A revelação da ironia
Afirmou José Saramago que a alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo palhaço se limita a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por acidente, estamos procedendo segundo o que é justo e honesto, acena aprovadoramente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso perdido. Talvez, essa imagem descrita pelo autor, resuma para que serve a ironia humana.
A ironia se revela como artifício
literário onde as palavras escolhidas intencionalmente servem para traduzir um
significado diferente do literal. Por vezes, confundem a ironia com sarcasmo[1]. Mas, esse é, apenas, uma
forma de ironia verbal[2], com tom intencionalmente
de insulto. A ironia é mais elegante que o sarcasmo.
Em geral, a ironia se revela pela
atitude de quem dá importância muito menor que a devida (ou que se julga
devida) a si mesmo, à sua própria condição ou situações, coisas ou pessoas com
que tenha estreitas relações.
Em filosofia, existem duas formas
fundamentais de ironia, a socrática e a romântica. A primeira corresponde à
forma como Sócrates se subestimou em relação aos adversários com quem discute.
Quando, na discussão sobre a justiça. Enfim, o pai da filosofia declarou in
litteris: "Acho que essa investigação está além das nossas
possibilidades, e vós, que sois inteligentes, deveis ter piedade de nós, em vez
de zangar-vos conosco".
"Trasímaco responde: "Eis a
costumeira ironia de Sócrates" (Rep., I, 336 e 337 a). Aristóteles só faz
enunciar genericamente esta atitude socrática quando vê na ironia um dos
extremos na atitude diante da verdade. O verdadeiro está no justo meio; quem
exagera a verdade é jactancioso e quem, entretanto procura diminuí-la é
irônico. E, disse que, nesse aspecto, a ironia é simulação (Et. nic, II, 7,
1108 a 22). Cícero referia-se a esse conceito ao afirmar que "Na
discussão, Sócrates[3]
frequentemente se diminuía e elevava aqueles que desejava refutar; assim,
dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a simulação que os
gregos denominam ironia." (Acad., IV, 5, 15). S. Tomás referia-se a este
conceito do termo, como uma forma (lícita).de mentira (5. Th., II, 2, q. 113,
a. 1).
Quando Sócrates recebeu do Oráculo de
Delfos uma mensagem que afirmava que ele era o mais sábio dentre os homens
gregos. Questionando-se, Sócrates, então disse a famosa frase: "Só sei que
nada sei", como poderia ser o mais sábio. Afinal, a vida sem
questionamentos não vale a pena ser vivida.
Já a ironia romântica baseia-se no
pressuposto da atividade criadora do Eu. Identificando-se com o Eu absoluto, o
filósofo ou poeta é levado a considerar a realidade mais concreta com uma
sombra ou um jogo do Eu, a subestimar a importância da realidade, não a tomar a
sério.
A ironia segundo Schelgel é a liberdade
absoluta diante de qualquer realidade ou fato. Transferir-se arbitrariamente
ora para esta, ora para aquela esfera, como para outro mundo, não só com o
intelecto e com a imaginação, mas com toda a alma.
A ironia foi um conceito caracterizador
do romantismo alemão. Kierkegaard[4] deu-lhe especial interpretação
de forma atenuada ou metafórica por um lado concebendo a ironia socrática como
superioridade de Sócrates à iniquidade do mundo. Fichte questionou o que é a ironia?
E, respondeu que era a unidade de paixão ética, que acentua o eu infinitamente
interior, e a unidade de educação que, em seu exterior (no comércio com os
homens) abstrai infinitamente do próprio eu.
Tal abstração faz que ninguém se
aperceba da primeira unidade vivida e nisto está a arte da verdadeira
infinitização da interioridade.
A infinidade do eu é somente interior,
isto é, é a acentuação ao infinito do valor do eu dentro da consciência, mas
não é a infinidade efetiva e criadora.
Contemporaneamente, a ironia não possui
mais o significado romântico, trata-se somente de oposição entre a consciência
exaltada que o eu tenha de si mesmo e a modéstia de suas manifestações
exteriorizadas.
