.
[11]
O Novo historicismo é uma corrente de pensamento literário baseada na premissa
de que uma obra literária deve ser considerada como o produto de uma época, de
um lugar e das circunstâncias políticas, geográficas, sociais e económicas
aquando da sua composição. O novo historicismo desenvolveu-se a partir da
década de 1980, nos Estados Unidos, a partir do trabalho de Stephen Greenblatt
e da escola de Berkeley, tendo expandido a sua influência na década seguinte.
Na sua obra Renaissance Self-Fashioning: From Moreto Shakespeare (1980),
Greenblatt concentra e aplica a sua visão ao Renascentismo Isabelino
contemporâneo às obras de Shakespeare, afirmando que a riqueza histórica e
social do seu texto dramático o permite efetivamente comunicar com o passado,
com a realidade histórica seiscentista. Os críticos ao Novo historicismo, sendo
os mais relevantes Camille Paglia e Harold Bloom, apontam a falta de historiografia
no seu discurso, tomando posições excessivamente relativistas e politicamente
corretas; bem como o papel redutor atribuído à análise literária formal e à
Literatura (apontada somente como um mero produto da História).