Na literatura há três tipos de ironia. A
ironia verbal quando o uso de palavras traduz algo diferente do que estas
parecem significar. A situação irônica que ocorre quando a diferença entre o
que se espera que aconteça e o que realmente acontece. E, por fim, a ironia
dramática quando o público está mais consciente do que está acontecendo do que
um personagem.
Na literatura brasileira há autores como
Machado de Assis que se destacaram pela ironia e humor como técnica narrativa.
E, provendo críticos ao contexto social do século XIX, uma visão fica bem
expressa em obras como os contos "O Enfermeiro"[5], "Um homem
célebre"[6]
e sua consagração veio com a obra intitulada "Memórias Póstumas de Brás
Cubas publicada em 1881.
Sem dúvida, Machado de Assis é
integrante do movimento chamado realismo, e apontou os condicionamentos do
homem ao meio social, a prevalência da lei do mais forte, a crítica à burguesia
que foram temas recorrentes apresentados com uma elegância imparcial.
Percebe-se que tanto a ironia como o humor impregnam as atitudes dos
personagens, revelando suas personalidades.
As figuras ficcionais de Machado de
Assis apresentam características típicas tão marcadas pela fina ironia que como
uma navalha, divide claramente os comportamentos ao longo de toda trama
narrada.
Aliás, a ironia é uma figura retórica em
que se diz o contrário do que se quer dizer, o que implica no reconhecimento do
potencial da mentira implícita inoculada na linguagem. Assim sendo, a ironia
revela em ser um recurso de estilo, é a própria explicitação de que a verdade
aparente das coisas é somente e meramente aparente... Enfim, a ironia
paradoxalmente revela, justamente quando procura esconder, portanto, torna-se
central dentro da realidade do mundo, onde triunfam as aparências e as
convenções.
O humor irônico é uma temática
recorrente nos contos machadianos, porque na construção estilística o autor nos
conduz a construir interpretações contrárias, com aspectos satíricos, às que se
esperava incialmente e, que resultam em diversas leituras sobre o mesmo
contexto ou personagem.
Em geral, o humor irônico serve para
criticar a sociedade da qual fazia parte e, também para destacar as camadas
mais íntimas de ser de modo extremamente sutil e sofisticado[7].
Outra característica de Machado de Assis
é seu crônico pessimismo intrínseco e que foi abrandado por sua isenção de
julgamento, pois, aprecia sempre o indivíduo em si mesmo e na sua posição em
face da vida, quando se percebe o próprio tamanho e a dinâmica dos mecanismos
sociais.
A ironia é forma do paradoxo. E,
paradoxo é tudo aquilo que é ao mesmo tempo bom e grande.
Enfim, a premente necessidade de
encontrar a solução para o problema da objetividade na obra de arte literária
moderna é um dos principais fundamentos do conceito de ironia romântica, de Schlegel,
o qual deve ser compreendido no contexto de sua teorização.
Talvez a ironia seja o derradeiro
refúgio do oprimido e nenhum tirano, por mais cruel e violento que seja,
consegue escapar dela. Um exemplo de frase contendo ironia: “Se a estupidez
fosse um esporte, a maioria das pessoas que conheço seriam atletas olímpicos.
Seriam invencíveis”.
Segundo Linda Hutcheon, diz-se que a
ironia irrita porque ela nega nossas certezas as desmascarar o mundo como uma
ambiguidade. Há dois grandes ironias, a literária e a popular que não oferece
ao seu receptor maiores desafios de interpretação. Enfim, confere-se a ironia a
função de equilíbrio ou correção. Estabilizando o que é instável, mas também
desestabilizando o que é excessivamente estável.
Enfim, Schlegel apontou que a situação
comum metafisicamente irônica do homem, pois que seja um ser finito que tanto
luta para compreender uma realidade infinita, e, portanto, incompreensível.
Eis que o contraste entre a aparência e a realidade é o mais peculiar traço de toda ironia. Mas, tal contraste não marca não apenas a ironia verbal, mas igualmente a ironia observável, posto que se constate a incongruência. É bem verdade que a ironia e o embuste são vizinhos próximos e íntimos, pois, afinal a etimologia da palavra "ironia" advém do latim dissimulatio. Apesar disso, a ironia contém revelação, pois a vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”, conforme bem enunciou Horace Walpole.
Referências
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Traduzido por Ivone Castilho Benedetti. 6ª edição São Paulo: WMF Martins
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Paulo: Editora Cultura Acadêmica, 2009.
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Acesso em 27.4.2021.
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Machado de Assis. Seleção Domício Proença Filho. 15.ed. São Paulo: Global,
2004.
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da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
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FRANÇA, Raimunda Inês G.; DE PAULA,
Douglas Ferreira. O Humor e a Ironia nos contos de Machado de Assis: O
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Acesso em 25.4.2021.
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KIERKEGAARD, S. O conceito de ironia
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Disponível em: https://www.storyboardthat.com/pt/articles/e/tipos-de-ironia#:~:text=A%20ironia%20%C3%A9%20um%20artif%C3%ADcio,o%20sarcasmo%20%C3%A9%20intencionalmente%20insultuoso
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SARAMAGO, J. O homem duplicado.
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SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos
fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.
WALPOLE, Horace. The Castle of
Otranto. Edited with an Introduction and notes by Michael Gamer. 1ª
edição. 12 reprint. London: Penguin Books, 2001.
Notas:
[1]
A gramática justifica o sarcasmo e a ironia como sendo figuras de linguagem
utilizadas fora de seu real e autêntico significado que expressam um deboche. A
diferença crucial entre o sarcasmo e a ironia é que enquanto o primeiro é dito
em tom malicioso e ríspido, o segundo é frase contraditória que geral tem
sentido de humor. Já para Harvard Business School, o sarcasmo é forma
elevada de criatividade, visto que o cérebro precisa ser mais criativo do que o
normal para conseguir dar resposta célere.
[2]
“Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de mais
posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaram-se para uma chamada área
de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém pode entrar no
condomínio. Ninguém. Visitas, só num local predeterminado pela guarda, sob sua
severa vigilância e por curtos períodos.” Nesse trecho, o cronista Luís
Fernando Veríssimo narra uma situação formulando uma sutil ironia de que os
condôminos, que deveriam estar livres, estão presos para proteger-se de
criminosos que estão livres. A situação por si só seria considerada uma ironia
observável, no entanto, ao narrá-la, o cronista faz uma ironia verbal.
[3]
Assim, ironia e maiêutica constituíam, por excelência, as principais formas de
atuação do método dialético de Sócrates, desfazendo equívocos e deslindando
nuances que permitiam a introspecção e a reflexão interna, proporcionando a
criação de juízos cada vez mais fundamentados no lógos ou razão. A ironia socrática era, antes de tudo, o
método de perguntar sobre uma coisa em discussão, de delimitar um conceito e,
contradizendo-o, refutá-lo. O verbo que originou a palavra (eirein) significa
mesmo perguntar. Logo, não era para constranger o seu interlocutor, mas antes
para purificar seu pensamento, desfazendo ilusões. Não tinha o intuito de
ridicularizar, mas de fazer irromper da aporia (isto é, do impasse sobre o
conceito de alguma coisa) o entendimento. Porém, sair do estado aporético
exigia que o interlocutor abandonasse os seus pré-conceitos e a relatividade
das opiniões alheias que coordenavam um modo de ver e agir e passasse a pensar,
a refletir por si mesmo. Esse exercício era o que ficou conhecido como
maiêutica, que significa a arte de parturejar. Como sua mãe, que era parteira,
Sócrates julgava ser destinado a não produzir um conhecimento, mas a parturejar
as ideias provindas dos seus interlocutores, julgando de seu valor (a parteira
grega era uma mulher que não podia procriar, era estéril, e por isso, dava a luz
aos corpos de outra fonte, avaliando se eram belos ou não). Significa que ele,
Sócrates, não tinha saber algum, apenas sabia perguntar mostrando as
contradições de seus interlocutores, levando-os a produzirem um juízo segundo
uma reflexão e não mais a tradição, os costumes, as opiniões alheias, etc. E
quando o juízo era exprimido, cabia a Sócrates somente verificar se era um belo
discurso ou se se tratava de uma ideia que deveria ser abortada (discurso
falso, errôneo).
[4]
Para compreender melhor o conceito de “ironia”, precisamos nos referir ao
estádio estético da existência. Para Kierkegaard, a existência compreende três
estádios (Stadier): 1) O estádio estético, no qual o homem se abandona à
imediatidade, não há uma aceitação consciente de um ideal. A busca pelo prazer
imediato faz com que o esteta atribua maior importância à possibilidade de
realização do que à própria realização. São três os modos de ser do estádio
estético: a sensualidade, representada por Don Juan; a dúvida, por Fausto; o
desespero, pelo judeu errante Ahasverus. 2) O estádio ético, no qual o homem se
submete à lei moral e opta por si mesmo. Ao falar do estádio ético, Kierkegaard
fala do marido fiel: o modo de vida ético é o modo de vida do indivíduo que é
correto com a família e trabalhador. Trata-se não mais do indivíduo que busca o
prazer, trata-se do indivíduo que ordena sua vida em relação ao cumprimento do
dever. Diz Kierkegaard: “A esfera ética é uma esfera de transição, que todavia
não é atravessada de uma vez por todas...” (Kierkegaard, Stadi sul cammino
della vita, p. 693). Ela oferece uma forma de preparação para o estádio
religioso. 3) O estádio religioso: o último estádio proposto por Kierkegaard, é
o que vai além do estádio ético e é o ponto mais alto a que se pode chegar; é,
portanto, o estádio onde se efetiva a realização do indivíduo. Se, no estádio
ético, o homem pode transgredir uma lei feita por homens, no estádio religioso,
o erro é contra leis estabelecidas por Deus; portanto, significa pecado. O
estádio religioso suspende o estádio ético quando o indivíduo estiver diante de
uma escolha que implica em uma finalidade maior. O exemplo que Kierkegaard
oferece é o de Abraão que aceita sacrificar seu filho para que se cumpra a
promessa da divindade na qual ele acredita.
[5]
O conto "O Enfermeiro", escrito por Machado de Assis, conta a
história de Procópio, um copista de estudos teológicos que é convidado para
trabalhar como enfermeiro de um senhor idoso no interior. O senhor rico para
qual Procópio foi trabalhar era um coronel que tinha grande fama de tratar mal
os seus enfermeiros. Após sete dias de calmaria, o Coronel Felisberto mostrou
sua verdadeira cara e começou a desrespeitar Procópio que mesmo assim acabou
ficando no emprego. Em uma noite, cansado de ser humilhado, Procópio ataca o
coronel, que acaba morrendo. Desesperado com seu ato, o enfermeiro descobre que
a herança do coronel ficou toda para ele. Então, envergonhado, passou a falar
bem do coronel sempre que elogiavam Procópio por sua paciência com o velho.
[6]
O compositor Pestana é o homem célebre a que se refere o título. Como se pode
esperar de qualquer narrativa machadiana, trata-se de uma ironia mordaz. Autor
de polcas que se popularizam até ao assobio, Pestana não está satisfeito com
esse sucesso fácil e "vulgar". Gostaria de compor algo sólido,
inovador, a exemplo de Mozart, Beethoven, Chopin e outros clássicos.
Conseguirá? Ou acabará dominado pelas pequenas vantagens dessa música que
considera mundana e passageira?
[7]
A ironia (ou antífrase) é uma figura de linguagem utilizada para dizer-se algo
por meio de expressões que remetem propositalmente ao oposto do que se quis
dizer. Seu uso é bastante comum, e esse jogo de sentidos que se ligam pela
inversão gera, muitas vezes, um tom de comicidade ou de deboche, podendo ser um
mero gracejo até um discurso mais sarcástico. Por sua versatilidade, é um
recurso estilístico muito comum e usado em diversas possibilidades, como
veremos a seguir.